Narcofobia – Proibição às drogas e geração de abusos contra os direitos humanos

A poor man sitting at the helm of a boat deep ...

FERNANDA MENA e DICK HOBBS
Centre for Human Rights, departamento de sociologia, London School of Economics, Londres, Reino Unido

RESUMO: Este estudo trata dos aspectos negativos da proibição mundial às drogas. O estudo argumenta que a proibição, propelida por moralismo e não por pesquisa empírica, cria um mercado negro regulado por empreendedores violentos e que, especialmente nos países em desenvolvimento, onde há falta de oportunidades econômicas para os pobres, oferece as únicas opções viáveis de emprego. O estudo sugere que os resultados de legislações experimentais deveriam ser levados a sério. A militarização dos esforços de aplicação da proibição restringiu os avanços da democracia e gerou violência e intensificação dos abusos contra os direitos humanos. Em conclusão, o trabalho argumenta que o atual sistema de proibição mundial cria mais problemas do que resolve, e que as questões de produção e comércio de drogas precisam ser enfrentadas por meio de regulamentação e com base em uma perspectiva de desenvolvimento.

Introdução a um velho/novo debate

Em 1909, o primeiro esforço internacional de proibição das drogas aconteceu, em Xangai, com a criação de um sistema de controle de drogas baseado em proibição, e estabelecendo em todo o mundo um princípio, incorporado às leis internacionais, de proibir a produção, comércio e consumo de drogas. Ainda que a aspiração de eliminar tanto a oferta quanto a procura de drogas seja contenciosa, foi reiterada nas revisões periódicas da política internacional quanto às drogas conduzidas pelas Nações Unidas, a despeito dos resultados negativos destacados tanto por estudiosos acadêmicos (Friedman 1989; Nadelmann 1990; Levine 2003; Miron 2004; Bancroft 2009; Barrett e Nowak 2009) quanto pela sociedade civil (Transnational Institute 2008; Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia 2009).

A principal alegação dos defensores da proibição é que a criminalização reduz o uso, e portanto os danos à saúde, que aumentariam de maneira exponencial caso houvesse legalização. No entanto, se formos além da fachada liberal, autores como Wilson e Bennett argumentam em última análise que “o uso de drogas é errado” (Bennett 1991: 339), e que “a ilegalidade [das drogas] deriva em parte de sua imoralidade” (Wilson 1990: 26). Argumentamos, pelo contrário, que a proibição às drogas prejudica a sociedade de diversas maneiras, especialmente ao criar um mercado negro que não se preocupa com os direitos humanos, já que os participantes não contam com acesso ao sistema legal e judicial a fim de resolver disputas, e como consequência procuram outros métodos de obter soluções, especialmente a violência (Miron 2004: 12; Hobbs, no prelo).

Além disso, “a ilegalidade cria lucros obscenos que financiam as táticas mortíferas dos senhores das drogas; a ilegalidade leva à corrupção de policiais e autoridades; a ilegalidade monopoliza os esforços das forças honestas de defesa da lei, de modo que lhes faltam recursos para combater crimes mais simples, como roubos, furtos e assaltos” (Friedman 1989: 2). No entanto, os argumentos convencionais negam uma conexão direta entre a proibição e o advento do crime organizado, uma forma de “negação interpretativa” (Cohen 2001) na qual os abusos contra os direitos humanos são reconhecidos, mas não suas causas exatas. A posição ortodoxa no debate quanto às drogas oculta os problemas causados pela proibição às drogas ilícitas, distorcendo os danos que ela causa muitas vezes aos mais vulneráveis em uma sociedade. “Na pior das hipóteses, ela pode até contribuir para causar males” (Bancroft 2009: 72).

A primeira seção deste estudo se baseará em uma revisão dos desdobramentos quanto à política com relação às drogas, do livre comércio às proibições, tomando por foco sua relação com interesses comerciais e sugerindo que os discursos morais foram fundamentais para reforçar o apoio à “guerra contra as drogas”. Em segundo lugar, examinaremos os tratados da ONU sobre as drogas agora em vigor e investigaremos os danos que geram ao impor metas onerosas aos governos sem garantir prestação de contas no que tange aos direitos humanos. Em seguida, consideraremos a descriminação das drogas em Portugal, depois de 2001, e por fim analisaremos o caso do Brasil, demonstrando que os resultados perniciosos da proibição são agravados por traços comuns às novas democracias.

Por fim, concluiremos que a proibição às drogas é cada vez mais dispensiosa, prejudicial à saúde e ao bem-estar e contraproducente no que tange ao estabelecimento de uma ordem internacional que tenha por objetivo o desenvolvimento, a segurança e a proteção aos direitos humanos.

De mercadorias a malfeitoras

Historicamente, as drogas foram mercadorias importantes no comércio mundial, e importante fonte de receitas para os governos dotados de impérios ultramarinos; por exemplo, os holandeses, ingleses e portugueses traficavam ópio nos séculos 17 e 18 (Mcallister 2000: 10). O primeiro passo em direção à proibição emanou de uma mudança na maneira pela qual as drogas eram percebidas, e na transição do liberalismo econômico, baseado no livre mercado, para uma postura proibicionista baseada em imagens de degeneração e desvio moral, que estabeleceu as fundações para o proibicionismo contemporâneo.

