Em tese, há alimentos para todos. Se mesmo assim uma em cada sete pessoas passa fome, pode-se dizer que essa é uma situação politicamente tolerada, argumenta a editora-chefe da Deutsche Welle, Ute Schaeffer.
[DW, dez 11] Um mundo sem fome, com 7 bilhões de pessoas bem alimentadas e bem nutridas, seria possÃvel. Nosso planeta produz alimentos suficientes. A fome não é um problema causado pela natureza ou cuja razão está apenas nas crises. A fome é politicamente tolerada. Ela é aceita porque há “coisas mais importantes”, por exemplo as vozes dos consumidores e agricultores europeus.
Se nós, europeus, levássemos mesmo a sério nossos sermões sobre solidariedade, terÃamos que cortar os subsÃdios agrÃcolas no continente, revolucionar os sistemas de comércio e aumentar o preço dos alimentos nos paÃses industrializados.
As vozes dos famintos, contudo, não contam. Eles não têm lobby. Passa-se fome sobretudo – por mais bizarro que isso soe – nas regiões onde os alimentos são produzidos, ou seja, no campo, onde as pessoas vivem da agricultura familiar e não têm seus interesses representados nas instituições econômicas multilaterais.
Quando se fala de acordos econômicos e fluxos comerciais globais, essas pessoas não têm voz. Embora sejam numerosas: ainda hoje quase metade da população mundial vive direta ou indiretamente do cultivo de alimentos. Essa grande maioria silenciosa nos paÃses em desenvolvimento paga o preço do nosso sistema econômico: em todo o mundo 1 bilhão de pessoas passam fome ou estão subnutridas.
Bons argumentos por uma polÃtica diferente
Os polÃticos europeus dão sempre a impressão de não saber o que fazer e perguntam como explicar aos eleitores europeus uma mudança tributária em prol dos mais pobres.
Acredito que isso nem seria tão difÃcil. Se me permitem algumas sugestões: expliquem aos eleitores que o combate à fome serve também à segurança de nossos interesses e de nosso bem-estar! Pois como é que a Europa pretende lidar com os potenciais 150 milhões de refugiados da fome da Ãfrica subsaariana, que poderão emigrar a partir do ano de 2020?
Expliquem aos eleitores que não queremos pagar impostos duas vezes. Pois hoje consertamos com recursos e projetos destinados à ajuda ao desenvolvimento o que nossa polÃtica econômica e nossa ordem econômica mundial destroem. E, como resultado, não produzimos nada, exceto novas formas de dependência entre o mundo desenvolvido e o não desenvolvido. Isso sem contar os ridÃculos subsÃdios a uma agricultura não sustentável no Norte.
Beneficiários da fome
Fala-se muito das consequências humanitárias da fome. Mas quem fala daqueles que ganham com a fome? Isso também precisa ser dito com todas as letras: há quem se beneficie desse sistema que produz fome. E essas pessoas somos sobretudo nós, consumidores, que gastamos hoje menos pelos alimentos do que gastávamos há 20 anos. Gostamos de comprar pão por 1 euro e leite por 70 centavos de euro, e dizemos a nós mesmos que alimentos não podem custar caro.
Há 100 anos, os consumidores na Alemanha gastavam dois terços de sua renda com alimentos; hoje são apenas 20%. Entre os que tiram vantagem disso estão os agricultores europeus, que produzem muito além da demanda do mercado e mesmo assim não precisam se preocupar. Altos subsÃdios lhes garantem uma renda confortável e uma ampla retaguarda polÃtica. Os agricultores nos paÃses em desenvolvimento nem ousam sonhar com uma situação como essa.
Entre aqueles que se beneficiam da fome estão também os grandes grupos de agronegócios, que massacram todos os mercados com suas sementes e respectivos agrotóxicos. E também as elites nas capitais do Hemisfério Sul. Em muitas regiões, a polÃtica é feita sobretudo para agradar à própria clientela e aos eleitores nas capitais. Ali se decide, por exemplo, quantos recursos serão destinados ao desenvolvimento do campo.
