Congoleses, senegaleses e guineenses fogem de guerras e conflitos nos seus paÃses. Até encontrarem o apoio de organizações filantrópicas, passam fome, frio e ficam expostos a abusos nas ruas de São Paulo.
Maria (*) fecha os olhos e canta para lembrar de seu paÃs. Ela está na recepção de uma instituição católica em São Paulo, aguardando cobertor e cesta básica, mas sente-se ao lado do marido e dos filhos em Bukavu, sua cidade-natal.
[Karina Gomes, DW, 10 jan 2013] A guerra a fez fugir da República Democrática do Congo para o Brasil. Sozinha e sem notÃcias da famÃlia, ela aguarda ser reconhecida como refugiada no paÃs, assim como outros 5 mil solicitantes de 70 nacionalidades.
Ela não sabe onde está o marido nem os dois filhos, um de 2 e outro de 8 anos. “Eu fui para o trabalho e o meu marido ficou em nossa casa, no Congo. Começou a guerra e eu fugi por uma estrada. Meu marido e meus filhos fugiram em outra direção. Eu não sei se estão vivos. Não tenho qualquer informação.”
Amigos de Maria a ajudaram a tirar o visto brasileiro e pagaram a passagem de avião. Ao chegar ao paÃs, no inÃcio de 2013, a congolesa perambulou pelas ruas de São Paulo durante oito dias. “Fazia muito frio e eu não tinha mais nada. Eu pedia aqui e ali para me arranjarem qualquer coisa para comer”, relembra.
Um africano que a viu tremendo de frio na rua lhe ofereceu ajuda e a levou até o Centro de Acolhida para Refugiados, na Praça da Sé, no centro da capital paulista. O local é gerenciado pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. O escritório parceiro do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) encaminha os pedidos de refúgio ao Comitê Nacional de Refugiados, providencia documentação na PolÃcia Federal do Brasil e direciona os estrangeiros a abrigos.
“A maioria dos africanos vêm sem norte, por isso nós damos um primeiro apoio. São poucos os abrigos disponibilizados por organizações não governamentais. Temos a possibilidade apenas de encaminhá-los para a rede pública de albergues, que não é adequada para estrangeiros. Eles ficam numa condição muito vulnerável”, afirma Maria do Céu, que há seis anos atende estrangeiros na Cáritas.
Falsa rede de proteção
Madeleine, de Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo, também aguarda ser reconhecida como refugiada no Brasil. O pai da jovem de 18 anos era secretário de um deputado da oposição. Em 2012, quando o presidente da República Democrática do Congo, Joseph Kabila, recebeu informações de que o parlamentar conspirava contra o governo, todas as pessoas ligadas a ele foram perseguidas.
“Eu estava na escola. Meu pai, minha mãe e meus irmãos tiveram de fugir. Uma amiga da minha mãe me buscou e me levou para a casa dela. Ela me acolheu por dois meses e, depois, para minha segurança, mandou-me para o Brasil”, conta.
Ao chegar ao aeroporto de Guarulhos, ainda sem saber português, Madeleine pediu ajuda a um nigeriano, que a levou para a casa onde ele morava. Após seis dias trancada no local, a jovem foi estuprada. “Lá na casa dele aconteceu uma coisa ruim, e ele me expulsou da casa. Fiquei andando na rua e daà encontrei outro africano. Foi ele que me levou até a Cáritas.”
Segundo Carmen Victor, do Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil, a falta de amparo institucional faz com que as africanas caiam numa falsa rede de proteção. “São mulheres cuja vida é atrelada à figura masculina do pai, do irmão ou do marido. No Brasil, elas terminam sendo usadas por imigrantes africanos para vários fins. Muitas são obrigadas a transportar drogas e a prestar favores sexuais. Encontra-se de tudo, desde o apoio verdadeiro ao total abandono”, relata.
“Não há como voltar”
Francisca também foi vÃtima de perseguição polÃtica em Kinshasa, no Congo. O pai trabalhava para um coronel que se opôs à reeleição do presidente Kabila. Os dois tiveram que fugir. Ela parou de estudar e foi morar na casa de um amigo do pai.
A mãe e os dois irmãos permaneceram na casa da famÃlia. Policiais foram lá e perguntaram pelo pai de Francisca. Os pequenos começaram a chorar. “Eles sequestraram minha mãe e meus dois irmãos. Foram embora com eles e queimaram a casa. Não sobrou nada”, relata.
Meses depois, o amigo do pai de Francisca enviou a jovem ao Brasil por temer represálias. Ela chegou ao paÃs em janeiro de 2013. Sem falar português, passou dois dias dormindo no aeroporto de Guarulhos. Lá encontrou um grupo de moças que falava francês. Todas eram prostitutas.
“Quando eu cheguei à casa delas, falaram que eu poderia ficar, mas deveria trabalhar para me manter. Uma noite, elas me levaram até o ponto onde trabalhavam. Eu não queria fazer aquilo. Naquela noite, eu falei que não estava me sentindo bem, e elas entenderam”, conta.
No dia seguinte, ao não aceitar novamente, Francisca foi ameaçada. “Aquelas que falavam francês disseram: ‘Tem que chamar uns cinco homens para violar essa menina’. Eu me assustei. E, quando elas estavam distraÃdas, eu saà da casa e fugi.”
Francisca andou sem rumo pelas ruas de São Paulo. Ainda naquele dia, escutou um rapaz falando lingala, o idioma de Kinshasa. Ela pediu ajuda e foi levada até a Cáritas.
Hoje a congolesa vive num abrigo para menores de idade. Ela faz um curso de português e conseguiu emprego numa empresa de telemarketing. “Não tem como voltar porque há muito tempo as coisas não mudam. Quando eu nasci, já era assim. Eu cresci, e é a mesma coisa. Tenho estresse, dor no coração porque não sei onde está minha famÃlia, não sei o que aconteceu com eles.”