Por volta de 1900, a ideia de “instituir controles reforçados pela autoridade da profissão médica, agências governamentais e agentes morais ” (Mcallister 2000: 17-18) e o debate sobre as drogas passaram a combinar abordagens aparentemente paradoxais: os esforços de sindicalização dos médicos, os interesses comerciais dos governos e os apelos morais das igrejas com relação a obstáculos contra novas conversões (Ibid: 14). O papel dos movimentos religiosos na cruzada antidrogas foi crucial. Taylor descreve a campanha internacional pela proibição às drogas como “diplomacia missionária” (1969: 29), e no Reino Unido diversas organizações religiosas, especialmente os Quakers, fundaram sociedades de combate ao ópio e obtiveram o apoio de parlamentares à sua causa (Nadelmann 1990: 503). Nos Estados Unidos, o bispo Charles Henry Brent, da Igreja Episcopal, se tornou líder internacional do movimento de combate às drogas. Antigo missionário no Extremo Oriente, Brent publicou em 1904 um relatório no qual argumentava pela proibição total do ópio, com base em suas observações quanto à degeneração moral dos nativos (Musto 1987: 28).

A noção do ópio como “malévolo” também foi enfatizada tanto pelo governo chinês quanto pelo norte-americano. O primeiro precisava de um bode expiatório para reforçar o nacionalismo e a soberania (Dikotter 2003: 2), e para o segundo, embora não tivesse interesses significativos no comércio de ópio, o florescente mercado chinês era atrativo o suficiente para que desejasse conquistar a simpatia do governo da China (Mcallister 2000: 27-30). O propulsor definitivo para o controle aos narcóticos, portanto, foi produto dos esforços combinados de agentes morais, políticos nacionalistas e das aspirações econômicas dos Estados Unidos. [Coincidência ou não, é interessante reparar que, na China, de acordo com Dikotter (2003), “a mercadoria mais beneficiada pela proibição foi o cigarro industrializado comum”, um mercado dominado pelos Estados Unidos e Reino Unido.]

O bispo Brent presidiu a primeira reunião internacional que tinha por objetivo regulamentar o comércio de ópio, a Comissão do Ópio de Xangai, em 1909, realizada apenas algumas décadas depois da última das Guerras do Ópio (1856-1860) travadas entre Reino Unido e China, cujo propósito era garantir a importação de ópio à China (Hanes e Sanello 2003). Uma das recomendações da Comissão de Xangai era que o ópio não pudesse ser exportado a países cujas leis nacionais proibissem seu consumo. Depois da reunião de Xangai, no entanto, continuava a entrar ópio na China, principalmente por intermédio de comerciantes portugueses, e os Estados Unidos apresentaram uma visão quanto ao controle internacional das drogas que tinha por base o suprimento, por meio de medidas como limitações ao cultivo, controle da fabricação e distribuição, equalização de controles nacionais e instituição de direitos recíprocos de busca de embarcações suspeitas (Taylor 1969: 83-4).

Diversos países responderam solicitando alterações. A Itália desejava que a maconha e o haxixe fossem incluídos no anteprojeto, e Portugal asseverou que não alteraria sua política quanto ao comércio de ópio a menos que todos os demais governos envolvidos no negócio concordassem em fazer o mesmo. A França se opôs ao requisito de revisão nas leis nacionais, e o Reino Unido insistiu em que o tratado deveria incluir drogas industrializadas como a morfina, heroína e cocaína. A Alemanha, principal exportadora de drogas industrializadas, objetou a essa proposta, enquanto a Turquia, que tinha papel importante no comércio de ópio, simplesmente se recusou a participar da conferência (Mcallister 2000: 31-32). O próximo passo na história dos esforços mundiais de combate às drogas aconteceu nas Conferências sobre o Ópio de Haia (1912/14), que estabeleceram o primeiro tratado internacional de controle de drogas. Quarenta e quatro países assinaram a convenção mas apenas alguns poucos a ratificaram (Willoughby 1976).

Depois da Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações se tornou o fórum central para questões transnacionais e, porque essa arena mundial era ocupada por representantes de Estados, o papel dos agentes morais, tais como a Igreja, se tornou menos evidente. A carta básica da Liga mencionava explicitamente o controle de “drogas perigosas” como objetivo, e a Convenção de Haia sobre o Ópio foi incluída nos acordos de paz do Tratado de Versalhes (Levine 2003: 146). No entanto, a falta de apoio de parte dos Estados Unidos, que jamais aderiram à Liga, enfraqueceu consideravelmente as iniciativas que tentavam criar um sistema permanente de controle mundial de drogas.

O advento das Nações Unidas, em 1945, e o estabelecimento do controle de drogas como uma de suas prioridades, abriram caminho para a Convenção Unificada sobre as Drogas Narcóticas, de 1961, ratificada por 98% dos países do mundo. Combinada à Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, e à Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, ela criou o sistema atual de proibição às drogas (Chatterjee 1981). Foram necessárias mais de cinco décadas de reuniões internacionais, intensos esforços diplomáticos e insistentes discursos de demonização para que os proponentes do combate às drogas conseguissem consenso quanto à sua proibição mundial.

A convenção de 1961 tinha por foco drogas baseadas em plantas, tais como ópio, heroína, coca, cocaína e cannabis, limitando sua produção, comércio e uso exclusivamente a propósitos médicos e científicos. Também criou o Conselho Internacional de Controle de Narcóticos (INCB), que fiscaliza a implementação das convenções da ONU sobre as drogas, “operando como uma Organização Mundial de Comércio em negativo”, para garantir que os signatários não permitam que drogas narcóticas sejam produzidas, comerciadas ou vendidas (Bancroft 2009: 117).

