ConstruÃdo em 1991 para abrigar 90 mil pessoas, Dadaab tem hoje 380 mil. G1 visitou campo no Quênia, atualmente em emergência por superlotação.
[G1, 12 ago 11] Há 20 anos, a rotina se repete: eles chegam sem nada além da roupa do corpo, exaustos das caminhadas de semanas, à s vezes meses, famintos em busca de abrigo. Os portões de Dadaab, o maior campo de refugiados do mundo, no Quênia, nunca se fecham – e o complexo, projetado para abrigar 90 mil moradores, está lotado. Nos últimos meses, superlotado: a pior seca no Chifre da Ãfrica em 60 anos está levando diariamente ao menos 800 pessoas a bater nas portas de Dadaab. O G1 esteve no campo entre os dias 1º e 3 de agosto e mostra numa série de reportagens a estrutura, o dia a dia e as dificuldades de quem vive de forma permanente numa casa temporária.
Passar pela porta de entrada do complexo é uma vitória. Quem conseguiu chegar aqui sobreviveu à saÃda de sua terra natal, a dias de caminhada sob um calor de 40ºC, passou por estupradores e animais selvagens, enfrentou a fome e a sede. Os recém-chegados são cadastrados, avaliados por um médico e recebem uma cesta básica suficiente para até 21 dias – podendo ser renovada. Depois, a dificuldade é achar um teto: desde 2008, quando o campo foi declarado lotado, não há mais distribuição oficial de barracas. Cada um faz uma casa com o que encontra, de gravetos a sacos plásticos.
Dadaab foi construÃdo em 1991, quando estourou a guerra civil na vizinha Somália, após a queda do ditador Mohamed Siad Barre. A Organização das Nações Unidas (ONU), com a aprovação do governo do Quênia, montou na região fronteiriça (onde já viviam quenianos de origem somali) um complexo de três campos: Ifo, Dagahaley e Hagadera – cada um capaz de abrigar até 30 mil pessoas. A previsão era que o campo servisse de acampamento temporário para aqueles que fugiam, e que eles pudessem voltar para suas casas assim que o conflito terminasse. Mas, 20 anos depois, nada mudou.
“A solução é providenciar a paz na Somália, e o Quênia sozinho não consegue a paz na Somália! Então precisamos ter estratégias deliberadas e comprometidas sobre como levar esse assunto para a ONU, talvez até para o Conselho de Segurança. Porque o número de pessoas é muito grande. Não sei por quanto tempo podemos tomar conta dessas pessoas”, explica o encarregado do Departamento de Assuntos de Refugiados do governo queniano, Badu Katelo.
As dificuldades para alimentar e ajudar os somalis na própria Somália são muitas. Desde 1991, o paÃs está dividido por comandos tribais que lutam pelo poder. O principal deles é o al-Shabaab, que quer impor um regime islâmico no paÃs. Ligado à rede al-Qaeda, o grupo controla a parte sul da Somália, onde, por sua proibição, nenhuma agência humanitária trabalha.
As entidades que coordenam o campo recebem ajuda do mundo todo. Para esta crise atual, por exemplo, um apelo internacional foi feito em julho, e até o dia 3 de agosto, ao menos US$ 24 milhões foram arrecadados de paÃses europeus, dos EUA e do setor privado.
Depósito de pessoas
Mas ainda falta muita coisa em Dadaab: esgoto, água encanada, pavimentação, luz, dignidade e reconhecimento. O governo queniano não dá cidadania aos refugiados e eles não podem deixar o campo sem permissão – dada, em 2010, para apenas 2% dos moradores.
“O primeiro motivo para Dadaab ter se tornado o maior campo do mundo é que o conflito na Somália dura duas décadas”, explica o professor Dulo Nyaoro, do Departamento de Estudos para Refugiados da Universidade Moi, no Quênia. “Mas há também o fato de que um campo só pode ser temporário se a comunidade internacional procurar soluções duradouras para o problema somali. […] É uma enorme população cuja vida foi ‘suspensa’. Eles não podem tomar decisões para si mesmos, não podem usar suas habilidades e nem participar na economia de seus paÃses de origem”, diz o professor.
O drama do hospedeiro
O governo queniano teme que Dadaab vire um assentamento permanente e pressiona para que a ajuda seja levada diretamente para a Somália. No ano passado, o Quênia suspendeu a construção de uma extensão de um dos campos (Ifo 2), “por motivos de segurança”. Em julho deste ano, com a atual crise, se viu pressionado e aceitou abrir o novo terreno, para onde estão sendo realocados nos últimos dias 30 mil refugiados.
