Como um documentário oportunista tornou-se maior viral da História e o que ele revela sobre a ingenuidade na rede.
[Marina Barros, Ópera Mundi, 15 mar 12] O ineditismo de um vÃdeo de 29 minutos ser viralizado não é o único fator que faz de KONY2012 um fenômeno da internet. Com mais de 100 milhões de “views†em menos de uma semana, o documentário produzido pela organização humanitária californiana Invisible Children tornou-se o “viral†de difusão mais rápida desde o surgimento da internet, e a campanha de captação de recursos mais bem sucedida dos últimos anos.
Personagens reais, celebridades como Oprah, Rihanna, exércitos de jovens lindos e loiros interagindo com polÃticos “do bem†compõem uma trama nada simples mas com uma mensagem clara: Precisamos parar KONY! E faremos isso pela mobilização da opinião pública para a autorização da instalação de uma base militar americana em Uganda que vai…parar KONY. (Stop KONY!)
KONY é o vilão, um ditador que, segundo o vÃdeo, pratica atrocidades contra a população ugandense há mais de 20 anos. Cooptação de menores, mutilações e estupros são alguns exemplos. As imagens e os depoimentos das crianças são de fazer qualquer um marear os olhos.
A organização Invisible Children faz um chamado simples: para continuarem à luta contra o ditador (ou a guerra pela paz na Uganda), é preciso torná-lo conhecido. KONY é o numero 1 da lista da Corte Penal Americana; Torná-lo famoso é o primeiro passo para mobilizar a opinião pública e exigir da Casa Branca o envio de tropas e reforço para o exército local, que luta contra o exército de KONY.
A campanha em si é de tirar o chapéu. Focada em um público jovem e antenado, constrói um mosaico de elementos que tocam o coração: crianças americanas lindas falando sobre o “homem mauâ€, crianças africanas chorando e pedindo ajuda, artistas e polÃticos de alta reputação dando credibilidade à causa. Pressão de tempo é outro elemento indispensável: tudo tem que ser feito agora, não há tempo a perder.
A cereja do bolo é o convite para a adesão à campanha: “não queremos o seu dinheiro, queremos sua participação, sua iniciativa em ir à s ruas e colar cartazes KONY 2012, juntar-se à multidão no dia 12 de Abrilâ€. A fórmula é infalÃvel e muito bem aplicada, em tempos de Occupy, KONY 2012 é a possibilidade de compra do seu próprio Occupy. Para adquirir o KIT, paga-se 25 dólaras e recebe-se em casa uma caixa contendo cartazes e 2 pulseirinhas, uma para você e outra para presentear.
Até aqui nada de novo, mas vale refletir um pouco sobre KONY 2012.
Um viral que se espalhou com tamanha velocidade foi compartilhado predominantemente por adolescentes meninas (13 a 17) e jovens meninos (18 a 24). Na flor da idade, eles envolveram-se apaixonadamente pela causa de um amigo ugandense da mesma idade – o personagem real que clama por ajuda, gerando uma forte identificação com este público. É inegável o forte engajamento demonstrado por estes adolescentes e jovens, demonstrando sua potência em “fazer justiça pelas próprias mãosâ€. Mas a ausência de um filtro mais crÃtico deste público pode ter sido a causa do compartilhamento indiscriminado do vÃdeo, gerando tamanho sucesso.
Fica evidente que um espectador crÃtico e atento fará alguns questionamentos ao vÃdeo. Prova disso foi o “rebote†que este sofreu, com artigos em importantes veÃculos em menos de dois dias após seu lançamento. A rede não deixa barato, as pessoas não tardaram a buscar a versão oficial, ou melhor, as outras versões. Alguns exemplos podem ser encontrados no Huffington Post e The Guardian.
As crÃticas frisaram alguns aspectos centrais do viral:
Neo-colonialismo: o vÃdeo reforça o estereótipo do americano bonzinho que salva a Ãfrica, “continente de mazelas infinitasâ€, desconsiderando todas as iniciativas sociais e polÃticas bem sucedidas de dentro de Uganda. Trata-se de uma postura claramente neo-colonialista. Não são consideradas questões polÃticas regionais, que agravam o contexto do paÃs. Nem mesmo é mencionada a existência de instituições estabelecidas no pais, como um governo federal, do presidente Yoweri Museveni, que também deveria ser alvo de pressão polÃtica. Finalmente, desconsidera-se a responsabilidade das grandes potências pelo que a Ãfrica é hoje.
Agenda oculta: seria KONY o novo Bin Laden? Qual o interesse em criar uma base militar em Uganda? Quem sabe, descoberta, em 2009, de uma grande reserva de petróleo na região? Talvez, mas eu sempre desconfio de uma agenda oculta, quando há interesses dos Estados Unidos, Reino Unido e ONU. Basta olhar para o Vietnã, o Iraque, a Libia, o Afeganistão e, agora, o Irã. Além de toda a história de apoio a ditaduras militares na América Latina, Ãfrica e Ãsia.
Credibilidade da organização
O relatório financeiro da organização Invisible Children aponta que apenas 30% dos recursos são destinados para as comunidades em Uganda. É claramente o que poderÃamos chamar de uma organização social midiática, que vive para e de suas campanhas. Uma reflexão sobre este tema precisa ser aprofundada. O retorno financeiro das campanhas é diretamente proporcional ao investimento em mÃdia e criação de conteúdo (vÃdeos, fotos, textos). Não é de hoje que as organizações que adotam investimentos agressivos em imagens e campanhas, são criticadas por captarem mais para seus executivos e publicitários que para os objetos de suas campanhas. Vejam o documentário “Enjoy Poverty Please”, do artista plástico Renzo Martens, sobre os Médicos sem Fronteira. (http://youtu.be/yREqd8QYtsQ)
A complexidade do funcionamento da rede e das suas relações extrapola uma visão dualista de bem e mau. O episódio KONY 2012 pode ser marcado como uma grande farsa que caiu na rede e virou sucesso. Mas um ilustre desconhecido, David Childerley, chamou atenção para alguns pontos interessantes em seu programa, “update 2012 ” no seu canal do youtube. No 11/9, lembrou ele, as pessoas demoraram anos e anos para questionar a versão oficial; KONY 2012 levou dois dias para ser desvendado; o próximo viral do gênero não terá mais que seis horas para ser escarafunchado, testado e aprovado – ou não. A rede é implacável, o poder de mobilização é infinito.
Originalmente publicado aqui.