Dez anos mais tarde, a convenção de 1971 foi adotada como resultado da crescente preocupação quanto a drogas sintéticas (anfetaminas, barbitúricos e LSD), e em 1988 uma nova convenção foi adotada quanto ao tráfico de drogas, introduzindo o requisito de que cada signatário tornasse a posse de drogas para consumo pessoal um crime sob suas leis nacionais (Bewley-Taylor 2003: 173). Em 1998, uma sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas, com as drogas como tema, divulgou uma Declaração Política (2) que reiterava o compromisso anterior da ONU para com um “mundo livre das drogas” até 2008. [A/RES/S-20/2, “Declaração Política”, 20ª sessão especial da Assembleia Geral, 9ª Reunião Plenária, 10 de junho de 1998.]

A política do medo: o discurso antidrogas e antiestrangeiros

Até o final do século 19, substâncias como cocaína, cannabis ou heroína não eram enquadradas sob uma categoria única de “drogas” e, de acordo com Bancroft, a categorização como “drogas” é em si uma função do poder: “A inebriação se torna desvio, antissocial, um vício, requerendo vigilância e possível intervenção coerciva” (2009: 17-20). Essa “política do medo”, lançada no final do século 19 a fim de lidar com o comércio e consumo de substâncias capazes de alterar estados de consciência, marca um desvio de um discurso comercial para um discurso mais moral, e foi marcada pela maneira por qual as drogas passaram a ser definidas, rotuladas, estigmatizadas e, portanto, controladas (Best 1989).

Em 1902, o principal argumento britânico em defesa do comércio do ópio era o de que “se não fornecermos ópio à China, os chineses mesmos o fariam, e se alguém deve fornecê-lo a eles, o lucro por fazê-lo deveria caber a nós” (The Times 1902: 5). Pouco mais de 20 anos mais tarde, os comerciantes de drogas já passavam a ser representados como “fornecedores de devassidão” (The Times 1922: 13) e “inimigos da sociedade” (The Times 1922: 19). De 1851 a 1900 (exclusive), houve apenas um artigo noticioso publicado pelo Times que combinava os termos “droga” e “mal”. Entre 1900 e 1940, quando entraram em vigor os primeiros acordos internacionais de combate às drogas, 1.504 artigos mencionavam “drogas” e “mal” lado a lado (Mena 2009).

Essa estratégia de estigmatização e controle também era aplicada à crescente imigração de trabalhadores chineses que ingressavam nos Estados Unidos no início do seculo 20, e a associação deles ao ópio criava a ilusão de virtude interna e de “malevolência” externa, o que legitimava a agência do governo contra a “ameaça” (Silverstone 2006: 57- 58). A Associação Farmacêutica Americana (APhA) e seu Comitê sobre a Aquisição do Hábito das Drogas, que funcionou de 1898 a 1902, reforçou o estereótipo quanto aos chineses ao escrever que “se o chinês não consegue se virar sem o seu ‘bagulho’, podemos passar sem ele” (Reinarman 1979; Muso 1987). A demonização dos chineses culminou com a exclusão permanente dos trabalhadores chineses dos Estados Unidos, decretada em 1902 (Musto 1987:30).

A popularidade emergente da cocaína nos anos 1900 permitiu que esse processo de alterização fosse estendido à população negra norte-americana, já oprimida. Notícias publicadas pelo New York Times em 1914 asseveravam que a cocaína levava os “negros” a cometer “crimes violentos” e os tornava mais resistentes às balas da polícia (New York Times, 02/08/1914). A estigmatização dos negros por meio das drogas sustentava políticas racistas e soluções violentas; “o medo do negro sob efeito da cocaína coincidiu com o pico dos linchamentos, segregação legal, e leis eleitorais criadas para remover dele o poder político e social” (Musto 1987: 7). A articulação de julgamentos moral de “bem” e “mal” aplicados a determinados grupos étnicos definia “agendas de cultura pública” (Silverstone 2006: 57), que criavam não apenas apoio mas demanda concreta por medidas punitivas.

Depois da Segunda Guerra Mundial, conspirações internacionais eram frequentes no mundo ocidental, e o diretor do Serviço Federal de Narcóticos (FBN) norte-americano, Harry J. Anslinger, era responsável não apenas pela política de fiscalização a drogas como estava envolvido na política externa norte-americana no pós-guerra; nos anos 50, Anslinger fornecia a jornalistas narrativas conspiratórias nas quais alegava que a República Popular da China fornecia drogas aos Estados Unidos a fim de financiar uma futura guerra e, ao mesmo tempo, debilitar “a saúde e a fibra moral de seus inimigos” (Woodiwiss 1993: 3). Em resumo, a associação de drogas às noções de “mal” que rotulavam os chineses, norte-americanos negros e o comunismo constitui um exercício de poder que culmina na constituição de uma ideologia moral e política -uma versão emoldurada da realidade que estabelece barreiras à plena interação e compreensão, servindo de base à exclusão social e legitimando a hostilidade e a violência (Picketing 2001: 48-49).

Declaração de guerra

Em 1971, o presidente Nixon identificou as drogas como “o inimigo público número um” dos Estados Unidos, e declarou “guerra às drogas”, proclamando que “todos os filhos e filhas” dos Estados Unidos estavam “em risco” devido às drogas (Woodiwiss 1988: 221-2). A invocação à unidade da família norte-americana em companhia do termo “guerra” era atraente para a mídia, e articulou discursos que criaram uma “infraestrutura para engendrar consentimento à guerra contra as drogas” (Elwood 1994: 11-12).

