O que levou os garotos de uma reserva indÃgena em Mato Grosso do Sul a adotar o hip hop como cultura e a criar o primeiro grupo de rap indÃgena no Brasil.
A real que Bruno canta forte, em uma mistura de guarani e português, está bem perto daquele complexo esportivo de R$ 1,6 milhão cheirando a tinta. Sua casa de quatro cômodos é dividida entre ele, a mãe, o pai e cinco irmãos. O avô morreu espancado supostamente por capangas de fazendeiros que queriam os indÃgenas longe dali. O irmão mais velho escapou por pouco, mas leva um projétil alojado na perna. Na casa dos Verón, arroz e feijão são lei. Carne, pouca. Salada, “coisa de paulista”. Mandioca brota no quintal. Banho, só de caneca. A geladeira está quebrada. A TV funciona. O Playstation, também. E sempre, a qualquer hora, os celulares dos garotos tocam Eminem, Snoop Doggy, Racionais, MV Bill e Fase Terminal.
O hip hop chegou à s reservas indÃgenas de Mato Grosso do Sul como se fossem ali as quebradas do Capão Redondo. Para os filhos adolescentes das 15 mil famÃlias das etnias terena, guarani-caiová e guarani-nhandéva, era como se cada verso tivesse sido criado para suas próprias vidas. Se Mano Brown fala de conflitos entre pobres e policiais, eles têm pais e avôs retirados de suas terras a tiros pelo homem branco. Se MV Bill cita o tráfico de drogas, seus amigos estão cada vez mais fascinados pelo crack. “É uma das regiões mais problemáticas do Brasil”, diz o antropólogo especialista no grupo guarani há 40 anos, Rubem Thomaz de Almeida.
A luva também serve quando o assunto é música. O ritmo duro e constante de uma expressão 90% percussiva estaria facilmente em um ritual caiová. “Eu não pensava nessas coisas antes do rap. Ele que me fez ver nossa situação”, diz Bruno Verón.
Foi em Bruno e no seu irmão Clemerson que o ritmo bateu primeiro. “É nossa chance de sermos ouvidos fora da aldeia”, diz o lÃder. Kelvin e Charles, os outros dois integrantes e também irmãos entre si, foram recrutados na escola. Apesar dos nomes, todos são legÃtimos guarani-caiovás. Há muitos jovens registrados com “nomes brancos” na aldeia, como se percebe em uma conversa rápida com os garotos sobre rock and roll. “E vocês conhecem os Beatles?” “Sim, o John Lennon mora logo ali”, fala Charles, apontando para a vizinhança. Ele ri, mas é sério. John Lennon, Elton John, Jack, Jackson e Sidney Magal são Ãndios de 16, 17 e 18 anos que também escutam rap. Os meninos andam pela reserva com camisetas do Eminem e dos Racionais MC”s, tênis de basquete, bonés coloridos e celulares tocando rap. Quando se encontram, tocam as mãos abertas e depois fechadas como se faz na cidade. Muitos aprendem a dançar break em oficinas ministradas pela Cufa (Central Única de Favelas). Em uma delas, Higor Marcelo, cantor do grupo Fase Terminal, conheceu os garotos e passou a produzi-los. “Fiquei maravilhado quando ouvi”, diz. Higor fez um CD demo dos garotos e agora fecha a produção para o fim do ano de um primeiro disco do Brô MC”s.
Os ventos sopram a favor dos rappers da aldeia. A primeira vez que saÃram de suas terras foi em setembro de 2010, quando fizeram um show nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro. Uma garrafa pet guarda a água do mar que Kelvin trouxe de Copacabana. “Era muito salgada!” São Paulo eles conheceram em dezembro, quando fizeram um show no Sesc Belenzinho. “É abafado, parece que não tem ar.” Ele sorri de uma teoria sua sobre as placas das ruas que viu. “Anhanguera é um diabo velho. Anhangabaú é espÃrito mal do rio. A gente diz aqui que vocês foram a um pajé bêbado para dar nome aos lugares.” Os Brô MC”s tocaram também em BrasÃlia, na posse da presidente Dilma Rousseff.
E, assim, suas vidas vão ganhando instantes de fama. Clemerson é o mais procurado pelas garotas. “A gente dá autógrafo.” Os olhos de guerreiro de Bruno são só para o palco. Fora dele, é um cavalheiro. Ao sair com o repórter pela aldeia de bicicleta, sugere uma caminhada quando sente o pulmão do parceiro saltando pela boca. Enquanto caminhamos, ele fala mais. Ao ver que o repórter usa aparelho dentário… “Eu tinha que usar isso, mas minha mãe disse que um raio poderia cair em mim.” Ao passarmos por uma embalagem de camisinha jogada na estrada… “Aids aqui tem bastante, mas muitos meninos casam cedo, com 12, 13 anos.” E ele? Não namora? “Namoro é como prisão, não dá pra fazer mais nada.” Bruno é um cavalheiro e um sábio.
Um de seus raps se chama Tupã e mostra que o Brô MC”s já cria seu próprio discurso. “Aldeia, a vida mais parece uma teia / que te prende e te isola, não quero tua esmola / nem a sua dó, minha terra não é pó / meu ouro é o barro onde piso, onde planto / e que suja seu sapato quando vem na reserva fazer turismo / pesquisar e tentar entender o porquê do suicÃdio.”
O alto Ãndice de suicÃdio na tribo, sempre por enforcamento, atingiu o ápice em 2009, quando foram registradas uma morte a cada dois dias. “Até que uma criança de 8 anos se matou. Aà paramos para discutir”, diz Nestor Verón, pai de Bruno. As explicações não fecham uma lógica. O enforcamento seria um simbolismo. O Ãndio quer se expressar e não pode, então se enforca. Ou estaria passando por uma espécie de choque espiritual com a chegada de grupos religiosos cristãos. Nada é certo. “A alma de um suicida, acreditam eles, não sai pela boca, como deveria, mas pelo ânus. E então é incorporada por outro indivÃduo que também irá se enforcar”, diz o antropólogo Rubem Almeida.
Seja como for, o dilema se tornou combustÃvel para a identidade de algo que já poderia ser chamado de “rap guarani”. Afinal, um Ãndio que se veste como Puff Daddy e diz “e aà mano?” afoga a tradição de seu povo? “A cultura não é estática. Ninguém vive fora do mundo”, diz a professora de antropologia da PontifÃcia Universidade Católica de São Paulo, Lúcia Helena Rangel. O fenômeno pode aguçar pesquisadores, mas o poder público parece longe de abraçá-lo. Ao fim do show do Brô MC”s na inauguração da Vila OlÃmpica IndÃgena, o governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, é o único que não aplaude. “Não gostei, porque isso é música estrangeira. E eu sou nacionalista.”