[O Estado de S.Paulo, 22 mai 11] O autor é presidente do Earth Policy Institute; artigo publicado na revista Foreign Policy. ~ Nos EUA, quando os preços mundiais do trigo sobem 75%, como no ano passado, isso significa a diferença entre um pão de US$ 2 e um pão custando, talvez, US$ 2,10. Se você viver em Nova Délhi, contudo, essa alta exorbitante dos preços realmente conta: uma duplicação do preço mundial significa que o trigo custa duas vezes mais.
Bem-vindos à nova economia alimentar de 2011: os preços estão subindo, mas o impacto não será sentido de maneira equitativa. Para os americanos, que gastam menos de um décimo da sua renda no supermercado, a alta do preço dos alimentos que assistimos até agora é um incômodo, não uma calamidade. Mas para os 2 bilhões de pessoas mais pobres do planeta, que gastam de 50% a 70% de sua renda em comida, essa disparada dos preços pode significar passar de duas refeições por dia para uma.
Os que mal conseguem se segurar nos degraus mais baixos da escada econômica global correm o risco de se soltar de vez. Isso pode contribuir – e tem contribuÃdo – para revoluções e insurgências.
Com a quebra de safra prevista para este ano, com governos do Oriente Médio e da Ãfrica cambaleando em função das altas de preços, e com mercados nervosos enfrentando um choque após outro, os alimentos rapidamente se tornaram um condutor oculto da polÃtica mundial. E crises como esta vão se tornar cada vez mais comuns. A nova geopolÃtica dos alimentos parece muito mais vulnerável do que era. A escassez é a nova norma.
Até pouco tempo atrás, altas súbitas de preços não tinham tanta importância, pois eram rapidamente seguidas por um retorno aos preços relativamente baixos dos alimentos que ajudaram a moldar a estabilidade do fim do século 20 em boa parte do planeta. Agora, porém, tanto as causas como as consequências são sinistramente diferentes. Lamentavelmente, as altas de preços de hoje são causadas por tendências que estão contribuindo tanto para o aumento da demanda como dificultando o aumento da produção: entre elas, a rápida expansão da população mundial, os aumentos de temperatura que ressecam plantações, e o esgotamento de poços de irrigação.
Mais alarmante ainda, o mundo está perdendo sua capacidade de mitigar o efeito da escassez. É por isso que a crise dos alimentos de 2011 é genuÃna, e por isso ela poderá trazer consigo novas combinações de revoltas do pão e revoluções polÃticas. E se as sublevações que saudaram os ditadores Zine al-Abidine Ben Ali, na TunÃsia; Hosni Mubarak, no Egito; e Muamar Kadafi, na LÃbia não forem o fim da história, mas seu começo? Preparem-se, tanto agricultores como chanceleres, para uma nova era em que a escassez mundial de alimentos vai moldar cada vez mais a polÃtica global.
Demanda e produção
A duplicação dos preços mundiais dos grãos desde o inÃcio de 2007 foi impelida principalmente por dois fatores: o crescimento acelerado da demanda e a dificuldade crescente de expandir rapidamente a produção. O resultado é um mundo que parece chocantemente distinto da generosa economia mundial de grãos do século passado. Como será a geopolÃtica dos alimentos numa nova era dominada pela escassez? Mesmo neste estágio inicial, podemos ver ao menos os contornos gerais da economia alimentar emergente.
No lado da demanda, os agricultores agora enfrentam claras fontes de pressão crescente. A primeira é o crescimento populacional. A cada ano, os agricultores do mundo precisam alimentar 80 milhões de pessoas adicionais, quase todas em paÃses em desenvolvimento.
A população mundial quase dobrou desde 1970 e está a caminho de 9 bilhões em meados do século. Ao mesmo tempo, os EUA, que um dia conseguiram atuar como um amortecedor global contra safras ruins, agora estão convertendo quantidades imensas de grãos em combustÃvel para carros, embora o consumo mundial de grãos, que gira em torno de 2,2 bilhões de toneladas métricas por ano, esteja crescendo em velocidade acelerada. Mas a taxa em que os EUA estão convertendo grãos em etanol tem crescido ainda mais rapidamente.