A presidência Reagan, iniciada em 1981, viu a primeira dama Nancy Reagan criar pressão por uma proibição internacional, durante uma reunião na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1988, especialmente ao oferecer apoio ao tratado que se tornaria a Convenção de Viena Contra Drogas Narcóticas e Substâncias Psicotrópicas (National First Ladies Library 2008; Woodiwiss e Hobbs 2009). O presidente Reagan também usava metáforas bélicas em seus discursos contra as drogas, contribuindo para um pânico moral (Hawdon 2001: 419-445) que exigia ação baseada em um plano de oito pontos cujo objetivo era “paralisar o crime organizado” (Woodiwiss 1988: 200), expandir o orçamento de combate às drogas e transferir a responsabilidade pelo policiamento das drogas da Administração de Combate a Drogas (DEA) ao Serviço Federal de Investigações (FBI).

Em 1987, a ONU anunciou um novo tratado internacional contra o tráfico de drogas, e em 1988 uma força-tarefa do Grupo dos 7 (G7) priorizou a ação internacional contra a lavagem de dinheiro a fim de confiscar os lucros auferidos com as drogas. Em dezembro do mesmo ano, os países do G7 incorporaram essas propostas à Convenção da ONU contra o Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas e Substâncias Psicotrópicas (Friman 1991: 880-2; Woodiwiss e Bewley-Taylor 2005: 17-21). Por volta de 2005, 173 países haviam assinado a convenção (Bewley-Taylor 1999: 171-4).

Por motivos geográficos bem como por ser a principal região produtora de folhas de coca, a América Latina estava na vanguarda da “guerra às drogas” norte-americana. Em 1989, a “Operação Just Cause” marcou a invasão do Panamá por soldados norte-americanos a fim de depor o general Manuel Noriega, devido às suas supostas conexões com o tráfico de drogas. Na Bolívia, as forças de segurança eram treinadas pelos Estados Unidos, e grupos de defesa dos direitos humanos reportaram execuções sumárias e detenções ilegais de plantadores de coca (Ledebur 2005, p. 144). Em 1998, uma operação de erradicação forçada chamada “Plan Dignidad”, que tinha por objetivo eliminar as safras “ilícitas” em prazo de cinco anos, se transformou em uma série de confrontos entre os “cocaleros” (plantadores de coca) e forças policiais e militares, durante os quais Evo Morales emergiu como líder, antes de ser eleito presidente em 2005.

No começo dos anos 2000, o “Plano Colômbia” deu início a um pacote de assistência militar de US$ 1,3 bilhão, ainda que a longa e complexa guerrilha colombiana e o registro negativo do exército colombiano quanto aos direitos humanos (Sweig 2002: 130) representassem ameaça adicional ao sucesso da iniciativa. De acordo com o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, o número de pessoas deslocadas internamente (IDPs) na Colômbia em 2008 equivalia ao encontrado no Iraque, e o número de refugiados atingia os 374 mil.

A militarização dos esforços de combate às drogas foi engendrada pelos Estados Unidos em toda a região exatamente quando a América Latina estava passando por uma “terceira onda de democratização” (Huntington 1991) que tentava superar décadas de golpes militares e ditaduras, e o reforço às forças armadas representou um revés para as frágeis democracias da região, suas instituições e seus processos de prestação de contas (Youngers e Rosin 2005: 343). Além disso, os programas de erradicação e substituição de safras tendiam a ser efetivos em curto prazo mas inúteis e prejudiciais em prazo mais longo. Inúteis por que as safras substitutas se provaram menos lucrativas, e levaram os agricultores a retornar à coca posteriormente. Prejudiciais porque muitas das estratégias de erradicação envolviam o uso de herbicidas tóxicos que causavam defeitos congênitos, doenças e danos ambientais (del Olmo 1987, citado em Johns 1992: 52). Os efeitos de longo prazo sobre o meio ambiente são especialmente sérios porque “o segmento mais pobre da população depende totalmente da terra” (Johns 1992: 54).

Uma estratégia adicional da “guerra às drogas” era “certificar” os países por sua cooperação com os esforços norte-americanos de combate às drogas, e aqueles que não conseguissem satisfazer os padrões norte-americanos ficariam sujeitos a sanções econômicas, tais como a retirada de verbas de assistência ou benefícios comerciais (Bullington 1993: 49; Youngers e Rosin 2005: 22). No entanto, deve ser enfatizado que, embora a “guerra às drogas” dos Estados Unidos tenha causado pressão adicional sobre as políticas latino-americanas quanto às drogas, seus objetivos coincidiam com o estabelecido pelas convenções da ONU sobre as drogas.

Políticas da ONU quanto às drogas: inconsistência e direitos humanos

Esse estudo elucidou a série de estigmatizações que sustentaram o advento e avanço do sistema proibicionista de controle de drogas, suas práticas de policiamento e algumas das consequências perniciosas. No entanto, é necessário iluminar de que maneira esses desfechos estavam entrelaçados à negligência quanto a princípios dos direitos humanos, nas políticas da ONU quanto às drogas (Bewley-Taylor 2005: 423). A Carta da ONU, o documento fundador das Nações Unidas, tem primazia sobre outros tratados (UNODC 2008: 218).

Seu artigo 1° afirma, no parágrafo 1, que o propósito da ONU é “tomar medidas coletivas efetivas… para a supressão de atos de agressão ou outras violações da paz”. O parágrafo 3 do mesmo artigo dispõe que a ONU deve promover e encorajar “o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todos, sem distinção”. De acordo com esse arrazoado, os órgãos da ONU devem ter a “supressão de atos de agressão” e o “respeito aos direitos humanos” como princípios soberanos. Além disso, a primazia dos direitos humanos foi encapsulada em outro dos documentos fundadores da ONU: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). No entanto, como detalhamos acima, o proibicionismo que ocupa posição central na legislação internacional quanto às drogas sustenta um mercado negro e toda uma rede de ilegalidade e crime, inspirando exclusão social e estratégias de policiamento cada vez mais abrasivas.

