Por Dalmo de Abreu Dallari
Um fenômeno social que vem ganhando corpo nos últimos tempos é o aparecimento de grupos autodenominados religiosos, que, geralmente sob a direção de um lÃder, arrebanham adeptos, atraindo pessoas, quase sempre pouco esclarecidas ou socialmente frágeis, ou, ainda, dissidentes polÃticos ou religiosos aos quais oferecem um instrumento de oposição, e logo procuram formalizar a existência do grupo como uma nova igreja. E assim procuram obter proveitos materiais de várias espécies, em fraude à lei. Isso explica o aparecimento de novas igrejas em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil.
Percebendo a ocorrência desse fenômeno e desejando conhecê-lo melhor, para, entre outras coisas, despertar a opinião pública para os graves prejuÃzos individuais e sociais que isso pode acarretar, dois jornalistas ligados à Folha de S.Paulo, Cláudio Ângelo, editor de Ciência, e o repórter Rafael Garcia, decidiram criar experimentalmente uma nova igreja, evidentemente fundada numa fantasiosa crença religiosa.
Para tanto, com o objetivo de evidenciar a tranquila possibilidade legal de consumar essa fraude, solicitaram a orientação de um dos mais prestigiosos escritórios de advocacia de São Paulo, respeitadÃssimo pelo alto nÃvel de conhecimentos e pelo rigoroso padrão ético de seus integrantes – o escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Associados. E assim adotaram as providências legalmente exigidas para concretizar a criação da igreja de fantasia.
Exploração da ignorância
Verificaram, então, que não existem requisitos teológicos ou doutrinários para a criação de uma igreja, não havendo também a exigência de um número mÃnimo de fiéis. Redigiram um documento de fundação do que denominaram Igreja Heliocêntrica do Sagrado Evangelho e fizeram a inscrição da entidade no Cadastro Nacional de Pessoas JurÃdicas, obtendo assim o número do CNPJ.
Com base nesse documento abriram uma conta bancária, fazendo várias aplicações financeiras, gozando de isenção dos tributos normalmente incidentes sobre operações dessa espécie, pois, segundo a Constituição, no artigo 150, inciso VI, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos MunicÃpios instituir impostos sobre templos de qualquer culto.
Nessa mesma linha, a nova igreja poderá adquirir e vender imóveis, realizar transações econômicas, cobrar pela prestação de serviços e praticar outros atos que beneficiem pessoalmente os criadores e dirigentes da igreja, sem que sejam obrigados a pagar o IPVA, o IPTU, o ISS e qualquer outro tributo. E como as igrejas são absolutamente livres para definir sua organização e direção e para admitir e manter seus sacerdotes, que, nessa condição, ficam isentos da obrigação de prestar o serviço militar obrigatório, um dos dirigentes designou seus próprios filhos como sacerdotes, garantindo-lhes, desse modo, essa isenção, devendo-se ainda acrescentar que, além desse privilégio legal, os sacerdotes terão direito a prisão especial, se forem envolvidos numa ocorrência policial.
Acrescente-se, ainda, que os dirigentes da igreja poderão indicar os imóveis de sua residência como sendo templos da igreja e assim ficarão isentos dos tributos municipais.
Essa iniciativa dos jornalistas, levada a efeito discretamente e sem procurar provocar escândalo, é merecedora do maior elogio e deve ser amplamente divulgada, para chamar a atenção dos que podem e devem influir para impedir a multiplicação fraudulenta de igrejas. Essa fraude deve merecer especial atenção dos legisladores e dos governos, pois além de acarretar enormes prejuÃzos a todo o povo, por criar a possibilidade de intensa atividade econômico-financeira sonegando tributos, alimentam-se da exploração da ignorância e da fragilidade de pessoas das camadas mais pobres da população.
Ação educativa
Bem ilustrativo da audácia desses exploradores da ignorância e da ingenuidade de pessoas mais simples é a notÃcia da criação de uma linha telefônica para falar com Deus, fato divulgado pelo jornal francês Le Monde (4/3/2010, pág.26).
Conforme registra com ironia aquele jornal, foi criado um novo serviço telefônico, “Le Fil du Seigneur”, iniciativa da sociedade Aabas Interactive. Fornecendo os dois números disponÃveis para as ligações, informa o jornal que o custo das ligações é de 15 centavos de euro para as ligações comuns e de 34 centavos para as ligações urgentes e diretamente dirigidas a Deus.