O primeiro-ministro do Quênia, Raila Odinga, disse que a resposta do governo para a seca tem sido a melhor dos últimos cinco anos e pediu que a entrada de refugiados fosse monitorada para evitar infiltrados do al-Shabaab. “Estamos pagando mais do que contribuindo para essa crise. Por isso, estamos pedindo à comunidade internacional para vir e ajudar”, disse ele na penúltima semana em seu discurso no Parlamento.
Conheça a rotina e a estrutura de Dadaab:
1º passo: a chegada
Quem chega no campo tem, primeiramente, as impressões digitais cadastradas na tenda da Acnur – a agência da ONU para refugiados. Logo depois, eles passam por uma avaliação médica na barraca da organização Médicos Sem Fronteiras. As crianças são vacinadas, pesadas e medidas. De acordo com o nÃvel de desnutrição, elas podem ser internadas direto dali. Se o caso não for grave, as famÃlias recebem orientação para o acompanhamento em um dos postos do campo.
A última etapa é a cesta básica suficiente para 21 dias, distribuÃda de acordo com o número de pessoas da famÃlia. Por cada membro se recebe:
– 4,4kg de farinha
– 4,4kg de farinha de milho
– 1,2kg de feijão
– 600g de óleo
– 100g de sal
– 420g de açúcar
– 945g de uma mistura fortificada de milho e soja
Dependendo da época, há ainda doação de utensÃlios de cozinha e cobertor. A partir daÃ, cabe ao recém-chegado buscar um lugar para se instalar. As tendas são geralmente feitas com gravetos e cobertas com panos e pedaços de sacolas plásticas – ou o que mais se encontrar pelo caminho.
O cadastro inicial permite a retirada de comida, mas não garante o registro oficial no campo. Ao ter as digitais fixadas no sistema, o refugiado ganha uma senha com uma nova data para comparecer ao centro de registro, no campo de Ifo. A espera para o registro pode levar até dois meses. Enquanto isso, segundo as agências humanitárias responsáveis pela doação, é possÃvel pegar mais cestas básicas.
Onde pegar comida
Uma vez registrado oficialmente como refugiado de Dadaab, é possÃvel conseguir comida duas vezes por mês nos postos de distribuição, espalhados pelos campos. Há também pontos de entrega de água, mas tudo ainda é pouco segundo os padrões de segurança alimentar. De acordo com os Médicos Sem Fronteiras, o volume recomendável de uso de água por dia por pessoa é 20 litros. O número em Dadaab é entre três e quatro.
Além de doada, a comida pode também ser comprada – há muita gente vendendo em frente aos centros de distribuição. Não é proibido vender o que se ganha de ajuda. Até porque, é preciso ter como se locomover, o que vestir etc.
Escola
Há escolas primárias em todos os campos, mas não há vagas suficientes para todos completarem o segundo grau. Não existem universidades em Dadaab, embora em alguns casos raros alguns jovens consigam bolsas e permissão para estudar em Nairóbi, capital do Quênia, ou em outro paÃs. “Mas não há o que fazer com o diploma”, diz o refugiado Moulid Iftin, de 23 anos. De fato, eles não podem, por lei, trabalhar, e mesmo que pudessem, não há cargos compatÃveis com o diploma universitário no campo. Ainda assim, o sonho de muitos jovens é completar o estudo.
Menina somali lê o Alcorão em escola islâmica de Ifo (Foto: Thomas Mukoya/Reuters)Menina somali lê o Alcorão em escola islâmica de Ifo (Foto: Thomas Mukoya/Reuters)
Trabalho
Já que não são reconhecidos como cidadãos, os refugiados não têm direito legal de trabalhar. Mas isso é facilmente burlado, já que em 20 anos uma economia foi criada em Dadaab. O comércio é a principal fonte de renda de quem vive ali. E há de tudo nos mercados: de itens básicos como comida e roupa até perfumes, cinema e brinquedos.
Para funções mais elaboradas, como a de costureiro – exercida só por homens em Dadaab -, há uma capacitação oferecida por ONGs que atuam no campo.
Segurança
A segurança de Dadaab é feita pela polÃcia queniana. A ONU contrata uma empresa de particular para cuidar do entorno de suas sedes e escritórios. Há toque de recolher para os funcionários das agências humanitárias: não é recomendável sair depois das 18h e antes das 7h. Para jornalistas, transporte só em comboio policial, ou com escolta armada por causa do perigo de sequestro.
De janeiro a junho deste ano, 358 incidentes de violência de gênero foram reportados em Dadaab. Quase cinco vezes mais do que o mesmo perÃodo de 2010.
Transporte
Carros e vans fazem o transporte entre os campos para os refugiados por US$1 no trajeto mais curto e US$ 2 no mais longo. A maioria dos refugiados, no entanto, caminha.