Por mais que eu me esforce, não consigo pensar num fator que tenha contribuÃdo mais para a diluição do impacto da BÃblia, tendo aberto maior brecha para uma leitura tendenciosa da sua mensagem, do que o fato de que um dia alguém achou por bem dividi-la em versÃculos.
Um livro como a carta de São Paulo aos Efésios, que até aquele momento vinha sendo lido como um todo contÃnuo e orgânico, acordou no dia seguinte esquartejado de modo inteiramente arbitrário, tendo adquirido a graça e a agradabilidade de leitura de uma planilha do Excel. E nunca mais recuperaram-se da operação: foi retalhado dessa forma que cada livro da BÃblia chegou até nós.
A divisão em versÃculos teve a infelicidade de nascer mais ou menos ao mesmo tempo em que vinha à luz a tecnologia dos tipos móveis de Gutemberg – e tecnologia significou desde sempre uma coisa: não há erro fortuito que não possa ser reproduzido indefinidamente.
O estrago para a integridade da BÃblia foi enorme e, em grande parte, irreversÃvel. Mesmo diante de um texto corrido temos a tendência eu e você à seleção e à parcialidade. A nova e forjada fragmentação convidava, praticamente exigia, que cada isolada porção do texto bÃblico fosse memorizada e entendida fora do seu contexto. No caso da carta aos Efésios, por exemplo, encontraram plenipotenciária consagração entre os protestantes os versos oito e nove do segundo capÃtulo: porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie – versos a partir nos quais os protestantes fundamentaram sua tese de que a fé é essencial e as boas obras secundárias. Porém a arbitrária divisão em versÃculos deixou o raciocÃnio de Paulo para sempre incompleto, seu argumento para sempre suspenso e separado da frase seguinte, que qualifica o que foi dito e introduz uma enorme reviravolta: porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que andássemos nelas.
A divisão em versÃculos, além de favorecer a leitura seletiva, incentivou a fetichização pura e simples dos textos atingidos por ela, com a consequente anulação do seu significado. Na verdade, os textos sagrados prestam-se particularmente, por sua própria natureza, à fetichização; o retalhamento da BÃblia em versÃculos apenas acentuou essa tendência e facilitou o processo.
Fetichizar um texto é inflá-lo ao extremo, é recortá-lo e memorizá-lo e emoldurá-lo e reproduzi-lo em letras cada vez maiores até drenar por completo e tornar inacessÃvel o seu significado original: até que as palavras, douradas mas cegas, remetam a tudo e a nada.
Um emblema escandaloso da fetichização da BÃblia promovida pela divisão em versÃculos é a caixa de promessas (disponÃvel em diversos formatos na livraria evangélica mais próxima de você): uma caixinha cheia de filetes coloridos de papel, cada um contendo um versÃculo isolado da BÃblia cuidadosamente selecionado para que você, lendo, sinta-se amado, com os flancos cobertos e a prosperidade assegurada. Quando está pra baixo você abre a caixa e puxa uma promessa ao acaso, como quem lê um biscoito da sorte: a satisfação é garantida, ou você pode pedir o seu espÃrito crÃtico de volta. *
Cinco séculos se passaram sem grandes novidades, porém é preciso lembrar que as ideias medÃocres dos homens dormem, mas não descansam. Ficam em estado letárgico, aguardando que novas tecnologias permitam que arruÃnem-se as ideias grandes e boas. E, claro, esta é a geração em que esse momento chegou: num espaço de 30 anos, os últimos, o computador eletrônico gerou o computador pessoal, o computador pessoal tomou para si cônjuges e formou a rede local, a rede local teve relações extraconjugais e gerou a internet, e a internet pariu as redes sociais.