Essa conexão de causa e efeito foi definida pelo UNODC (2009) como “efeitos inesperados do controle de drogas”, no preâmbulo para o Relatório Mundial sobre as Drogas 2009, e um relatório anterior da ONU sobre “adaptar o controle de drogas aos seus propósitos”, havia enumerado cinco consequências “imprevistas” e “inesperadas” do controle de drogas.

Primeiro, o estudo reconheceu a ascensão de “um imenso mercado negro criminoso”, como resultado da proibição de drogas. Segundo, um “deslocamento de políticas” sob o qual recursos eram retirados de áreas como a saúde pública, em benefício da segurança pública. Terceiro, um “deslocamento geográfico” que retira a produção de drogas dos locais mais repressores. A quarta consequência era um “deslocamento de substâncias”, já que tanto usuários quanto fornecedores se moviam de substâncias controladas para outras sujeitas a controles falhos ou fracos, ainda que possam ser mais daninhas (como no caso do crack ou da metanfetamina). Por fim, o estudo reconhece a marginalização e exclusão social sofridas pelos usuários de drogas (UNODC 2008: 10-11).

O reconhecimento pela ONU das consequências da proibição a drogas sugere que as políticas internacionais quanto às drogas foram adotadas com pouca atenção às suas potenciais consequências, e com uma falta de mecanismos de prestação de contas. Seria lícito argumentar que essas consequências “imprevistas e inesperadas” representam violações de direitos humanos fundamentais (a saber, os artigos 3°, 5°, 13° -parágrafo 1- e 28°). Morte (artigo 3°), tortura (artigo 5°) e deslocamento forçado por guerra de guerrilha (artigo 13°, parágrafo 1) foram todos gerados, de uma ou outra maneira, pelo mercado negro que caracteriza os atuais fluxos mundiais e locais de drogas. Portanto, se torna possível alegar que o atual sistema de controle de drogas exacerba as condições para “uma ordem social e internacional na qual os direitos e liberdades estabelecidos” pela Declaração Universal dos Direitos Humanos não podem ser “plenamente realizados” (artigo 28°).

Chinkin (1998) articula o desequilíbrio entre leis internacionais e de direitos humanos ao argumentar que “as leis de direitos humanos efetivas precisam ser plenamente integradas à substância e procedimentos de outros ramos das leis internacionais, tanto para a determinação de causas de violações de direitos humanos quanto para garantir que elas sejam levadas em conta em processos decisórios de todos os tipos. Não é esse o caso no momento” (Chinkin 1998: 117). No nível dos tratados sobre drogas, as políticas internacionais quanto às drogas foram desenvolvidas e interpretadas “em um vácuo no que tange às leis de direitos humanos, com pouca referência às normas dos direitos humanos e pouca consideração às obrigações de direitos humanos que deveriam respeitar” (Barrett e Nowak 2009: 451).

Barrett e Nowak oferecem inúmeros exemplos de inconsistências desse tipo, por exemplo o uso de herbicidas virulentos em políticas de erradicação de safras, espancamentos e ameaças de morte a fim de obter informações e confissões de suspeitos de drogas na Indonésia (Nowak 2008) e a pena de morte para delitos relacionados a drogas ainda vigente em mais de 30 países. Batidas policiais ostensivas em comunidades pobres, muitas das quais envolvendo o uso irresponsável de armas de fogo e a execução de supostos criminosos, também são mencionadas pelos autores. No Rio de Janeiro, o secretário da Segurança afirmou que os conflitos violentos eram uma “pílula amarga” que os moradores de favelas teriam de engolir se desejavam se libertar das quadrilhas de traficantes de drogas em suas comunidades (ver Phillips 2007).

Porque o sucesso das políticas quanto às drogas é medido com base nas toneladas de drogas apreendidas e no número de violadores das leis de drogas detidos, “não existe escrutínio dos processos em termos de direitos humanos” e “nenhuma forma de avaliação de direitos humanos nos projetos de controle de drogas” (Barrett e Nowak 2009: 471). Embora seja importante enfatizar que as agências da ONU não endossam o uso de herbicidas venenosos, torturas, pena de morte ou violência deliberada para atingir objetivos relacionados às drogas, é extremamente relevante dar a essas consequências posição central no debate quanto às drogas. Serão intrínsecas a um regime proibicionista? Como minimizar esses danos?

Certos objetivos, tais como a “erradicação” do cultivo e a eliminação das “raízes” do abuso de drogas -desconsideradas as dúvidas quanto à viabilidade desse tipo de proposta-, foram determinados pela Convenção de 1988 como metas a serem atingidas por meio de “medidas apropriadas” em nível nacional, e é responsabilidade de cada país escolher como atingi-las. A ONU poderia ser responsabilizada pela repercussão de suas políticas dentro das fronteiras de um país? Alguns estudiosos e organizações argumentam que sim. Apontam para “cumplicidade da ONU” nessas violações, uma abordagem tornada possível depois que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) apontou, em 2004, que uma organização pode ser considerada cúmplice de violações de direitos humanos caso “tolere, ou deliberadamente ignore”, abusos (Beckley Foundation 2008: 6, Barrett e Nowak 2009: 474). Depois que Kofi Annan afirmou que os direitos humanos são um dos pilares da ONU (Annan 2005), parece claro que a política internacional quanto às drogas contraria essa cláusula.

