Desafiando as fronteiras nacionais, indÃgenas de paÃses latino-americanos estão se articulando de forma inédita na oposição a obras que afetam seus territórios e a polÃticas transnacionais de integração.
[João Fellet, BBC Brasil, 23 abr 2012] Com o auxÃlio de tecnologias modernas e de conexões históricas, Ãndios de diferentes grupos têm buscado unificar posições em organizações internacionais como ONU e a OEA (Organização dos Estados Americanos). Experiências bem-sucedidas por toda a América Latina em disputas com governos e empresas também vêm sendo compartilhadas.
Ãndios sem fronteiras
“Estamos mapeando todas as conquistas dos nossos parentes (povos indÃgenas) no continente para aproveitarmos as experiências deles aqui no Brasil”, afirma Marcos Apurinã, coordenador-geral da Coiab (Coordenação das Organizações IndÃgenas da Amazônia Brasileira).
“Nossos problemas são praticamente idênticos aos dos indÃgenas dos outros paÃses”, diz ele à BBC Brasil.
Essa aproximação tem sido liderada pelas grandes organizações indÃgenas nacionais e por movimentos regionais, como a Coordenação das Organizações IndÃgenas da Bacia Amazônica (Coica), que agrega grupos do Equador, BolÃvia, Brasil, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.
Além de manter as organizações filiadas informadas sobre disputas envolvendo indÃgenas nos paÃses membros, a Coica tem promovido encontros entre seus integrantes.
Nas reuniões, discutem-se, entre outros temas, formas de pressionar os governos a demarcar territórios, como recorrer a organismos internacionais para fazer valer os direitos indÃgenas e o impacto de grandes obras nas comunidades tradicionais.
“Nos preocupa a nova forma de desenvolvimento conhecida como economia verde. Entendemos isso como um esforço para a exploração dos recursos naturais nos territórios indÃgenas”, diz à BBC Brasil Rodrigo de la Cruz, coordenador técnico da Coica.
Cruz cita algumas obras que considera dramáticas para indÃgenas na América Latina: no Brasil, a hidrelétrica de Belo Monte; na BolÃvia, a construção de estrada que atravessaria o parque nacional Tipnis; no Equador, a exploração petrolÃfera na Reserva FaunÃstica YasunÃ; no México, a estrada Bolaños-Huejuquilla; e na América Central, o Projeto Mesoamérica (integração de redes elétrica e de transporte do México à Colômbia).
Todas as obras acima são ou foram objeto de protestos de indÃgenas. E, como parte delas afeta povos tradicionais em mais de um paÃs, também entraram na pauta dos encontros entre Ãndios de regiões fronteiriças.
Obras transnacionais
A reportagem da BBC Brasil esteve na divisa com o Peru, onde Ãndios dos dois lados têm se reunido para tratar dos efeitos de uma série de obras destinadas a ampliar a integração binacional nos próximos anos.
A primeira delas – a rodovia Interoceânica, que liga o noroeste brasileiro a portos peruanos no PacÃfico – saiu do papel em 2011 e trouxe, segundo os indÃgenas, vários problemas à região, como desmatamento e mineração ilegal.
Jaime Corisepa, presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (Fenamad), principal movimento indÃgena do Departamento (Estado) peruano de Madre de Dios, diz temer um agravamento das condições caso os próximos projetos de integração saiam do papel. Um deles é o acordo energético que prevê a construção de seis hidrelétricas no Peru para abastecer o mercado brasileiro.
Protestos de Ãndios contra o acordo fizeram o governo peruano suspendê-lo e anunciar que ele só vigorará após as comunidades tradicionais serem consultadas, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Veja mapa: Conheça pontos de tensão para povos indÃgenas na América Latina
Laços históricos
A articulação entre povos indÃgenas dos paÃses amazônicos também é facilitada por fatores históricos. Marcela Vecchione, consultora da Comissão Pró-Ãndio (CPI) do Acre, diz que as fronteiras na região foram definidas conforme critérios econômicos e não levaram em conta as comunidades presentes, que, em muitos casos, foram divididas pelos limites nacionais.
Ao longo de várias décadas, segundo ela, esses povos mantiveram relação intensa com os dos paÃses vizinhos, cruzando as fronteiras livremente. Com a demarcação de terras indÃgenas pelos governos nacionais nas últimas décadas, porém, esse fluxo migratório foi reduzido, embora muitos povos binacionais (ou até trinacionais, em alguns casos) mantenham alianças por meio de casamentos e relações de parentesco com Ãndios de paÃses vizinhos.
É o caso dos manchineri, que vivem na região da divisa Brasil-Peru. São comuns os casos de Ãndios desse grupo que passam parte do ano em um paÃs e o resto, no outro.
Geraldo Manchineri, que vive em uma aldeia indÃgena no Peru, sempre visita os parentes do lado brasileiro – a reportagem da BBC Brasil o encontrou numa praça em Brasileia (AC).
Segundo Ricardo Verdum, doutor em Antropologia pela Universidade de BrasÃlia, os povos indÃgenas começaram a se articular em encontros internacionais nas décadas de 1960 e 1970, quando paÃses africanos e asiáticos lutavam para se livrar do jugo europeu. A evolução do diálogo resultou na Convenção 169 da OIT, de 1989, e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos IndÃgenas, de 2007.
Ele diz, porém, que o grande desafio dos movimentos é fazer com que os paÃses que subscreveram os documentos os respeitem.
Para isso, segundo Verdum, nos últimos anos, a articulação entre indÃgenas (especialmente na América Latina) tem se intensificado e ganhado contornos mais institucionais, com a criação de órgãos para fazer frente à s polÃticas dos Estados nacionais.
“Hoje, eles estão bem mais atentos, buscando se organizar de forma politicamente autônoma”, afirma à BBC Brasil.
Verdum diz esperar que, em alguns paÃses, esse processo enseje a criação de Parlamentos dos Povos IndÃgenas, órgãos que seriam vinculados ao Poderes Legislativos nacionais e serviriam para a elaboração de polÃticas especÃficas para os Ãndios.
Conferências virtuais
Além de dialogar sobre desafios comuns em reuniões internacionais, indÃgenas latino-americanos têm usado a internet para alinhar posições sobre temas que não necessariamente envolvam grandes obras ou conflitos com governos.
Tashka Yawanawá, lÃder da Associação Sociocultural Yawanawá, que atua no Acre, mantém um blog (awavena.blog.uol.com.br) e usa a internet para fazer videoconferências com povos de paÃses vizinhos.
Nos últimos dias, ele diz ter conversado pelo Skype com Ãndios peruanos sobre como as comunidades tradicionais podem se beneficiar dos “serviços ambientais” que prestam (como o plantio de ervas medicinais ou a preservação ambiental em seus territórios). O tema foi debatido em encontro recente nas Filipinas.
Segundo Tashka, a humanidade hoje vive “numa aldeia global em que tudo está conectado”.
“Hoje os povos indÃgenas não podem mais fugir do homem branco, da tecnologia. Temos que nos atualizar, nos preparar para encarar esse novo mundo.”