Estamos instruÃdos e capacitados, colonizadores que somos das paisagens virtuais, e o que era impossÃvel é agora inevitável. O twitter nos ensinou a dividir a realidade em porções isoladas de 140 caracteres, e quando a realidade tomba a literatura não tarda a cair. Somos milhões de escribas e amanuenses, inteiramente prontos para versicularizar – converter resolutamente em versÃculos – toda a literatura mundial, e tabulá-la em trabalho voluntário nos murais sempre-deslizantes das redes sociais. Não há admirador bem-intencionado que não viva saqueando a obra de poetas e romancistas, filósofos e ensaÃstas, santos e compositores, crÃticos e humoristas de todas as épocas, esquartejando resignadamente suas ideias de modo a fazê-las caber nos escaninhos do twitter e dos gifs animados. Somos um mundo inteiro de taxidermistas, e não descansaremos até que os melhores e os piores textos do mundo tenham sido reduzidos a frases de efeito e gotas de sabedoria.
Era inevitável: as redes sociais, que vivem da fetichização e da consequente anulação de todas as coisas, não teriam como deixar de sequestrar o poder da literatura. O Facebook, em particular, assumiu o papel de banalizador supremo, drenando a vitalidade de tudo na experiência humana que já teve algum interesse e algum valor. A literatura, aquela velha dama, não escapou dessa indignidade. No mural do seu Facebook alternam-se versos piscantes da BÃblia, frases de LuÃs Fernando VerÃssimo, pensamentos falsamente atribuÃdos a Shakespeare, provocações de Gandhi, citações de Mia Couto, poemas animados de Casimiro de Abreu, letras de Chico Buarque, pérolas de sabedoria de Abraham Lincoln e papa Francesco e Brennan Manning e Dalai Lama e Martin Luther King e Paulo Coelho e Eugene Peterson e Richard Dawkins e Malba Tahan e Tolstoi e coisas que Shakespeare realmente disse e Diego Mainardi. Tudo devidamente versicularizado, empalhado e fetichizado: pedaços de carne, ao mesmo tempo expostos para a admiração pública e separados do corpo.
Essa, como dizia minha avó, é a hora da queima: a hora da sistemática caixa-de-promessização de tudo neste mundo que já foi belo, humano e sagrado. Fetichizar a BÃblia foi tarefa para amadores; sente-se aà e assista enquanto retalhamos cada página jamais escrita até a desfiguração completa.
Outro dia minha irmã, que está no Facebook, tropeçou ali em imagens coloridas que emolduravam frases inspirativas – praticamente Preciosas Promessas – do Paulo Brabo (mais um motivo para não estar no Facebook, não?). Sendo minha irmã, ela achou meio sinistra aquela tietagem e me escreveu perguntando se não me incomoda saber que coisas que escrevo andam circulando pela net na forma de gotas de sabedoria.
Respondi que sim, claro que me incomoda, mas que ela não devia estranhar por encontrar no Facebook algo que é tão tÃpico do Facebook: a fetichização de uma coisa que em outro lugar talvez fizesse sentido e tivesse o seu valor. E concluà que o que de fato me irrita é pensar que nas redes sociais encontram destino igualmente indigno autores melhores.
Naturalmente, encontro como todo mundo prazer diante de uma ideia magistralmente construÃda e articulada – digamos, esta de Borges: apaixonar-se é criar uma religião cujo Deus é falÃvel. Ou esta, minha: mil gênios podem não ajudar, mas um idiota faz toda a diferença.
Porém há um mar entre apreciar uma frase na cumplicidade de uma página e reduzi-la a pérola de sabedoria. É, praticamente, a diferença entre fazer amor e ficar excitado diante de uma imagem de sexo que você encontra na internet. Há entre as duas coisas uma relação mais do que casual, e você pode acreditar que nesta vida há espaço para as duas coisas, mas são ventos que falam de destinos diferentes.
* A caixa de promessas é também conhecida pelo nome aliterado de Preciosas Promessas; os produtos complementares da mesma linha, Memoráveis Maldições e Estressantes Exigências, nunca chegaram a conquistar uma grande fatia de mercado.
Publicado aqui, em 9 jun 13
Excelente texto.