Investimentos no desenvolvimento de regiões interioranas e na agricultura são considerados retrógrados. PaÃses em que 80% do PIB vêm da agricultura acreditam que podem viver sem uma polÃtica agrária! Ou ainda mais grave: um paÃs com as dimensões de terras férteis como Moçambique, por exemplo, poderia exportar arroz ou milho para todo o sul do continente africano. Em vez disso, os moçambicanos dependem de importações caras, simplesmente porque a elite polÃtica local não se interessa por esse problema.
Em situações como essa, é preciso realizar um trabalho de convencimento, em todos os encontros de cúpula bilaterais e em toda conferência internacional. E isso os paÃses industrializados só vão alcançar quando os paÃses em desenvolvimento estiverem cientes das vantagens que terão, ou seja: mais possibilidades de exportação do que aquelas que eles têm hoje, acesso aos mercados europeus e preços justos de produtos agrÃcolas no mercado internacional.
Bela mentira do mundo do bem-estar
Quem também se beneficia com a fome são os especuladores do mercado alimentÃcio. Alimentos básicos transformaram-se em objetos de especulação, cujos preços aumentaram em torno de 30% no segundo semestre de 2010. Um mercado lucrativo, ao qual aderem investidores e especuladores, enquanto as pessoas de Porto PrÃncipe, Dhaka ou Agadez ficam a ver navios por não poderem pagar seus altos preços.
Vamos acabar com as belas mentiras do nosso mundo de bem-estar: a fome e a miséria são causadas apenas em parte por guerras ou catástrofes. E são raramente apenas um problema da população urbana pobre. Não! A fome é o resultado de uma exclusão que é no mÃnimo tolerada por amplas parcelas da população. As necessidades e penúrias de quem passa fome são colocadas de lado, politicamente apagadas por todos aqueles que se beneficiam com o problema.
Após décadas de dependência e exploração pelas potências coloniais, foram impostos aos paÃses africanos independentes, nos anos 1980, ajustes estruturais radicais por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial: liberalizar, desregular e privatizar eram as palavras de ordem. Essa polÃtica, contudo, foi implementada em paÃses sem infraestrutura, sem capital de conhecimento, sem uma economia em funcionamento e sem investidores nacionais. As consequências foram catastróficas, especialmente para a agricultura, mas também para os setores de educação e saúde.
Segurança do mundo desenvolvido em perigo
Com indiferença e ignorância – é assim que a comunidade internacional lida com o escândalo da fome no século 21. Um erro fatÃdico, não somente por razões morais. Não devemos subestimar a força dos pobres e famintos, e tampouco seu potencial polÃtico explosivo. Em 2008, os altos preços dos alimentos já provocaram revoltas dos famintos, desde o Camarões até o Egito. Já nos próximos dez anos, isso nos custará bilhões em forma de programas de ajuda e reparação. A fome põe em risco a estabilidade polÃtica – primeiro nas regiões aingidas, depois na Europa.
Quem compreende as correlações envolvidas conclui forçosamente que é necessária uma mudança polÃtica radical. Nenhuma reparação, nenhuma ajuda emergencial, nenhuma promessa decorativa, proferida num encontro de cúpula e pouco depois esquecida, será capaz de deter a erosão social e econômica provocada pela fome e pela pobreza em todo o mundo. Da mesma forma que os agricultores no Hemisfério Sul são dependentes de regras comerciais justas e preços justos, as sociedades ricas do Norte são dependentes da estabilidade polÃtica e econômica das sociedades do Sul, que crescem rapidamente.
Precisamos adiar nossos interesses de curto prazo – mais crescimento, mais conforto –, para que ninguém mais morra de fome. Já transcorreram mais de quatro décadas desde que o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, prometeu numa conferência internacional sobre a alimentação: “Em uma década, nenhuma criança precisará mais ir para a cama à noite com fome”. Hoje, continuamos mais distantes do que nunca desta meta. Um verdadeiro atestado de pobreza!
Autora: Ute Schaeffer (sv)
Revisão: Augusto Valente