Mesmo em condições de vida ruins e sob recrutamento de islâmicos radicais, somalis que cresceram em Dadaab se negam a voltar
Quando era um jovem em 1991, Abdullahi Salat chegou a Dadaab, no Quênia, fugindo da guerra civil em seu paÃs, a Somália, e encontrou pouco mais do que arbustos e algumas barracas. A mulher que trabalhava para as Nações Unidas e saudou-o no porto seguro, então quase vazio, mostrou-lhe a sua barraca e colocou um punhado de sementes na palma de sua mão.
“Plante-as. Aqui é quente”, lembra-se Salat, agora com 29 anos, de ter ouvido a mulher falar. Mas, em resposta, ele disse que não plantaria naquele dia, que Dadaab não era seu lar e acreditava que iria se mudar em breve. Hoje, conta, “as árvores estão bastante grandes”.
Ao longo dos anos desde que Salat chegou a Dadaab – região árida do Quênia, a cerca de 50 quilômetros da fronteira com a Somália – a população de refugiados local aumentou para cerca de 300 mil, praticamente todos somalis, tornando-a o maior complexo de refugiados no mundo, segundo oficiais da ONU, e uma das maiores cidades do Quênia.
No próximo ano, Dadaab comemorará o seu 20º aniversário. Mas, conforme os conflitos da Somália seguem adiante, a atitude do Quênia para com os somalis têm esfriado e esse conjunto de campos de refugiados se tornou um incômodo problema polÃtico e, alguns afirmam, fonte de insegurança.
Nos últimos meses, intensos combates na Somália enviaram novas ondas de refugiados através da fronteira, oficialmente fechada pelo Quênia em 2007. Na semana passada, as Nações Unidas acusaram soldados quenianos de forçar milhares de somalis que haviam fugido para o Quênia de volta ao seu lado da fronteira.
Em Dadaab, um impasse sobre o que fazer com uma população de refugiados em crescimento constante que levou a uma escassez crÃtica de escolas, centros de saúde e estações de água suscitou temores de que os refugiados estão sendo recrutados pelas partes beligerantes do conflito do qual fugiram.
A situação chamou a atenção da ONU, que recentemente enviou Radhika Coomaraswamy, emissária especial para crianças e conflitos armados à Somália e ao Quênia.
Crianças-soldados
A utilização de crianças-soldados tornou-se um aspecto importante do conflito aparentemente interminável da Somália e o governo de transição do paÃs, que é apoiado pelos Estados Unidos, é conhecido por usar crianças em combate. Como acontece com o Shabab, grupo de insurgentes que controla grande parte da Somália, e os notórios grupos de pirataria do paÃs.
“Tornou-se generalizado, as crianças são consideradas commodities”, disse Radhika. “Elas ficam fascinadas por noções de morte heróica e pela mitologia da guerra”.
Em Dadaab, onde existem mais de 100 mil crianças em idade escolar, o recrutamento militar não é novidade. “Às vezes eles roubam pessoas”, disse Mohamed Ahmed, 20 anos, ao se referir ao Shabab e outros grupos.
Em 2009, o governo queniano foi acusado de apoiar campanhas de recrutamento entre os refugiados dos acampamentos para combater pelo exército somaliano. O grupo Human Rights Watch documentou a contratação na qual disse que homens e rapazes foram atraÃdos com falsas promessas de “pagamento exorbitante” e reivindicações de apoio da ONU para o esforço. O relatório afirma que o Shabab também tentou recrutar refugiados da Somália.
Ainda assim, poucos dos refugiados do Quênia voltam à Somália, segundo funcionários da ONU, e a infraestrutura do complexo parece atestar isso. Dadaab está repleta de supermercados, cinemas, hotéis e ônibus internacionais. Salat, que recebeu sementes para plantar quando menino, agora é marido e pai, e ainda está aqui, trabalhando para o acampamento e ajudando a próxima geração que vem chegando.
Uma estatÃstica pode ser mais reveladora: as Nações Unidas dizem que Dadaab tem 6 mil refugiados de terceira geração, netos daqueles que chegaram aqui primeiro.
Solução?
Mas Dadaab também é uma solução fora da grade nacional. O complexo conta com uma série de poços artesianos para água e a maioria de seus moradores não possui documentação de trânsito para viajar para o resto do Quênia.
“Há uma tendência de ver os campos de refugiados como armazéns para armazenar as pessoas não utilizadas; precisamos tratá-las como pessoas normais”, disse Richard Acland, coordenador da ONU em Dadaab. “Há crianças que vivem aqui cujos pais nunca viram a Somália. Podemos realmente dizer que essas pessoas são estrangeiras?”
Na verdade, Dadaab representa uma questão crÃtica para a comunidade internacional: Como tratar uma emergência humanitária que não acaba? As Nações Unidas querem expandir os acampamentos, mas a violência perpétua da Somália teve um custo a hospitalidade do Quênia e o governo transferiu refugiados de Dadaab no passado.
“A comunidade internacional não sabe como lidar com os campos de refugiados”, disse Catherine Fitzgibbon do grupo Save the Children. “É uma situação de emergência ou é algo permanente?”
Impasse
A questão tem criado um impasse polÃtico. Autoridades humanitárias dizem que a construção de escolas e hospitais é a melhor maneira de proteger os refugiados, mas os doadores hesitam em financiar projetos que incentivem mais refugiados a vir e ficar no paÃs, disse Fitzgibbon.
O impasse tem deixado Dadaab superlotada e com falta de pessoal para o trabalho. Metade de sua juventude – que constitui mais da metade de todos os refugiados – está fora da escola e é alvo fácil para os recrutadores da milÃcia. Hoje, o recrutamento é movido por telefones celulares e agências de viagens.
“É um problema, mas não é algo novo”, disse um motorista das Nações Unidas em Dadaab, que falou sob condição de anonimato para proteger o seu trabalho. Ele disse que recrutadores do Shabab posam como refugiados em ônibus e ligam para outros em seus telefones celulares. Funcionários da ONU foram abordados para servir como intermediários pelos agentes do Shabab, disse. “Eles vão recrutar até quando controlarem a fronteira”, disse.
Autoridades da ONU dizem estar cientes do problema, mas não sabem como, nem quantas pessoas são recrutadas. E cada dia, mais crianças chegam.
Diante dos escritórios administrativos de Dadaab, uma fila de mulheres com bebês nos braços se esconde do sol sob a sombra de uma árvore. Deqo Noor, 25, mãe de três filhos, disse que nem ela nem seu marido têm qualquer trabalho aqui. Ela estava na fila para registrar seu bebê de 2 meses para que pudessem receber rações de comida. “Eu cresci aqui, me casei aqui, eu me tornei mãe aqui”, disse Noor. “Na Somália, tudo que eu sei é guerra”.
Texto de Josh Kron, do The New York Times, 18 nov 2010
Publicado no Último Segundo