Sociedade civil: a busca de uma abordagem pragmática

No final de 2009, um grupo de 14 organizações internacionais, entre as quais a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia -co-presidida por ex-presidentes do Brasil, Colômbia e México- lançou um apelo à ação chamado “Apoio à Reforma da Política Mundial Quanto às Drogas”. O documento afirmava que a “guerra às drogas” se havia tornado uma guerra contra o povo, e propunha ações baseadas nas “provas esmagadoras disponíveis” de que criminalizar as drogas é “tanto contraproducente quanto altamente destrutivo” (Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia 2009).

A Comissão também afirmou que “a violência e o crime organizado associado ao comércio de narcóticos são problemas críticos na América Latina atual” (Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia: 5), e pressionou por uma “urgente” revisão aprofundada das políticas quanto a drogas vigentes, “à luz de seus enormes custos humanos e sociais, e ameaça às instituições democráticas” (ibid, 2009: 5).

O relatório afirma que, ao longo dos últimos 10 anos, a América Latina testemunhou “uma ascensão no crime organizado causada tanto pelo comércio internacional de narcóticos quanto pelo crescente controle exercido por grupos criminais sobre os mercados e territórios nacionais; um crescimento em nível inaceitável da violência relacionada às drogas, que afeta a sociedade inteira e especialmente os mais jovens e os mais pobres, a criminalização da política e a politização do crime, bem como a proliferação de conexão entre essas duas esferas, refletida na infiltração das instituições democráticas pelo crime organizado”, e “a corrupção de funcionários públicos, do sistema judiciário, governos, do sistema político e especialmente das forças policiais encarregadas de impor a lei e a ordem” (Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia 2009: 5).

A Comissão afirma que a proibição vem sendo desastrosa, e indica que as violações de direitos humanos foram especialmente prejudiciais para as populações vulneráveis da região, especialmente os agricultores e as comunidades pobres que vivem em áreas controladas pelas organizações de tráfico de drogas. O documento propõe um novo paradigma para a política quanto às drogas que envolveria uma mudança no status dos viciados em drogas, de criminosos a pacientes do sistema de saúde pública, uma avaliação sobre a descriminação da maconha para uso pessoal e um redirecionamento de recursos para “combater os efeitos mais daninhos do crime organizado sobre a sociedade, tais como violência, corrupção institucional, lavagem de dinheiro, tráfico de armas e o controle sobre territórios e populações” (Comissão Latino-Americana Sobre Drogas e Democracia 2009: 10)- exatamente os traços centrais do regime proibicionista quanto às drogas.

Os efeitos da descriminação: Portugal

A experiência da Holanda com sua política quanto às drogas até recentemente era a melhor fonte de indícios quanto a abordagens alternativas para a política ortodoxa de proibição às drogas. Na Holanda, a compra, posse e consumo de maconha, ainda que continuem a ser crimes, foram descriminadas na prática (Cohen et al. 2004: 836). Cohen et al. compararam os índices de uso de maconha em Amsterdã e em San Francisco, onde o uso da droga continua criminalizado, e constataram que o uso da droga na cidade norte-americana era superior ao encontrado na capital holandesa, o que sugere não haver prova de que a criminalização coíbe o uso (Ibid: 838-841).

No entanto, Portugal emergiu como exemplo mais completo, por ser o primeiro país da União Europeia a ter descriminado a compra, posse e consumo para uso pessoal (definido como quantidade média para 10 dias de uso) de todas as drogas, ainda que o tráfico continue criminalizado. A política portuguesa foi implementada em 2001, à luz da deterioração dos problemas com as drogas nos anos 90, especialmente no que tange à heroína. No seu estudo sobre o caso português, Greenwald (2009) afirma que o ímpeto político para a descriminação veio da percepção de que os principais obstáculos a políticas efetivas de administração dos problemas de drogas eram as barreiras ao tratamento e o consumo de recursos impostos pelo regime de criminalização. Greenwald reconhece que a descriminação “não teve efeito adverso sobre os índices de uso de drogas em Portugal, os quais, em numerosas categorias, estão agora entre os mais baixos da União Europeia” (Greenwald 2009: 12). Especialmente se comparado a Estados com regimes severos de criminalização, o uso decaiu entre os adolescentes e subiu um pouco entre os jovens adultos. O número de casos novos de HIV/Aids reportados entre usuários de drogas também caiu significativamente, bem como a mortalidade relacionada às drogas, e a descriminação liberou recursos que foram canalizados para tratamentos e outros programas de redução de danos (Ibid).

Brasil: pobreza, violência e direitos humanos

O Brasil não é grande produtor de ópio ou cocaína, mas toma parte no mercado mundial de drogas como produtor de cannabis, e faz fronteira com os três principais produtores de cocaína: Colômbia, Peru e Bolívia. Como resultado, 15% da exportação de cocaína da América do Sul passa pelo Brasil. Um aspecto crucial é que o Brasil se desenvolveu como importante mercado consumidor para todas as drogas [O Brasil tem a maior população de usuários de opiáceas (635 mil) e cocaína (890 mil) da América do Sul, e apresenta o terceiro maior índice mundial de consumo de anfetaminas, de acordo com o Relatório Mundial sobre as Drogas 2009].

