Uniões são informais, já que prática é proibida pelo Código Penal; a maior parte dos casos está em locais com baixa renda per capita.
[Rodrigo Burgarelli, O Estado de SP, 11 set 11] Uma prática ilegal, mais relacionada a áreas rurais ou paÃses distantes, persiste hoje até nos principais centros urbanos brasileiros. Um recorte inédito feito pelo Estado nos dados do Censo Demográfico de 2010 mostra que existem ao menos 42.785 crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos casados no Brasil. O número refere-se a uniões informais, já que os recenseadores não checam documentos.
Essas situações se concentram em grupos de baixa renda e alta vulnerabilidade, principalmente nos rincões do PaÃs ou na periferia de grandes centros urbanos. O caso de P., uma jovem de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, é um exemplo do último. Ela se mudou para a casa do parceiro quanto tinha 11 anos. Seu namorado, na época, tinha 27. “Eu disse para ele que já tinha 14 e começamos a namorar. Meu pai foi contra porque me achava muito nova, e brigamos feio. Depois da discussão, fugi de casa e fui morar com ele”, conta.
Lá, ela tinha mais liberdade e espaço. Na casa dos pais, eram sete crianças, entre filhos e primos que moravam juntos. Na do marido, uma casa modesta à s margens da Represa Billings, eram só os dois. Nos anos seguintes, teve dois filhos e ficou um ano sem ir à escola. Aos 15, teve um sonho de que o pai iria morrer e ligou para fazer as pazes. “Foi a melhor coisa que fiz. Ele morreu um ano depois.”
Hoje, aos 18 anos, ela ainda está com o marido – um agricultor de 34 – e é uma mãe cuidadosa, que não larga dos filhos, mas sente falta de uma infância que deixou de existir. “Deixei de fazer muita coisa que adorava, tipo jogar bola. Tem oito anos que não piso em uma quadra. Se você me perguntar se é fácil, não, não é.”
Legalidade. Assim como o caso de P., a maior parte dos casamentos de crianças registrados no Censo são informais, já que o Código Civil autoriza uniões apenas entre maiores de 16 anos – abaixo dessa idade, só podem se casar com autorização judicial. O Código Penal, por outro lado, proÃbe qualquer tipo de união com menores de 14 anos. “Isso constitui um crime chamado “estupro de vulnerável”, previsto no Código Penal e sujeito a detenção de oito a 15 anos”, diz Helen Sanches, presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP).
Segundo ela, o crime se refere diretamente à s relações sexuais mantidas com crianças e adolescentes, algo implÃcito quando se fala em casamento. Helen conta que é cada vez mais comum encontrar famÃlias nos fóruns pedindo autorização para casar uma filha adolescente ou mesmo passar a guarda dela para o seu parceiro, sem saber da proibição legal. “Quando isso acontece e a menina tem menos de 14 anos, o promotor, além de não acatar o pedido, pode denunciar o rapaz por estupro de vulnerável, mesmo que a relação seja consentida ou que os pais concordem com ela”, explica.
Entretanto, são poucos os casos que chegam ao conhecimento do poder público. Além de critérios sociais e econômicos, fatores culturais também dificultam o combate a esse tipo de situação. Isso fica claro ao se observar os Estados que lideram o ranking de casamentos com menores de 14 anos: ou são locais de baixa renda per capita, como Alagoas ou Maranhão, ou têm grande concentração indÃgena, como Acre e Roraima. Na outra ponta estão as regiões mais ricas e urbanizadas, como Rio Grande do Sul, São Paulo e Distrito Federal.
Até 2005, casar com menor de 14 anos era permitido
Atualmente, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é considerada crime. Até 2005, no entanto, a lei perdoava quem casasse com a criança após a anuência da famÃlia. Naquele ano, o artigo foi considerado ultrapassado e acabou revogado. A Justiça não aceita mais casamentos de menores de 14 anos.
Outra mudança feita em 2005 diz respeito ao crime de sedução de menores, que também foi revogado. O artigo dizia que qualquer pessoa que desvirginasse uma mulher entre 14 e 17 anos “aproveitando-se de sua inexperiência” podia ser condenado a até 18 anos de cadeia. Hoje não é mais crime manter relações consensuais com adolescentes dessa idade.