Uma nova ética do consumo contra a bomba demográfica
“O impacto da humanidade sobre o sistema que sustenta a vida sobre a Terra não depende simplesmente do número de pessoas que vivem no planeta, mas também do modo em que se comportam. Se considerarmos esse aspecto, o quadro muda totalmente: o problema demográfico existe principalmente nos paÃses opulentos. Na realidade, existem muito ricos.”
A análise é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e da jornalista e pesquisadora mexicana Citlali Rovirosa-Madrazo, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 15 mar 11; tradução Moisés Sbardelotto; IHU Online].
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“Eles são sempre muitos. ‘Eles’ são aqueles que deveriam ser menos ou, ainda melhor, não ser, justamente. Ao contrário, nós nunca somos o suficiente. De ‘nós’, deveria haver sempre mais”. Eu escrevi isso em 2005, em Vidas Desperdiçadas (Ed. Zahar, 2005). A meu ver, tanto agora quanto então, a “superpopulação” é uma ficção estatÃstica, um nome codificado que indica a presença de um grande número de pessoas que, ao invés de favorecerem o funcionamento fluido da economia, tornam mais difÃcil alcançar e superar os parâmetros utilizados para medir e avaliar o seu correto funcionamento. Esse número parece aumentar de modo incontrolável, acrescentando continuamente os gastos, mas não os ganhos.
Em uma sociedade de produtores, trata-se de pessoas cujo trabalho não pode ser utilmente (“proficuamente”) empregado, já que é possÃvel produzir sem eles, de modo mais rápido, rentável e “econômico”, todos os bens que a demanda atual e potencial é capaz de absorver. Em uma sociedade de consumidores, essas pessoas são “consumidores defeituosos”: aqueles que não têm recursos para aumentar a capacidade do mercado dos bens de consumo e, ao contrário, criam um outro tipo de demanda, que a indústria orientada aos consumos não é capaz de interceptar e “colonizar” de modo rentável.
O principal ativo de uma sociedade dos consumos são os consumidores, enquanto o seu passivo mais fastidioso e custoso é constituÃdo pelos consumidores defeituosos. Não tenho motivo para mudar de ideia com relação ao que escrevi anos atrás, nem para retirar a minha adesão ao que foi defendido por Paul e Ann Ehrlich. Observamos que se prevê que a “bomba demográfica” da qual os Ehrlich falam explodirá geralmente em territórios de mais baixa densidade de população. Na Ãfrica, vivem 21 habitantes por quilômetros quadrado, contra 101 na Europa (incluindo as estepes e os “permafrosts†da Rússia), 330 no Japão, 424 na Holanda, 619 em Taiwan e 5.489 em Hong Kong.
Como observou há pouco tempo o vice-diretor da revista Forbes, se toda a população da China e a Ãndia se transferisse para os EUAcontinentais, resultaria disso uma densidade demográfica não superior à da Inglaterra, da Holanda ou da Bélgica. Porém, poucos consideram a Holanda um paÃs “superpovoado”, enquanto os sinais de alarme soam continuamente para a superpopulação da Ãfrica ou daÃsia, com exceção dos poucos “Tigres do PacÃfico”.
Para explicar o paradoxo dos “Tigres”, afirma-se que, entre densidade demográfica e superpopulação, não há uma correlação estrita: a segunda deveria ser medida fazendo-se referência ao número de pessoas que devem ser sustentadas com os recursos possuÃdos por um dado paÃs e à capacidade do ambiente local de sustentar a vida humana. Porém, como indicam Paul e Ann Ehrlich, a Holanda pode sustentar a sua altÃssima densidade demográfica só porque muitos outros paÃses não conseguem: nos anos 1984-1986, por exemplo, importaram 4 milhões de toneladas de cereais, 130 mil toneladas de óleos diversos e 480 mil toneladas de ervilhas, feijões e lentilhas – todos produtos que nos mercados globais têm uma avaliação e, portanto, um preço relativamente baixos, permitindo que a própria Holanda produza, por sua vez, outras mercadorias, como leite ou carne comestÃvel, que notoriamente têm preços elevados.
Os paÃses ricos podem se permitir uma alta densidade demográfica porque são centrais de “alta entropia”, que atraem recursos (e principalmente fontes energéticas) do resto do mundo, restituindo, em troca, as escórias poluentes e frequentemente tóxicas, produzidas por meio da transformação (o exaurimento, a aniquilação, a destruição) das reservas mundiais de energia. A população dos paÃses ricos, mesmo sendo bastante exÃgua (com relação aos padrões mundiais), utiliza cerca de dois terços da energia total.
Em uma conferência de tÃtulo eloquente (Too many rich people, “Muitos ricos”), proferida na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo (5 a 13 de setembro de 1994), Paul Ehrlich sintetizou as conclusões do livro escrito por ele juntamente com Ann Ehrlich, The Population Explosion, afirmando, sem meios termos, que o impacto da humanidade sobre o sistema que sustenta a vida sobre a Terra não depende simplesmente do número de pessoas que vivem no planeta, mas também do modo em que se comportam. Se considerarmos esse aspecto, o quadro muda totalmente: o problema demográfico existe principalmente nos paÃses opulentos. Na realidade, existem muito ricos.