O Brasil tem uma das distribuições de renda mais desiguais do mundo, com cerca de 34% da população abaixo da linha da pobreza.4 Isso é relevante para o comércio de drogas porque “configura uma integração econômica e social perversa para aqueles que sofrem exclusão… as pessoas pobres trabalham perigosamente no varejo de drogas a fim de assegurar lucros imensos nos nódulos superiores” (Zaluar 2001: 370). Em áreas rurais, a cannabis é cultivada em plantações e, de acordo com a promotoria trabalhista do Estado de Pernambuco (a principal área de produção da maconha no Brasil), existem cerca de 40 mil trabalhadores envolvidos na produção de maconha, 10 mil dos quais, pelo que se estima, jovens, “muitos dos quais forçados a trabalhar por quadrilhas criminosas” (Iulianelli 2004: 9-11). [Análise de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 1999, citada por Paes de Barros et al. 2001).]

Nos centros urbanos de grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, a situação é bem mais complexa. Quadrilhas de traficantes de drogas dominam territórios inteiros, os mais vulneráveis dos quais são as favelas nas quais o Estado está ausente e faltam serviços básicos.. Um estudo conduzido no Rio acompanhou 230 jovens que trabalham para “organizações” de comércio de drogas, e concluiu que a motivação econômica era o principal fator de estímulo a que se envolvessem no comércio de drogas, um envolvimento imposto por meio de coerção e de práticas violentas sustentadas pela presença ampla de armamento de uso militar: fuzis, metralhadoras e granadas (Favela Watch 2006; ver também Phillips 2009).

Como mencionado acima, nos mercados negros a violência é usada com frequência porque os sistemas legal e judiciário não são recursos viáveis para a solução de conflitos de negócios relacionados às drogas, e as quadrilhas de traficantes tendem a usar seu arsenal a fim de “ameaçar possíveis competidores, coagir violentamente os devedores, promover acordos frágeis com os policiais que praticam extorsão contra eles e intimidar testemunhas” (Zaluar 2001: 375). Como resultado, o negócio das drogas incorpora práticas violentas tais como coerção, tortura e execuções. O índice geral de homicídios na Europa é de 1,2 morte por 100 mil habitantes, enquanto no Brasil ele atinge os 26,1. Na população dos 15 aos 24 anos de idade, o índice europeu também é de 1,2, e o brasileiro sobe a 51,6 (Waisenlfisz 2008). No Rio, o índice de homicídios sobe a 104,4, e se tomarmos por foco os homicídios entre a população negra e parda do Rio de Janeiro (que apresenta alta concentração nas favelas) da faixa etária dos 20 aos 23 anos, o índice atinge o assustador pico de 370 mortes por 100 mil habitantes (Ramos 2009: 3).

Como afirma Zaluar (2001), não se pode observar os “imensos” índices de homicídio no Brasil sem vinculá-los ao tráfico de drogas; ele aponta para o fato de que diversos estudos sugerem que elevada proporção dos homicídios está relacionada ao narcotráfico (Adorno 1990; Soares et al. 1996; Beato e Assunção 2000): uma proporção estimada entre os 25% e os 52% do total. Um cálculo quanto aos homicídios relacionados a drogas que tome por base essa estimativa mínima (25%) bastaria para constatar que as mortes relacionadas às drogas no Rio superam o terror infligido pelo infame Exército de Resistência do Senhor, em Uganda. O uso da estimativa mais elevada, 52%, faz com que o índice fique acima do constatado em grandes conflitos como os de Serra Leoa e do Afeganistão. Entre 1991 e 1999, a guerra civil de Serra Leoa resultou em 11 mil mortes entre os jovens; durante o mesmo período, no Rio, 23.480 adolescentes morreram devido a feridos causados por disparos de armas de fogo; no conflito de Uganda, cerca de três mil jovens morreram entre 1994 e 1998, enquanto no Rio 12.404 meninos foram mortos a tiros (Dowdney 2003: 114-116).

A polícia também contribuiu de maneira significativa para essas estatísticas de morte brasileiras, por meio de mortes extrajudiciais, especialmente em favelas dominadas por quadrilhas de tráfico de drogas.5 De acordo com o Human Rights Watch World Report 2009, “a polícia é responsável por uma em cada cinco mortes intencionais”. Não estão incluídas nessas estatísticas as vítimas inocentes mortas por balas perdidas durante ações policiais, no curso das quais ocorrem “tiroteios indiscriminados” (HRW 2009: 160). De acordo com outro relatório, da Beckley Foundation (2008), no Brasil “a polícia está envolvida em uma guerra às drogas cada vez mais violenta e letal”, na qual “crianças recrutadas pelas quadrilhas de traficantes são consideradas alvos legítimos pela polícia e atacadas a tiros sem nenhuma hesitação” (2008: 6-7). [Relatórios da Human Rights Watch (1996) e Anistia Internacional (2005) oferecem provas bem documentadas de práticas policiais como tortura e execuções extrajudiciais em áreas de exclusão social.]

A despeito dos extensos relatórios sobre violações dos direitos humanos por parte da polícia no curso dessas operações, o governo ainda tende a apoiar certas operações policiais militarizadas de alto perfil (AI 2008: 74). Esse dado sugere que a “guerra às drogas” produz mais baixas do que muitos conflitos “oficiais”, e a violência que emana da proibição às drogas também acarreta abusos contra os direitos humanos, em termos de vidas, tortura e segurança.

No que tange às mortes por consumo de drogas no Brasil, ainda que exista o potencial de que sejam subestimadas, as overdoses constituem um dano menor se comparadas às mortes associadas à violência causada pelas drogas. Em 2007, 3.866 pessoas foram hospitalizadas devido a abusos de drogas, e 64 delas morreram de overdose. (O UNODC estima as mortes relacionadas a abusos de drogas em 200 mil ao ano, em termos mundiais.) Por outro lado, no Brasil 34.028 pessoas foram hospitalizadas devido a intoxicações causadas por medicamentos de uso legal, e 91 delas morreram. [Dados oficiais do Sistema Nacional de Informações sobre Farmacologia Tóxica (Ministério da Saúde).]

