Teologia Selvagem ~ Hélio Schwartsman

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Deu no Datafolha: 25% dos brasileiros acreditam em algo parecido com Adão e Eva; 59% tentam conciliar Deus e alguns fundamentos da seleção natural, mais ou menos como foi proposto por Charles Darwin 150 anos atrás; e apenas 8% se atêm a fatos biológicos e apostam no darwinismo sem a interferência divina. A reportagem completa que escrevi para a versão impressa da Folha pode ser lida aqui.

Ao contrário dos mais otimistas, que celebraram o fato de termos menos criacionistas da Terra jovem do que os EUA (onde eles são 44%) e estarmos em linha com várias nações da Europa (onde a maioria dos países tem taxas na casa dos 20 e poucos por cento), não vejo motivos para nos regozijarmos. Afinal, um de cada quatro brasileiros acha que a Terra tem menos de dez mil anos e que o homem surgiu a partir de um passe de mágica de Deus, que depois teria arrancado a costela do pobre Adão para fazer brotar-lhe uma fêmea.

Que as pessoas acreditassem nessas balelas na Idade do Bronze, quando não havia explicações alternativas, vá lá. Que continuem a sustentar esses mitos numa era em que a ciência fornece modelos muito mais verossímeis, razoáveis e fortemente embasados na empiria é prova de nem mesmo milhões de anos de seleção natural bastaram para produzir uma espécie uniformemente inteligente.

Não é, contudo, o criacionismo da Terra jovem que eu pretendo combater hoje. Essa é uma posição que se autodestrói sozinha: se a Bíblia de fato não contém erros e traz toda a ciência e a ética de que precisamos, como afirma essa gente, então estamos autorizados a manter haréns, escravizar argentinos para ajudar no trabalho doméstico, apedrejar hereges e, em caso de aperto financeiro, vender nossas filhas no mercado de escravos. Não sou um especialista, mas acho que até as obras do Marquês de Sade trazem uma moral mais elevada do que a do “bom livro”.

O que me interessa aqui é perscrutar um pouco mais fundo a posição dos 59% que tentam juntar Deus e Darwin. Hoje, excepcionalmente, não vou ficar advogando pelo ateísmo. Mesmo que Deus exista (do que duvido), não há a menor necessidade de inseri-Lo no modelo explicativo da evolução das espécies, o qual apesar de ser “apenas” uma teoria (a lei da gravidade, assim como todas as proposições científicas, são necessariamente “apenas” teorias) conta com todas as corroborações necessárias para que o consideremos tão comprovado quanto dezenas de outras teorias das quais nos utilizamos diariamente sem tentar contrabandear nenhum elemento divino. Assim como ninguém diz que a Terra descreve sua órbita ao redor do Sol “guiada por Deus” ou que os objetos caem com um empurrãozinho celeste, não há razão para colocar um ente supremo projetando cada animal ou cuidando diuturnamente da criação para que o bolo não desande.

Como católicos e alguns protestantes já perceberam, em termos puramente lógicos Darwin e Deus não estão em campos opostos. Não é preciso mais do que uma teologia só um pouco mais sofisticada do que a dos fundamentalistas bíblicos para conceber um Deus compatível com a seleção natural. Afinal de contas, Ele é que seria o criador de todas as leis naturais, incluindo a capacidade de pais transmitirem certas características genéticas a seus filhos e a ocorrência de um certo nível de “crueldade” no mundo, pelo qual apenas alguns indivíduos sobrevivem para reproduzir-se. E isso é tudo o que precisamos para instalar a seleção natural, seja na Terra ou qualquer outro ponto do Universo.

E não é difícil para qualquer religioso com um pouco de imaginação empurrar Deus um bocadinho para o lado e deixar a evolução fluir. Ele precisa apenas adquirir características um pouco mais deístas ou leibnizianas, o que não foi um problema nem mesmo para o um papa como Pio 12, o qual, na encíclica “Humani generis”, de 1950, classificou o darwinismo como “hipótese séria”. Quarenta e seis anos mais tarde, seria a vez de João Paulo 2º declarar que a evolução era “mais do que uma hipótese”.

Só que o mundo não vive apenas de lógica (às vezes até me pergunto se essa não é uma arte ameaçada de extinção). No plano psicológico, Deus e Darwin são, sim, adversários ferrenhos. Alguns católicos já perceberam isso e ensaiaram uma revisão no posicionamento da Santa Sé.

Em 2005, num artigo para o jornal “The New York Times”, o arcebispo de Viena, Cristoph cardeal Schönborn, lançou um inesperado ataque à teoria darwinista da evolução das espécies. O dignitário, que é visto como teologicamente próximo ao papa Bento 16, afirmou que a noção darwiniana de ancestralidade comum entre os seres vivos pode estar de acordo com a doutrina católica, mas que os conceitos de mutações aleatórias e seleção natural sem direção ou finalidade certamente não estão. Schönborn também aproveitou para qualificar declarações de João Paulo 2º simpáticas ao darwinismo como “vagas e desimportantes”.

Como o leitor já deve ter reparado, embora as noções de seleção natural e um Deus pessoal que realize um ou outro milagre de vez em quando possam coexistir, trata-se de uma convivência um pouco forçada (não natural, para empregar um termo em voga). Na esfera do simbólico, ou bem há um Deus atuante e com um propósito, ou bem somos o produto da inopinada mistura de carbono com mais dois ou três elementos químicos baratos.

E, se há uma ideia que as religiões abominam, é a de que estamos abandonados à própria sorte num mundo sem propósito. É a “Geworfenheit” heideggeriana. E, se esse conceito de abandono não está embutido no neodarwinismo, a teoria pelo menos torna explicável o surgimento da multiplicidade de seres vivos que habita o planeta. Com Darwin, Deus se torna mais irrelevante. E essa é uma ideia difícil de engolir para todos aqueles que acalentam a hipótese de um ente supremo.

Assim, eu não me surpreenderia se os religiosos que flertaram com o darwinismo comecem a dele afastar-se. Certamente não de volta para o criacionismo bíblico, mas para uma sistematização da teoria do design inteligente, a qual, embora seja epistemologicamente insustentável (não passa do velho criacionismo vestindo um jaleco de cientista), parece gozar de forte popularidade em todo o mundo. Ela é, por assim dizer, a consequência natural da teologia selvagem que procura reunir Deus e o bê-á-bá da ciência ensinada nas escolas.

Com o fim das disputas ideológicas em torno do modo de produção, é cada vez mais para temas como evolução, aborto, drogas que as guerras culturais tendem a migrar.

Hélio Schwartsman

Fonte: Folha Online, 8 abr 2010

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