Apesar da votação, constitucionalista avalia decisão dos ministros e insiste em visão contrária à adotada pela maioria. ‘Anencéfalo só morre porque está vivo!’
[Maria Garcia, Estadão, 14 abr 12] O valor universal dos direitos humanos vem juridicamente reconhecido desde a Carta da ONU de 1945, em cujo Preâmbulo os “Povos das Nações Unidas” reafirmam sua “fé nos direitos fundamentais do homem…”, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Na Constituição brasileira de 1988, duas disposições destacam-se no tema: o art. 5º, caput, pelo qual se garante a inviolabilidade do direito à vida, e o art. 227, pelo qual “é dever da famÃlia, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito á vida…”, além de colocá-la “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Esse, o mandamento constitucional dirigido a todos (famÃlia, sociedade e Estado). Então, qual é o problema, afinal, dos direitos humanos?
Um longo processo de desconstrução inicia-se na modernidade. “Ser moderno”, diz Marshall Berman, “é ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador. Pode acontecer então que voltar atrás seja uma maneira de seguir adiante: levar o modernismo de volta a suas raÃzes, para que ele possa nutrir-se e renovar-se”.
Evidentemente, o equilÃbrio está em responder: o que deve ser mantido? O que deve ser mudado? E aà está toda a diferença. Charles Taylor escreve sobre “a doença da modernidade” (1994): a primeira causa de mal-estar é o individualismo, uma conquista da liberdade que apresenta traços de uma “sociedade permissiva”, do comportamento da “me generation”, ou da generalização do “narcisismo”.
A segunda causa prende-se a um outro fenômeno inquietante da época moderna que se pode chamar “a primazia da razão instrumental, ou seja, essa racionalidade que utilizamos quando avaliamos os meios mais simples de chegar a uma dada finalidade”. Pensamos em termos de custo/beneficio, os quais atribuem um valor monetário à vida humana. A primazia da razão instrumental aparece também no prestÃgio que cerca a tecnologia e nos faz buscar soluções tecnológicas mesmo quando o objetivo é de outra ordem.
A terceira causa do mal-estar nos leva ao nÃvel polÃtico e à s consequências resultantes, precisamente, do individualismo e da razão instrumental. Uma delas é que as estruturas da sociedade tecnoindustrial restringem nossas escolhas, decidem por nós o que nos é necessário, daà podendo atingir um nÃvel de destruição como o que ocorre com o meio ambiente, e nas ameaças ecológicas que pesam sobre nossas vidas. Tais são, conclui Taylor, as três doenças da modernidade: a 1ª, uma perda de sentido, o desaparecimento dos horizontes morais. A 2ª, ao eclipse dos fins, em face de uma razão instrumental desenfreada. A 3ª refere-se à perda da liberdade.
Qual a receita?
Segundo Taylor, desenvolver uma cultura polÃtica que valorize a participação do cidadão, seja nos nÃveis governamentais, seja nas associações livres, e para tanto, certamente, a educação se mostra um instrumento poderoso e é o que nos falta estimular.
Sobre o aborto, especificamente, a lei brasileira aponta a sua possibilidade em certos casos, ressaltando-se que a vida é um processo que se inicia com a concepção (José Afonso da Silva) e o direito a viver está assegurado pela Constituição. Direito significa possibilidade do seu exercÃcio. Fora disso, não existe “direito a”. Então, há certos pressupostos para o exame dessas questões: 1) a Constituição erigiu a vida em bem jurÃdico; 2) juridicamente, a vida é um processo que se inicia com o óvulo fecundado e termina com a morte; e 3) a divisão desse processo (pré-embrião, embrião, etc.) cabe à s ciências naturais, para fins didáticos, medicinais e outros dessa área. No caso das crianças anencéfalas, portanto, todos esses pressupostos têm de estar presentes: existe um ser humano, vivo e, por consequência, sob a proteção constitucional.
“A tese da chamada ADPF 54”, diz o médico e professor Rodolfo A. Nunes (Folha de S. Paulo, 10/4/12), “é de que na anencefalia não se trataria de aborto”, pois inexistiria a possibilidade de vida extrauterina e, por isso, se situaria à margem da legislação atual. “Na realidade, essa tese não tem respaldo na literatura médica. A anencefalia não é equivalente à morte encefálica: as crianças podem ter uma parte do encéfalo posterior, médio e resÃduos do anterior. Isso faz com que um pequeno porcentual delas, em função do grau de comprometimento, possa ter alta hospitalar, chorando, movimentando-se, respirando espontaneamente e viver semanas, meses ou, excepcionalmente, mais de um ano.” E conclui: “Tentar abreviar o sofrimento trazido por uma doença grave eliminando alguém porque não se pôde curá-lo é cultura estranha ao nosso povo”.
Com efeito, se formos eliminar as causas de nosso sofrimento, farÃamos como O Estado publicou em 3/4/12: “Professor mata por causa de barulho”. O mesmo em outras circunstâncias, mais ou menos dolorosas e dramáticas. E, sem dúvida, Eliana Zagui, escritora, até hoje (36 anos) vivendo num leito de UTI no Hospital das ClÃnicas de São Paulo, paralisada desde o pescoço aos 3 anos, poderia ter sido sacrificada por causar sofrimento aos pais, que, aliás, “raramente a visitam” (Folha de S. Paulo, 10/4/12).
Conforme se destaca dos corajosos e fundamentados votos contrários, na recente decisão do STF: “Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, além de discutÃvel do ponto de vista ético, jurÃdico e cientifico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina” (ministro Lewandowski). Assim, “o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”. A questão dos anencéfalos tem de ser tratada “com cautela redobrada diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria”.
Para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, “abstraÃda toda especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina”. Nesse sentido, o aborto do feto anencéfalo é “conduta vedada de forma frontal pela ordem jurÃdica”. Os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são “de todo inócuos” e “atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural”. A discriminação que reduz o feto “à condição de lixo em nada difere do racismo, do sexismo, e do especismo”. Todos esses casos retratam “a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros” (ministro Peluso).
Eis a questão do valor universal dos direitos humanos neste limiar do século 21, quando enfocadas as condições e a dramaticidade da própria vida, onde quer que se encontre, desde as pequenas criaturas que não têm voz, às centenas de seres humanos sacrificados no Holocausto.
Maria Garcia é professora de Direito Constitucional e Direito Educacional