O avanço da exploração econômica na fronteira entre o Brasil e o Peru ameaça causar um genocÃdio entre Ãndios que vivem isolados na região, segundo organizações indÃgenas e indigenistas.
[João Fellet, BBC Brasil, 19 abr 2012] Estimados em algumas centenas pelo escritório da Funai (Fundação Nacional do Ãndio) em Rio Branco (AC), esses Ãndios – em sua maioria falantes das lÃnguas pano e aruak – vivem nas cabeceiras de rios na fronteira, atravessando-a livremente.
No entanto, segundo indigenistas, a exploração de madeira e o tráfico de drogas estão deslocando esses povos, que, em contato com outras populações (indÃgenas ou não), poderão ser dizimados por doenças ou confrontos armados.
“Notamos que há mudanças nas rotas dos isolados, que têm avançado além dos espaços que costumavam frequentar, por conta da pressão que sofrem do lado peruano”, diz a coordenadora da Funai em Rio Branco, Maria EvanÃzia dos Santos.
“Ãndios contatados estão preocupados, e muitas aldeias se mudaram por conta da proximidade, para evitar confrontos”.
O quadro, diz Santos, se agravará caso obras planejadas por governantes locais saiam do papel. Há planos de construir uma estrada entre as cidades peruanas de Puerto Esperanza e Iñapari, margeando a fronteira com o Brasil, e de fazer uma rodovia ou uma ferrovia entre Cruzeiro do Sul (AC) e Pucallpa, no Peru. Ambas as obras cruzariam territórios de Ãndios isolados.
“Se eles forem espremidos, vão para cima dos manchineri da TI (Terra IndÃgena) Mamoadate, que vão se defender. Como há histórico de conflitos, não é leviano falar em risco de genocÃdio”, diz o coordenador-substituto da Funai em Rio Branco, Juan Scalia.
O termo também é citado por indÃgenas peruanos: “Se a estrada de Puerto Esperanza a Iñapari sair, haverá um genocÃdio”, afirma Jaime Corisepa, presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad), principal movimento indÃgena do Departamento (Estado) de Madre de Dios.
Risco de conflitos
As pressões sofridas por Ãndios isolados no território peruano e seus possÃveis efeitos no Brasil já fizeram com que o presidente da Funai, Márcio Meira, procurasse a embaixada do Peru em busca de providências. Paralelamente, movimentos como a Comissão Pró-Ãndio do Acre (CPI-Acre) têm promovido encontros com Ãndios brasileiros contatados para conscientizá-los sobre as ameaças sofridas pelos isolados e desencorajar conflitos.
“Eles percebem que os isolados estão vivendo o tempo das correrias de seus avós, que fugiam dos empresários da seringa”, diz Marcela Vecchione, consultora da CPI-Acre. Ela se refere à violência sofrida pelos Ãndios da região durante o ciclo da borracha, entre o fim do século 19 e inÃcio do 20.
Acredita-se que os Ãndios isolados sejam remanescentes de grupos massacrados e perseguidos durante aquele perÃodo. Com o declÃnio da extração de borracha, eles voltaram a seus territórios.
“Sabemos que eles estão bem, têm comida suficiente e vivem em malocas bem cuidadas”, diz Santos, da Funai, citando informações colhidas em expedições do órgão. Numa delas, em março de 2010, um avião sobrevoou uma aldeia de Ãndios isolados, que atiraram flechas contra a aeronave. As fotos estamparam jornais do mundo todo.
Encontros
Embora a expressão Ãndios isolados possa sugerir grupos que vivam completamente alheios ao mundo exterior, há numerosos relatos de encontros entre essas populações e Ãndios contatados, bem como de encontros entre Ãndios isolados e não-indÃgenas que habitam o entorno de seus territórios.
Muitos desses encontros resultaram em conflitos, o que rendeu aos isolados o apelido de “Ãndios brabos” na região. Em 1986 e 1987, segundo relato do sertanista da Funai José Carlos Meirelles, o acirramento dos conflitos levou Ãndios kaxinawá e ashaninka contatados a pedirem que o governo “amansasse os brabos”.
Em resposta, a Funai criou em 1988 o Departamento de Ãndios Isolados, cuja missão é proteger esses povos sem promover nenhuma relação. Desde então, a polÃtica da Funai estabelece que só haverá contato com esses indÃgenas se eles desejarem.
No entanto, têm se tornado cada vez mais constantes os relatos da presença de Ãndios isolados em áreas ocupadas por indÃgenas contatados ou comunidades de agricultores e pescadores.
Em informativo publicado em dezembro de 2010 pela CPI-Acre, indÃgenas e ribeirinhos entrevistados dizem que Ãndios isolados furtaram seus pertences, como roupas, utensÃlios domésticos e ferramentas. Os saques, segundo o informe, têm sido especialmente frequentes no municÃpio de Jordão (AC). Um deles, em 2009, ocorreu em vilarejo a cinco horas de caminhada da sede da prefeitura.
Também na publicação da CPI-Acre, Getúlio Kaxinawá, um dos principais lÃderes indÃgenas do rio Jordão, relata a morte de um “brabo” por caçadores não-Ãndios, em 2000. “Sei também que em maio de 1996 os brabos mataram duas mulheres lá na colocação Tabocal (…), a dona Maria das Dores (47 anos) e sua filha Aldeniza (13 anos). A filha, atingida por várias flechadas, uma delas na garganta, morreu nessa colocação e a mãe, com uma flechada na barriga, só morreu quase dois meses depois num hospital de Rio Branco”.
Kaxinawá relata ainda um ataque dos “brabos” que resultou na morte do dono de um seringal, em 1997, e de ofensiva empreendida pelo grupo contra uma comunidade de não-Ãndios: “Cercaram a sede do (seringal) Alegria, fazendo muito medo a todos os moradores de lá. Eles também cercaram e flecharam uma escola lá no alto Tarauacá e depois a maioria dos moradores se retirou de lá por causa da vingança dos brabos”.
Exploração de petróleo
Além das ameaças impostas pelas estradas, por madeireiros e traficantes, ONGs alertam para os riscos da exploração petrolÃfera na região fronteiriça. No lado peruano, vários lotes já foram cedidos a empresas privadas para a prospecção dos bens.
A ONG Survival International afirma que o governo peruano está permitindo que as empresas avancem sobre territórios de Ãndios isolados, violando diretriz da ONU que defende a proteção dessas áreas.
A organização diz que, em 1980, ações semelhantes provocaram a morte de quase metade dos membros do povo nahua. À época, funcionários da Shell abriram caminhos na terra indÃgena em que a comunidade vivia isolada, disseminando doenças entre seus integrantes, segundo a ONG.
Também há preocupações quanto à exploração de petróleo e gás do lado brasileiro. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) deve concluir neste ano testes sÃsmicos para avaliar a viabilidade de extrair os recursos.