Lixo despejado no mar e nos rios de todo o mundo viaja pelas correntes oceânicas e invade a costa brasileira. De caixas de leite a feijões enlatados, pesquisador baiano encontrou produtos originados em 75 paÃses
O imaginário coletivo está cheio de histórias de cartas que chegam à beira da praia dentro de garrafas atiradas ao mar. As mensagens trariam pedidos de ajuda, mapas do tesouro e recados de amor. Lenda ou não, se o costume nascesse hoje, esse “correio marÃtimo†poderia vir em caixas de leite, latas de extrato de tomate e feijão, embalagens de produtos de limpeza e de talco. São esses os itens que “desembarcam†com frequência na costa brasileira segundo monitoramento da ONG Global Garbage (Lixo Global). Tudo importado. Em quatro anos e cerca de 20 caminhadas pela costa, 6.576 embalagens de 75 paÃses foram encontradas só no litoral da Bahia. Achados que revelam o lixo marinho como uma séria ameaça à vida nos oceanos. Reportagem de Júlia Kacowicz, no Correio Braziliense.
Segundo o fundador da instituição, Fabiano Barretto, a maior parte de itens “estranhos†é jogada no oceano pela tripulação de cargueiros, cruzeiros e outras embarcações, seguindo pela correnteza até a costa brasileira. Outra parte, que aporta em maior volume, vem pelo descarte direto em rios e canais. Nesse caso, os produtos mais comuns são garrafas e embalagens plásticas. “Os itens entram na correnteza e se aproximam da costa. A Bahia tem um trecho que recebe muitas correntezas. Por isso, iniciamos o projeto por lá. Mas a intenção ainda é cobrir toda a costa (do paÃs)â€, diz.
Ele ressalta que a “nacionalidade†dos produtos não representa necessariamente os paÃses nem os habitantes responsáveis pela sujeira. “Os produtos foram fabricados nesses locais, mas podem ter sido jogados na praia ou no mar por pessoas de outras origensâ€, destaca Barreto, que deu inÃcio ao projeto a partir de uma caminhada por um trecho deserto da Costa dos Coqueiros (BA). No passeio, ele ficou curioso sobre a quantidade de lixo espalhado na praia e, em 2001, realizou o primeiro levantamento durante cinco dias na Praia do Forte, coletando 94 embalagens de 26 paÃses.
Foi o ponto de partida para uma empreitada anual. Os dados catalogados indicaram os Estados Unidos como campeões do ranking de origem do lixo, seguidos pela Alemanha e pela Ãfrica do Sul. Segundo o fotógrafo, a chegada dos itens africanos realça a força da correnteza entre os dois continentes, fenômeno sinalizado por um carta anteriormente encontrada.
O baiano esclarece que a iniciativa tem o objetivo de chamar a atenção para o problema da presença dos resÃduos nos oceanos. “As praias são locais, mas o lixo é globalâ€, afirma. No ano passado, o grupo criou a Associação Praia Local Lixo Global como maneira de pressionar o governo a implantar um programa nacional de monitoramento marinho. Entre as reivindicações, está a criação de mecanismos que impeçam os navios de despejar o lixo no mar. A maioria dos portos não tem nenhum procedimento de coleta controlada do lixo.
Em Pernambuco, os portos de Recife e de Suape oferecem serviços do tipo, mas não monitoram se a quantidade de resÃduo descartada está de acordo com a tripulação e o tempo de permanência da embarcação no mar. Outra iniciativa da associação será sensibilizar a população sobre a responsabilidade do descarte nas praias. A coordenadora do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mônica Costa, estima que 80% do lixo encontrado nas praias chega pelos rios. Mas lembra que os frequentadores também contribuem de forma alarmante. “O volume de lixo acompanhou o crescimento da população nas zonas costeiras e hoje mostra que o lixo é um problema globalâ€, aponta.
Ameaça
Além de provocar a perda da qualidade das praias, o lixo global causa a morte de tartarugas, aves e peixes. Os animais confundem os objetos com alimento, especialmente os plásticos, e morrem sufocados. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) estima que o lixo acumulado nos oceanos seja o responsável direto pela morte de 1 milhão de aves e mamÃferos por ano. Um acúmulo que ganhou notoriedade pelos lados do PacÃfico, a 2 mil quilômetros do HavaÃ, formando uma grande ilha de lixo.
Na região, os navegadores e pesquisadores identificaram pedaços de plástico, redes de pesca, roupas e garrafas que foram se acumulando no oceano por conta das correntezas na região. Alguns cientistas americanos também teriam identificado uma outra ilha de lixo no Oceano Atlântico Norte, possibilidade que foi apresentada em um encontro cientÃfico em Portland (EUA) neste ano. Lá, os plásticos também estavam presentes, assim como em Fernando de Noronha, como constatou um estudo da UFPE.
Como não existe uma indústria de plásticos na ilha e as instalações portuárias são usadas para pequenas embarcações, os pesquisadores acreditam que os fragmentos de plástico vêm do mar. “O lixo deixado nas praias é um problema em nÃvel global e o assunto precisa de atençãoâ€, diz a doutoranda em oceanografia e diretora cientÃfica do Projeto Lixo Marinho (Global Garbage e Associação Praia Local Lixo Global), Juliana Sul. Ela acredita que a identificação do lixo ajuda no controle, mas a participação da sociedade é fundamental para evitar danos ambientais.
Experimento
Em 2001, um navegador italiano “cedeu à tradiçãoâ€, colocou um papel dentro de uma garrafa e a jogou ao mar. O gesto nada tinha de romantismo. Era uma experiência cientÃfica. O papel continha o nome da embarcação, a data e o local (as coordenadas) em que a garrafa havia sido atirada, além do nome e endereço do velejador. A embalagem foi descartada em 26 de setembro de 2001 a 93,14 km da Ilha de Santa Helena, próximo à Ãfrica. Quase cinco meses depois, foi encontrada pelos integrantes da Global Garbage na Costa dos Coqueiros, na Bahia. Exatamente em 8 de fevereiro de 2002. A garrafa percorreu quase 4 mil quilômetros, num trajeto semelhante ao percorrido pelo velejador brasileiro Amyr Klink entre a Ãfrica e o Brasil. O episódio indica como outras embalagens estrangeiras chegam à costa, em especial as garrafas plásticas, porque flutuam na água. Mostra também como os objetos podem
se espalhar pela costa.
EcoDebate, 04/11/2010