Essa capacidade massiva de converter grãos em combustÃvel significa que o preço dos grãos está agora atrelado ao preço do petróleo. Assim, se o petróleo sobe para US$ 150 o barril ou mais, o preço dos grãos acompanhará a alta já que se torna mais lucrativo converter grãos em substitutos do petróleo. E esse não é um fenômeno apenas americano: o Brasil, que destila etanol de cana de açúcar, é o segundo maior produtor depois dos EUA, enquanto a União Europeia, que pretende obter 10% de sua energia de transporte de energias renováveis, em sua maioria biocombustÃveis até 2020, também está desviando terras de culturas alimentares para esse fim.
Escassez de água
Essa não é apenas uma história sobre a demanda crescente por alimentos. Do esgotamento de lençóis freáticos à erosão de solos e à s consequências do aquecimento global, tudo significa que a oferta mundial de alimentos provavelmente não acompanhará nossos apetites coletivamente crescentes. Tome-se o caso a mudança climática: a regra prática entre ecologistas da produção vegetal é que, para cada 1 grau Celsius de aumento da temperatura acima do ótimo para a estação de crescimento, os agricultores podem esperar uma quebra de 10% no rendimento dos grãos. Essa relação foi confirmada dramaticamente durante a onda de calor de 2010 na Rússia, que reduziu a safra de grãos do paÃs em quase 40%.
Com a elevação das temperaturas, os lençóis freáticos estão diminuindo na medida em que os agricultores bombeiam em excesso para irrigação. Isso infla artificialmente a produção de alimentos no curto prazo, criando uma bolha dos alimentos que estoura quando os aquÃferos são esgotados e o bombeamento é necessariamente reduzido à taxa de recarga.
No conjunto, mais da metade da população mundial vive em paÃses onde os lençóis freáticos estão diminuindo. O Oriente Médio árabe politicamente convulsionado é a primeira região geográfica onde a produção de grãos atingiu o pico e começou a declinar por escassez de água, apesar de as populações continuarem a crescer. A produção de grãos já está diminuindo na SÃria e no Iraque e, em breve, poderá declinar no Iêmen. Mas as maiores bolhas alimentares estão na Ãndia e na China. Como esses paÃses enfrentarão a escassez inevitável quando os aquÃferos forem esgotados? Ao mesmo tempo em que estamos secando nossos poços, estamos também maltratando nossos solos, criando novos desertos. A erosão do solo decorrente do excesso de cultivo e do manejo indevido da terra está solapando a produtividade de um terço das terras cultiváveis do mundo.
Qual a gravidade disso? Imagens de satélite mostram duas novas e imensas bacias de areia: uma se estendendo pelo norte e o oeste da China e oeste da Mongólia, a outra cruzando a Ãfrica Central. A civilização pode sobreviver à perda de suas reservas de petróleo, mas não pode sobreviver à perda de suas reservas de solo.
Nesta era de aperto dos suprimentos mundiais de alimentos, a capacidade de cultivar alimentos está rapidamente se tornando uma nova forma de alavancagem geopolÃtica, e os paÃses estão tratando de garantir seus próprios interesses paroquiais à s custas do bem comum.
Terras estrangeiras
Temendo não ser capaz de comprar os grãos necessários no mercado, alguns paÃses mais ricos, liderados pela Arábia Saudita, Coreia do Sul e China, tomaram, em 2008, a medida incomum de comprar ou arrendar terras em outros paÃses para cultivar grãos para si próprios. A maioria dessas compras de terras é na Ãfrica, onde alguns governos arrendam terras cultiváveis por menos de US$ 2,5 por hectare/ano. Entre os principais destinos estão Etiópia e Sudão, paÃses onde milhões de pessoas estão sendo sustentadas pelo Programa Mundial de Alimentos da ONU.
Muitos dos acordos de terras foram feitos secretamente e, na maioria dos casos, a terra envolvida já estava em uso por aldeões quando foi vendida ou arrendada. Com frequência, os que já estavam cultivando a terra não foram nem consultados nem sequer informados dos novos acordos. A hostilidade local a essas apropriações de terra é a regra, não a exceção.
Em 2007, quando os preços dos alimentos começaram a subir, a China assinou um acordo com as Filipinas para arrendar 1 milhão de hectares de terras destinadas a cultivar alimentos que seriam embarcados para a China. Quando a notÃcia vazou, o clamor público obrigou Manila a suspender o acordo. Um clamor parecido abalou Madagáscar, onde uma empresa sul-coreana, a Daewoo Logistics, havia tentado obter direitos a mais de 1,2 milhão de hectares. NotÃcias sobre o acordo ajudaram a criar um furor polÃtico que derrubou o governo e obrigou o cancelamento do acordo. Aliás, poucas coisas são mais propensas a alimentar insurgências do que privar pessoas de suas terras. Equipamentos agrÃcolas são facilmente sabotados. Os campos de grãos maduros queimam rapidamente quando se lhes ateia fogo.
