Sob a ditadura não havia só dois lados: a direita militar (e seus cúmplices civis) e a esquerda (desarmada ou armada) que resistia. Houve uma terceira margem que rejeitava a primeira sem aceitar as visões do campo oposto.
[Teixeira Coelho, Estadão, 1 jun 12] Uma história da arte sob a ditadura tem de ser uma história natural da arte sob a ditadura: em sua História Natural, PlÃnio o Velho disse que a história tinha de ser a história de tudo que cabe “no compasso de nosso conhecimento”. Ficar só com parte dela é não enxergar muito dela. A ditadura, como outras formas sociais, é marcada pela permeabilidade. Ela tudo atravessa, tudo afeta — e tudo a atravessa e afeta. Deixa marcas no que nem toca diretamente. E no que parece não a tocar de frente também se sente o bafo de sua pútrida presença.
Sob a ditadura não havia só dois lados: a direita militar (e seus cúmplices civis) e a esquerda (desarmada ou armada) que resistia. Houve uma terceira margem que rejeitava a primeira sem aceitar as visões do campo oposto: já era 1964 e depois foi 1968 e se conhecia bem o que acontecia do outro lado do Muro.
Na arte do perÃodo esse cenário se reproduziu. Com algo a menos: não houve “arte de direita”: sob o mando da direita, a cultura dominante foi de esquerda. Ou de contestação – à direita e a muito mais. À esquerda também, contestada em suas palavras de ordem polÃticas e culturais. Se SOS (ou S.O.S.) de Rubens Gerchman podia ser lida como grito de socorro contra a opressão militar, tinha um sentido e um alvo bem mais amplos o porco empalhado que Nelson Leirner envia em 1967 ao Salão de Arte Moderna de BrasÃlia apenas para denunciar, em seguida, os critérios de aceitação da obra pelo júri e, através deles, todo a arte (“isso é arte?”), o sistema da arte e -permeabilidade-o sistema social que a arte “oficial” alimentava e pelo qual era nutrido.
A arte brasileira do momento, e desde antes da ditadura, estava em conflito aberto não só com a arte anterior – de concretos, neo-concretos e abstrato-expressionistas – como com todo o sistema da arte em formação. A positividade concretista e a suave dissidência do inÃcio neo-concretista nada mais diziam aos artistas jovens. A abstração estava na vazante, o figurativismo subia na esteira do pop americano e em seguida tudo isso seria levado e levado pela arte conceitual que não mais demoraria 20 ou 30 anos, como os movimentos anteriores, para chegar ao paÃs.
A partir daquele mesmo 1967, Walter Zanini conduz no MAC USP a Jovem Arte Contemporânea que contesta tudo que era possÃvel contestar, não só a ditadura. O mundo contestável era maior que a ditadura, por sacrÃlega que seja a imagem. Em 1973, Júlio Plaza, Regina Silveira, Amélia Toledo, Anésia Pacheco Chaves, o francês-de-passagem-por-aqui Fred Forrest fazem uma arte à mão para ser distribuÃda de mão em mão nas ruas (a série ON/OFF) como panfletagem artÃstico-polÃtico-existencial que negava o mercado da arte, o museu, a arte bonita e medida da abstração geométrica e denunciava tudo. Tudo.
“ARE YOU ALIVE?VOCÊ ESTà VIVO?”, imprimia Júlio Plaza no verso de um falso cartão postal verdadeiro em cujo reverso se via um bombardeiro norte-americano despejando sua rotineira carga de bombas sobre algum Vietnã. Em 1973, muitos não mais podiam, por aqui, responder “sim” à pergunta de Júlio. É possÃvel invocar o princÃpio da permeabilidade para propor que essa não era uma arte contra a ditadura militar mas uma arte que, atacando o aliado da ditadura militar, combatia a ditadura militar. E a ditadura sabia disso.
Mas…nessa mesma série, Donato Ferrari, numa folha de papel (apenas isso: mera folha de papel sem valor (à época: hoje, pode valer algumas dezenas de milhares de reais…), mostrava duas vezes um homem de costas sob as inscrições “eu sou imprevisÃvel” e “posso ser até criativo”. Ser imprevisÃvel e ser criativo era um recado para a direita e para a esquerda - basta lembrar O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira. E Amélia Toledo imprimia, no mesmo formato de papel, a marca de seus lábios vermelhos entreabertos sugestivamente – e mais nada: só a impressão dos lábios, feita não à mão mas à boca. Não era coisa de esquerda, nada de engagée nesse 1973, um ano e dois anos e três anos depois dos anos negros de 1970, 1971 e 1972, anos do “Brasil: ame-o ou deixe-o”(não havia arte de direita mas já havia publicidade de direita…), e dois anos antes do assassinato de Wladimir Herzog num quartel e outros anos antes da “abertura lenta e gradual” que levou ainda dez anos para acabar e que não acabou. Lindos lábios vermelhos, entreabertos, não era coisa muito “polÃtica”, mesmo em vermelho…
E no entanto, permeabilidade: pelos lábios de Amélia se atingia a ditadura assim como a ditadura atingia os lábios vermelhos de Amélia. É uma história naturalmente rica, a das artes visuais sob a ditadura no Brasil. Complexa. Nada unidimensional. A ser lida em várias chaves, em todas as chaves: a de Hélio Oiticica e sua bandeira “Seja marginal, seja herói”, de 1968, ano do primeiro verão brasileiro negro e sangrento; a do “Amor-paz” de Anésia Pacheco Chaves e a do Pudim Arte Brasileira de Regina Silveira que em 1977 ensinava, numa receita também em folha de ofÃcio que era obra de arte, como fazer artebrasileira: com 2 xÃcaras de olhar retrospectivo, 3 de ideologia, 1 pitada de exacerbação da cor e, last but not least, 1 Ãndio pequeno ralado… Se dissesse isso hoje, Regina seria presa e apedrejada moralmente por violar alguma lei politicamente correta… À época, quase foi – ou assim se sentiu, era o que interessava à ditadura: fazer sentir o perigo de dissentir. Mas, lembrar: do lado oposto havia a patrulha ideológica, mortal na sua igual imoralidade.
Olhando através -permeabilidade- da enorme vaga de arte visual daqueles 20 anos enxergam-se as asas negras (se permitido dizê-lo) da ditadura. E de muito mais coisa. Algumas, belas.
Teixeira Coelho é curador do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e escritor, autor de O Homem que Vive (Iluminuras), entre outros trabalhos.