Isso pode acontecer porque o consumo lícito de drogas no Brasil é muito superior ao consumo ilícito, e as seis drogas mais consumidas são, respectivamente, álcool, tabaco, maconha, solventes, tranquilizantes e anfetaminas (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas 2005). Isso pode se relacionar a um fenômeno que a UNODC designa “deslocamento de substâncias” -uma consequência da política de criminalização do uso de certas drogas, o que leva os usuários a procurar outras substâncias, sujeitas a controles menos estritos.

Outro resultado importante da proibição às drogas é o “deslocamento de políticas”. Porque a polícia e o sistema de justiça criminal tendem a se concentrar nos envolvidos em violações das leis de drogas, em lugar de outros criminosos, o crime não relacionado a drogas pode terminar encorajado (Miron 2004: 12), e a pesquisa de Adorno e Pazinato (2009) em São Paulo sugere que as violações relacionadas a drogas são investigadas e punidas de maneira bem mais rigorosa que os homicídios. Outros tipos de “deslocamento de políticas”, porém, podem ser especialmente daninhos nos países em desenvolvimento, que já sofrem de falta de recursos para defender direitos encapsulados pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (ICESC 1996). De acordo com o Ministério da Justiça, o Brasil tem população carcerária de 440.013 detentos, número que quadruplicou nos últimos 12 anos. Destes, 69,049 foram detidos por tráfico nacional ou internacional de drogas. Como exemplo da priorização desequilibrada que o conceito de “deslocamento de políticas” expressa, é interessante considerar serviços muito básicos para a dignidade humana, tais como o saneamento, que se relaciona aos “padrões de vida adequados” definidos sob o Artigo 11° do ICESC. No Brasil, 48% da população não têm acesso a saneamento, e o investimento anual do governo em saneamento é da ordem de US$ 375 milhões, ou 63% dos gastos com os criminosos encarcerados por delitos relacionados às drogas.

Depois de explorar aspectos do relacionamento entre drogas, pobreza e violência, é difícil evitar o fato de que o regime proibicionista exacerba as condições estruturais e situacionais para os abusos contra os direitos humanos.

Conclusão: rumo à regulamentação e desenvolvimento

Este estudo explorou o conceito de que a abordagem proibicionista quanto às drogas promove danos, e sugere que a proibição gera um narcotráfico que depende da violência para resolver disputas, promove a corrupção, e causa deslocamento de recursos e insegurança social; tudo isso tende a ser especialmente prejudicial para os membros mais vulneráveis da sociedade.
Ao revelar o papel dos agentes morais e o peso dos interesses econômicos nos discursos que ajudaram a transformar as drogas de mercadorias em malfeitoras, este estudo evidenciou de que modo os crescentes apelos por controle e vigilância policial severa culminaram na chamada “guerra às drogas”, apesar das violações de direitos humanos que ela cria. As estratégias de combate às drogas se direcionaram à ponta da produção, no mercado de drogas, e são especialmente desvantajosas para os países produtores, que tendem também a ser países em desenvolvimento, com menos influência que os países consumidores (Estados Unidos e Europa, de acordo com a UNODC) nos fóruns decisórios mundiais.

As estimativas brasileiras quanto ao número de homicídios relacionados às drogas oferecem um vislumbre sobre a maneira pela qual os países em desenvolvimento conectados ao mercado mundial de drogas arcam com o ônus dos males da droga, por exemplo os índices elevados de homicídios, e que lhes faltam distintamente os recursos necessários a prover dignidade humana básica. A análise quanto a esses aspectos sugere que as políticas da UNODC têm se preocupado demais com a erradicação de safras e apreensão de drogas. Também sugere que, certamente em termos de direitos humanos, a abordagem proibicionista não se baseia em provas e, pelo contrário, cria condições para os abusos ao negar a relação de causa e efeito entre estes e a proibição.

Afirmamos, portanto, que uma mudança no paradigma proibicionista é necessária para que seja possível um envolvimento com os direitos humanos que vá além da retórica. As alternativas à proibição, porém, também terão de levar em conta as constatações aqui oferecidas. Por exemplo, a legalização pode não ser apropriada porque a natureza de livre comércio do negócio das drogas não leva em conta as preocupações expressas neste estudo, especialmente a disparidade entre fornecedores e consumidores, que corresponde, em termos gerais, a uma disparidade entre países em desenvolvimento e desenvolvidos. Além disso, a legalização provavelmente deixaria em desvantagem os países em desenvolvimento fornecedores de drogas, que já vêm sofrendo os efeitos mais daninhos da proibição, ao colocar o negócio das drogas sob o controle de corporações transnacionais, o que deixaria os pobres envolvidos nas mais arriscadas tarefas em situações vulneráveis que poderiam resultar em migração do mercado de drogas para outros tipos de atividade criminosa. Isso posto, uma perspectiva desenvolvimentista é requerida a fim de pôr fim aos males da proibição sem criar mais danos e injustiça. A regulamentação, portanto, parece ter papel central, pois combinaria uma alternativa à proibição a desenvolvimento e a uma nova ênfase em educação, redução de danos, tratamento e inclusão social. Pois se continuarmos a conceder prioridade mais elevada aos argumentos morais quanto ao consumo de drogas do que às violações dos direitos humanos que a proibição causa, se tornará difícil não repetir a pergunta de Milton Friedman: “Isso ainda pode ser considerado moral?”.

Fonte: Folha SP, 10 out 2010

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