Quem ligar para o serviço ouvirá uma gravação dizendo : “Você está em presença de Deus para o recolhimento e a prece a fim de receber sua graça”. Acrescenta o jornal, sempre ironizando, que os promotores desse piedoso serviço não estão autorizados a conceder absolvição por telefone, mas os interessados podem deixar sua confissão. E para acentuar os objetivos de apoio e edificação espiritual, uma gravação diz no inÃcio: “Para receber conselhos, digite 1; para confessar, digite 2 ; para escutar confissões de outros, digite 3”.
Parece absurda a criação de um “serviço” dessa natureza, mas o fato de ele continuar existindo é um sinal de que também existem usuários, o que deixa evidente que há ambiente para audácias desse tipo.
Num pronunciamento recente, o presidente da Ordem dos Advogados de Angola chamou a atenção para o surgimento e a multiplicação de práticas ilegais naquele paÃs, ligadas justamente à exploração de crenças religiosas. E observou : “Não me surpreende o surgimento de crimes ligados à exploração religiosa, porque onde há pobreza, ignorância e um nÃvel cultural extremamente baixo há propensão para que essas práticas religiosas duvidosas prevaleçam e tenham espaço”.
E sublinhando que a legislação angolana exige um mÃnimo de cem mil aderentes para a existência de uma igreja, o que considera bom mas insuficiente para impedir as fraudes, acrescentou que “é responsabilidade do Estado, nos termos da lei, controlar para que o direito de liberdade religiosa não seja utilizado para fins contrários ao que está previsto na Constituição”, considerando necessária uma ação educativa do Estado, mas também uma ação repressiva, para impedir práticas que, sob a máscara de atividades religiosas, prejudiquem os direitos de outros cidadãos e a própria ordem pública.
Necessário e urgente
Observe-se, afinal, que esse fenômeno da exploração religiosa, muito oportunamente posto em evidência pelos jornalistas da Folha de S.Paulo, vem preocupando vários paÃses da Europa. Assim, na França já estão em vigor três leis tratando de questões relativas ao surto de organizações religiosas e suas repercussões legais. A primeira é de 18 de dezembro de 1998 e cuida, sobretudo, do problema do acesso de crianças à escola, que é obrigação dos pais e vinha enfrentando obstáculos sob alegação de motivos religiosos. A segunda, de 15 de junho de 2000, deu legitimidade à s associações civis que lutam contra as seitas para propor ou integrar ações judiciais, inclusive na área penal, nesse âmbito. A terceira lei, de 12 de junho de 2001, trata dos movimentos sectários que atentam contra os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Esta lei permite a propositura de ação contra fatos que podem ser qualificados como “abusos fraudulentos do estado de ignorância ou de fragilidade”, com agravantes quando praticados contra crianças ou pessoas em situação de fraqueza.
Essas questões já vêm sendo objeto de considerações do Conselho da Europa, que em 1992 fez recomendações relativamente às seitas e aos novos movimentos religiosos e em 1999 reforçou seu pronunciamento considerando as atividades ilegais das seitas. Como fica evidente, há uma situação nova envolvendo as questões religiosas, com efeitos graves sobre os direitos.
Por tudo isso, é muito oportuna a advertência sobre o que vem ocorrendo no Brasil nessa área. A Constituição brasileira declara inviolável a liberdade de consciência e de crença, mas ao mesmo tempo diz, no artigo 5°, inciso XVII, que é plena a liberdade de associação “para fins lÃcitos”. É evidente que o uso fraudulento da invocação religiosa nada tem a ver com a liberdade de crença e, ainda mais, por suas conseqüências de ordem prática, acarreta graves prejuÃzos a todo o povo, confere privilégios injustos e cria uma situação de conflito, opondo as organizações desonestas à s instituições que se fundamentam, autenticamente, em crenças religiosas.
Assim, pois, é necessário e urgente que o tema seja posto entre as prioridades brasileiras, para que se tenha uma legislação que, mantendo a laicidade do Estado, garanta a liberdade de crença com pluralidade, coibindo a invocação fraudulenta dessa liberdade.
Fonte: Observatório de Imprensa, 16 março 2010
*Dalmo Dallari é jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da USP