Preconceito social faz famílias afegãs criarem meninas como meninos

Garota Mehrnoush (dir.) vive uma vida diferente de suas irmãs

“Mesmo que você tenha uma boa posição no Afeganistão e está bem de vida, as pessoas veem você de forma diferente (se não tiver um filho homem). Elas dizem que a sua vida só é completa se você tem um filho”, diz Azita.

[Tahir Qadiry, BBC Brasil, 19 jan 2012] Quando Azita Rafhat, uma ex-parlamentar afegã, prepara as suas filhas para a escola de manhã, ela veste uma delas de forma diferente. Três meninas usam roupas brancas e cobrem seus rostos com véus. Mas Mehrnoush, a quarta menina, veste terno e gravata. Na rua, Mehrnoush não é mais uma menina, e sim um rapaz chamado Mehran.

Azita Rafhat não teve filhos homens, e para evitar as provocações que famílias assim sofrem no Afeganistão, ela tomou a decisão radical de mudar a criação de Mehrnoush.

Esse tipo de atitude não é incomum no país. Existe até mesmo um termo – Bacha Posh – para meninas que são vestidas como garotos.

“Mesmo que você tenha uma boa posição no Afeganistão e está bem de vida, as pessoas veem você de forma diferente (se não tiver um filho homem). Elas dizem que a sua vida só é completa se você tem um filho”, diz Azita.

Sempre houve preferência por meninos no Afeganistão, por motivos tanto econômicos quanto sociais.

O seu marido, Ezatullah, acredita que ter um filho é um sinal de prestígio e honra.

“As pessoas que nos visitavam sempre diziam: ‘Oh, lamentamos que vocês não têm um filho.’ Então imaginamos que seria uma boa ideia vestir nossa filha assim, já que ela também queria.”

Economia

Muitas meninas vestidas de rapazes andam pelas ruas no Afeganistão. Algumas famílias optam por esse caminho para permitir que elas consigam empregos em lugares públicos, como em mercados, já que mulheres não podem trabalhar na rua.

Em alguns mercados de Cabul, um grupo de meninas, com idade entre cinco e 12 anos, se apresenta como meninos e vende água e chiclete. No entanto, nenhuma quis dar entrevista sobre o assunto.

A tradição não dura por toda a vida. Aos 17 ou 18 anos, as jovens voltam a assumir uma identidade feminina. Mas essa mudança não é nada simples.

Elaha passou anos vivendo como menino, mas na universidade voltou a se vestir como mulher

Elaha mora em Mazar-e-Sharif, no norte do Afeganistão. Ela viveu como menino por 20 anos, porque sua família não tinha filhos homens. Apenas há dois anos, quando entrou na universidade, é que ela passou a se vestir como mulher.

No entanto, ela ainda não se sente totalmente feminina. Alguns de seus hábitos não são típicos de garotas, e ela diz que não pretende se casar.

“Quando eu era criança, meus pais me vestiam de menino porque eu não tinha um irmão. Até recentemente, vivendo como menino, eu saia para brincar com outros garotos e tinha mais liberdade.”

Contra sua própria vontade, ela voltou a viver como mulher, e diz que só aceitou voltar porque se trata de uma tradição social. No entanto, ela se diz revoltada com a forma como as mulheres são tratadas pelos seus maridos no Afeganistão.

“Às vezes, eu tenho vontade de me casar e bater no meu marido, só para compensar a forma como as outras mulheres são tratadas em casa.”

História comum

Atiqullah Ansari, diretor da famosa mesquita de Mazar-e Sharif, diz que a tradição é parte de um apelo que se faz a Deus.

As famílias que não têm filhos homens vestem as meninas assim como forma de pedir a Deus por um bebê homem.

Mães que não têm filhos homens visitam o templo de Hazrat-e Ali para fazer o pedido a Deus.

Ansari conta que de acordo com o Islã, as meninas que vivem como garotos precisam cobrir o rosto quando amadurecem.

No Afeganistão, histórias assim têm se tornado cada vez mais comuns. É comum pessoas conhecerem parentes ou vizinhos que já passaram por isso.

Fariba Majid, que dirige o Departamento de Direitos da Mulher da Província de Balkh, diz que ela própria já passou por isso, e quando era criança era chamada pelo nome masculino de Wahid.

“Eu era a terceira filha na minha família, e quando nasci, meus pais decidiram me vestir de menino”, afirma.

“Eu podia trabalhar com meu pai em sua loja ou até mesmo ir para Cabul para comprar coisas para a loja.”

Ela disse que a experiência a ajudou a ganhar confiança e permitiu que ela chegasse onde está hoje.

Segredo

A própria ex-parlamentar Azita Rafhat, mãe de Mehrnoush, também já passou por isso.

“Deixe-me contar um segredo”, ela afirma. “Quando eu era criança, eu vivi como garoto e trabalhava com meu pai. Eu tive a experiência tanto do mundo masculino quanto feminino, e isso me ajudou a seguir uma carreira com ambição.”

A tradição existe a séculos no Afeganistão. De acordo com o sociólogo Daud Rawish, de Cabul, isso pode ter começado durante períodos de guerra no passado, quando mulheres eram vestidas de homens para poderem ajudar a combater os inimigos.

Mas nem todos toleram esse tipo de tradição. O diretor da Comissão de Direitos Humanos da Província de Balkh, Qazi Sayed Mohammad Sami, disse que a prática é uma violação de direitos fundamentais.

“Nós não podemos mudar o gênero de alguém só por um tempo. Isso é contra a humanidade”, afirma ele.

A tradição teve efeitos devastadores em algumas meninas, que sentem um conflito de identidades e acreditam ter perdido parte fundamental de suas infâncias.

Para outras, a experiência foi positiva, já que elas tiveram liberdades que nunca exerceriam, caso tivessem sido criadas apenas como garotas.

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