A jovem também relembra casos de violência em seu paÃs. “Quando o governo manda, o rebelde – não sei como posso chamar aquelas pessoas – quando eles encontram um menino e uma menina da minha idade, o pai e a mãe em uma casa, eles mandam o rapaz se deitar com a mãe e o pai, com a garota. Obrigam! Se você não faz, eles te matam”, conta Francisca.
Ela se recorda de um vizinho que foi obrigado a fazer sexo com a própria mãe, uma senhora de idade. “Com aquela vergonha, ele não conseguiu mais viver em paz e se matou.”
Apesar dos traumas, Francisca pretende estudar para poder ajudar os congoleses. Ela quer ser médica, mas sem a documentação necessária não consegue se matricular na universidade. “Já faz tempo que estou pedindo os documentos para o governo aqui no Brasil, mas não consigo. Quando eu era criança, eu falava que, quando eu tivesse 25 anos, seria uma grande médica. Essa incerteza me incomoda muito”, diz.
À procura de uma nova vida
Na Zona Leste de São Paulo, muitos homens africanos e moradores de rua brasileiros aguardam uma vaga no abrigo Arsenal da Esperança. No ano passado, a presença de estrangeiros aumentou.
Pedro Baptista, da Guiné-Bissau, chegou em março. Havia seis meses que estava sem receber o salário como professor dos ensinos fundamental e médio na capital guineense. O golpe de Estado em abril de 2012 motivou o sindicalista a sair do paÃs. “Deixei a minha esposa grávida, ela já deu à luz e nem tenho dinheiro para mandar para ela. O paÃs está em constante instabilidade. Então isso obrigou-me a procurar refúgio no Brasil. Vim cá procurar melhor condição de vida”, conta.
Formado em quÃmica e biologia, Pedro Baptista se tornou orientador comunitário do Arsenal da Esperança. Ele aguarda ser reconhecido como refugiado no Brasil, apesar de não ter sofrido uma ameaça direta. Em 2013, o governo brasileiro concedeu refúgio para apenas um africano da Guiné-Bissau.
“Os governantes do Brasil bem sabem que a Guiné-Bissau tem problemas. A CPLP [Comunidade dos PaÃses de LÃngua Portuguesa] não reconheceu o governo que está no poder neste momento. Imagine um paÃs com 40 anos de independência não ter nenhum governo que tenha terminado seu mandato e ser palco de sucessÃveis golpes. É lamentável, mesmo.”
Segundo o italiano Simone Bernardi, coordenador do Arsenal da Esperança, a maioria dos estrangeiros da casa que querem ser reconhecidos como refugiados no Brasil não foi vÃtima de perseguição. “São jovens que, muitas vezes, aparentam ser um pouco a elite do paÃs de onde vieram. Têm o perfil de quem completou os estudos e quer procurar um futuro melhor”, explica.
Pedro Baptista pretende fazer uma especialização no Brasil e mandar ajuda para seu paÃs. “A minha vida está em causa, porque eu sou o filho mais velho. Meus irmãos estão esperando alguma coisa de mim. E não só eles, também o povo da Guiné-Bissau.”
“Aqui não é minha terra”
Os mais de 4.500 refugiados reconhecidos pelo governo brasileiro enfrentaram uma longa jornada para escapar das mais variadas perseguições polÃticas, religiosas e étnicas. Omar está no Brasil há sete anos e já tem residência permanente. Ele é agente de saúde pública em São Paulo. Por motivos de segurança, não relata por que teve de deixar a República Democrática do Congo.
“Eu sempre falo isso. Aqui não é a minha terra. A minha terra é a minha terra. A minha terra é incomparável e vai permanecer comigo. Mas estou aqui. Estou batalhando para ter a minha vida. Se hoje não, amanhã, se não amanhã, depois de amanhã, eu voltarei”, diz Omar.
Para isso, ele defende que os governantes africanos precisam se preocupar mais com as necessidades da população do que com o poder. “Os polÃticos devem purificar a consciência e aprender o que é o amor. Sabe amor? Eles não têm.”
Mãe dos africanos
A jornalista Diop desembarcou no Porto de Santos, no litoral de São Paulo, há 11 anos. Alvo de ameaças por seu trabalho numa rádio popular na região conflituosa de Casamança, no sul do Senegal, foi obrigada a fugir.
“Há muitos problemas no Senegal. É a guerra fria que as pessoas não reconhecem. Estou contente com o povo brasileiro, que é muito gentil. Sinto-me como se estivesse em casa. Eu sei que tive mais oportunidades do que muitos africanos que foram para a Europa”, diz.
Diop vende roupas, tecidos de capulana, colares e estatuetas do Senegal na Praça da República, no centro de São Paulo. Duas brasileiras a ajudam no pequeno comércio. Para ela, todo africano ou brasileiro que precisa de ajuda é como um novo filho.
“Hoje eu trato dos africanos que chegam. Sou como uma mãe. Eu sou uma escrava de Deus e de todos que precisam de ajuda. Tenho dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro. Tenho colchões para as pessoas dormirem. Se há alguém com problemas, eu dou-lhe comida e mantimentos. A pessoa não paga eletricidade, água nem o quarto. Não paga nada. É tudo feito por mim e pelo meu marido”, conta.
Diop diz que, apesar da perseguição que sofreu, ama o Senegal. E é grata à acolhida que recebeu no Brasil. “Cada paÃs representa uma mãe. Nunca uma pessoa pode falar que não gosta da própria mãe. Eu gosto muito do meu paÃs, mas aqui no Brasil tenho coisas que não tenho lá. Eu tenho liberdade. Eu amo muito o Brasil.”
(*) Nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.