Ética e espiritualidade diante dos desafios contemporâneos

[Texto de Armando Hart Dávalos*, IHU, 24 jan 2011]

Pátria é humanidade, sentenciou o mais excelso dos cubanos, José Martí, com o qual proclamava a irrenunciável vocação universal da nossa pátria. Esse conceito faz parte da raiz e percorre a alma da história e das esperanças de Cuba.

Em Cuba, apreciamos os valores espirituais da cultura universal e nos esforçamos para estender pontes de amizade e de entendimento comum, apesar das distâncias geográficas, porque sabemos que o mais importante é a identidade de sentimentos e a comunhão de empenhos em favor da redenção humana.

Enumeremos os desafios que a civilização ocidental enfrenta hoje, um mundo ao qual não somos alheios, posto que, com a globalização da vida social e econômica dos últimos anos, os problemas também se globalizaram. Façamo-lo a partir de perspectiva cultural, pois estou convencido de que é nesse campo em que se debate e se decide o drama da contemporaneidade.

Aí está o desafio que a civilização e a cultura ocidental têm diante de si. Só podem salvar-se do caos e da morte exaltando suas mais formosas tradições humanistas e assumindo-as em todas as suas consequências, isto é, não para servir ao apetite insaciável de uma parte dos indivíduos, mas sim para defender os direitos e os interesses de todos. Isso pode ser compreendido e alcançado se estudarmos e analisarmos o profundo significado de uma expressão martiana: ser culto é a única forma de ser livre.

A cultura está comprometida com o destino humano. Exerce um papel funcional na história. Situada no sistema nervoso central das civilizações, sintetiza os elementos necessários para a ação e o funcionamento da sociedade como organismo vivo.

O pragmatismo e, seu irmão gêmeo, o pensamento tecnocrático fragmentam as diversas categorias da vida social, situam seus variados conteúdos em departamentos estanques, obstaculizam seus vasos comunicantes – que são os que dão o mais profundo valor humano e social à cultura. É preciso superar a noção pragmática para enriquecer e diversificar os conhecimentos, formar os espíritos em um sentimento radicalmente humanista e desencadear assim as energias necessárias para promover nossas ações e, portanto, a vontade social de transformação da realidade em favor da justiça.

As mudanças nas civilizações humanas surgiram a partir da reconquista de antigas ideias e nobres tradições deixadas de lado. Reconhecê-las e assumi-las, pô-las em movimento e projetá-las ao futuro é válido em escala nacional e para cada comunidade concretamente.

Uma época que se proponha a superar a idade moderna deve se propôr retomar com força os valores que ficaram truncados. Precisamente o que se deixou de lado ou não se coroou foram as melhores disposições dos homens para criar um futuro de justiça, para exaltar a esperança e a utopia. Impuseram-se os piores instintos humanos.

É preciso ir ao resgate do legado espiritual do homem moderno. Para isso, devemos reconhecer o valor dos símbolos e dos mitos em seu sentido mais amplo.

A modernidade rejeitou muitos dos mitos existentes porque vinham distorcidos pelas mais vis paixões humanas, mas, de fato, acabou promovendo os da razão, da ciência e da técnica. Por trás desses mitos, revelam-se necessidades consubstanciais à evolução social. A inconsequência não esteve em aceitar a validade de paradigmas e de ideais móveis, mas sim em partir deles para buscar suas raízes e causas fundamentais. Sem esses valores e suas expressões formais, desapareceriam as civilizações, o sentido da vida e o papel funcional da cultura.

A exaltação da razão e da ciência pela civilização ocidental teve o mérito de destruir – conceitualmente – as atávicas tendências à irracionalidade. No entanto, para superá-las no plano real não basta o pensamento racional, nem sequer as mais altas escalas do pensamento dialético. É necessária a ação na educação e na cultura que propicie a transformação do homem em favor do homem. Só assim se alcançará uma ética digna do nível de conhecimento e informação conquistado pela humanidade. Não há outro modo de ser livre.

A capacidade humana de se associar conscientemente com fins de interesse comum foi um dos primeiros degraus da cultura. É um atributo que tem fundamentos biológicos e antropológicos dados por uma longa história natural e social. Promover a solidariedade não é alheio às bases científicas da vida social, e até da história da natureza orgânica. Nada disso contradiz a realidade material em movimento, mudança e constante desenvolvimento. Está inserido nela.

Para alcançar a vitória definitiva da razão, esta deve ser coroada por princípios éticos. É imprescindível promover e fortalecer, desde o berço até o túmulo, a faculdade de associação de cada homem com os demais para fins que correspondam aos interesses comuns. Chega-se a isso organicamente fazendo crescer nossos conhecimentos, sentimentos e emoções até chegar àquilo que chamamos de amor e que é a força real e objetiva da vida e da história, como prova a evidência.

Sem essa compreensão e sem a dialética entre as vontades individuais e as de carácter social, a civilização moderna não seguirá em frente, mas, pelo contrário, acelerará sua aguda crise. O assunto é tão grave que há quem sustente que ela pode chegar a ser a última.

Cuba defende sua identidade em meio à crise de valores éticos, políticos, e incluso, jurídicos, que se expressam no imenso vazio e angústia espiritual da moderna civilização. Fazemos isso a partir de uma cultura que o eminente polígrafo cubano Fernando Ortiz caracterizou como a síntese obtida de uma diversidade de processos universais. Afetar a integridade dessa nação, como pretenderam as últimas nove administrações norte-americanas, é um crime de lesa humanidade.

Somos uma consequência histórica dos melhores ideais da idade moderna. Quando tais valores foram lançados pela borda pelo materialismo vulgar e grosseiro imposto no mundo que chamam unipolar, nossa pátria se ergue como estandarte da dignidade humana.

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Armando Hart Dávalos, ex-ministro da Educação e da Cultura de Cuba e atual membro do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba e do Conselho de Estado da República de Cuba. O artigo foi publicado no sítio Cubarte, 19-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

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