Essas aquisições representam um investimento potencial de estimados US$ 50 bilhões em agricultura em paÃses em desenvolvimento. Então perguntamos: quanto isso tudo ampliará a produção mundial de alimentos? Não sabemos, mas a análise do Banco Mundial indica que somente 37% dos projetos serão dedicados a culturas alimentares. A maioria da terra adquirida até agora será usada para produzir bicombustÃveis e outras culturas de interesse industrial.
Mesmo que alguns desses projetos acabem por aumentar a produtividade da terra, quem se beneficiará? Se virtualmente todos os insumos – o equipamento agrÃcola, o fertilizante, os pesticidas, as sementes – são comprados do exterior e se toda a produção é enviada para fora do paÃs, eles pouco contribuirão para a economia do paÃs hospedeiro. Por enquanto, as apropriações de terras contribuÃram mais para provocar agitação social do que para aumentar a produção de alimentos.
Disputa
Ninguém sabe onde chegará essa crescente competição por suprimentos alimentares, mas o mundo parece estar se afastando da cooperação internacional que evoluiu em muitas décadas depois da 2ª Guerra para uma filosofia de cada paÃs por si. O nacionalismo alimentar poderá ajudar a garantir suprimentos alimentares para paÃses ricos individuais, mas faz pouco para melhorar a segurança alimentar do mundo. Aliás, os paÃses de baixa renda que hospedam apropriações de terras ou importam grãos provavelmente sofrerão uma deterioração de sua situação alimentar.
Depois da carnificina de duas guerras mundiais e dos descaminhos econômicos que levaram à Grande Depressão, os paÃses se uniram em 1945 para criar a ONU, percebendo, finalmente, que no mundo moderno não podemos viver em isolamento por mais tentador que isso possa parecer. O Fundo Monetário Internacional foi criado para ajudar a gerir o sistema monetário e promover a estabilidade econômica e o progresso. Dentro do sistema da ONU, agências especializadas, da Organização Mundial de Saúde (OMS) à Organização para Agricultura e Alimentação (FAO) jogam importantes papéis no mundo de hoje. Tudo isso promoveu a cooperação internacional.
Mas embora a FAO colete e analise dados agrÃcolas globais e forneça assistência técnica, não há nenhum esforço organizado para garantir uma adequação dos suprimentos mundiais de alimentos.
O presidente francês, Nicolas Sarkozy, está propondo lidarmos com a alta dos preços dos alimentos com uma redução da especulação nos mercados de commodities. Por útil que isso possa ser, trata os sintomas da insegurança alimentar crescente, não as causas, como o crescimento populacional e as mudanças climáticas. O mundo precisa se concentrar hoje, não só na polÃtica agrÃcola, mas numa estrutura que a integre com polÃticas para energia, população e água, que afetam diretamente a segurança alimentar.
Perigo
Isso, porém, não está ocorrendo. Em vez disso, à medida que terra e água se tornam mais escassas, que a temperatura da Terra sobe e a segurança alimentar mundial se deteriora, está surgindo uma geopolÃtica perigosa de escassez de alimentos. A apropriação de terra, de água, e compra de grãos diretamente de fazendeiros em paÃses exportadores são hoje partes integrantes de uma luta pelo poder global para segurança alimentar.
Com estoques de grãos baixos e a volatilidade climática aumentando, os riscos crescem. Hoje estamos tão perto da borda que uma ruptura do sistema alimentar poderá surgir a qualquer momento.
Talvez não tenhamos sorte para sempre. O que está hoje em questão é se o mundo conseguirá ir além de se concentrar nos sintomas da deterioração da situação alimentar e atacar suas causas subjacentes.
Se não conseguirmos aumentar o rendimento agrÃcola com menos água e conservar os solos férteis, muitas áreas agrÃcolas deixarão de ser viáveis. E isso vai muito além dos agricultores. Se não conseguirmos nos mexer com velocidade de um tempo de guerra para estabilizar o clima, talvez não sejamos capazes de evitar uma disparada dos preços dos alimentos. Se não conseguirmos acelerar a mudança para famÃlias menores e estabilizar a população mundial, mais cedo do que mais tarde, as filas de famintos continuarão a aumentar. A hora de agir é agora – antes que a crise dos alimentos de 2011 se torne a nova normalidade.