Em 2000, a comunidade internacional se comprometeu a reduzir pela metade a fome no mundo, no prazo de 15 anos. Mas hoje já é possÃvel afirmar que esse Objetivo do Milênio dificilmente será alcançado.
[DW, 3 nov 11] A fome é cruel. O estado de uma pessoa faminta piora em etapas. Quando, no final, o sistema imunológico entra em colapso, a morte chega de forma lenta, acompanhada de uma dor insuportável. Quase 25 mil pessoas no mundo morrem de fome todos os dias, o equivalente a uma morte a cada três segundos. “Morte por fome é assassinato”, diz o ex-relator especial para o Direito à Alimentação da ONU Jean Ziegler.
Em 2000, na Cúpula do Milênio, os lÃderes de todos os paÃses-membros da ONU decidiram reduzir pela metade, até 2015, a proporção de pessoas afetadas pela fome no mundo. Na época, o número era estimado em 800 milhões. No mesmo perÃodo, o número de pessoas consideradas pobres também deveria cair pela metade.
A observação de que principalmente os pobres passam fome e não raro continuam pobres justamente porque padecem de fome crônica foi incluÃda de última hora no documento final graças à intervenção da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês).
Quatro anos antes do grande balanço final sobre os oito objetivos do milênio, os setores da ONU responsáveis por assuntos econômicos e sociais se mostram cautelosamente otimistas quanto à redução da pobreza. Considerando o ano de referência, 1990, o número de pobres no mundo caiu 40%, conforme recente relatório anual da organização.
Já o total de pessoas que passam fome subiu para 1 bilhão, “o número mais alto desde o final da Segunda Guerra Mundial”, diz Ulrich Post, da Venro, a associação de ONGs da Alemanha. E isso, afirma Michael Windfuhr, do Instituto Alemão dos Direitos Humanos, apesar de há cinco décadas existir um excedente na produção de alimentos.
Agricultura negligenciada nos paÃses pobres
O sucesso estatÃstico do combate à pobreza se deve principalmente à s profundas mudanças socioeconômicas experimentadas pela China nos últimos anos. Já no sul da Ãsia e em grande parte da Ãfrica, os nÃveis de pobreza e fome estão estagnados. “O desenvolvimento rural é negligenciado e esse é um motivo fundamental para que o quadro não mude”, opina Windfuhr.
“Nas regiões atingidas não há serviços de aconselhamento para os agricultores, linhas de crédito ou tÃtulos de propriedade de terra confiáveis, há pouca infraestrutura e nenhuma pesquisa agrária”, completa.
Segundo o especialista, nos anos 1980 a ajuda internacional ao desenvolvimento destinava em torno de 20% dos seus recursos para o desenvolvimento rural. Depois houve uma queda abrupta, para 3% ou 4% em 2005. “Isso vale para todos, inclusive o Banco Mundial”, afirma.
Os próprios paÃses atingidos pela pobreza e pela fome investem pouco no desenvolvimento da produção agrÃcola. “Isso tem muito a ver com o fato de os alimentos serem produzidos pelas mulheres, que em muitos paÃses são discriminadas em dobro”, diz o especialista alemão. “Os grupos mais pobres recebem, de modo geral, menos atenção polÃtica.”
Investimentos no setor agrÃcola são provenientes, já há algum tempo, de fontes privadas. Desde o inÃcio da crise financeira global, pessoas e instituições com aporte econômico procuram novas oportunidades de investimento. Muitos investem em terras, fertilizantes, sementes e fundos agrÃcolas.
Problemas da produção em larga escala
Mas a agricultura industrial e de larga escala associada a esses investimentos é a melhor saÃda para combater a crescente fome de uma população mundial cada vez maior?
Windfuhr se mostra preocupado, afinal a grande maioria da população nos paÃses em desenvolvimento continua vivendo nas zonas rurais. “Se grandes áreas rurais forem negociadas e pequenos agricultores forem expulsos das suas terras, talvez possamos produzir mais, mas também teremos mais fome.” Para ele, investimentos em regiões rurais devem necessariamente melhorar as condições de vida dos pobres e famintos.
Post critica a polÃtica do FMI e do Banco Mundial, que “convenceu muitos paÃses em desenvolvimento a importar alimentos”. Segundo ele, nos últimos 20 anos, créditos internacionais foram destinados principalmente ao incentivo de culturas de exportação, como flores, cacau e café, nos paÃses pobres, enquanto os excedentes agrÃcolas dos Estados Unidos e da União Europeia eram importados por esses paÃses.
A importação de alimentos baratos, que sobraram nos paÃses ricos, cria um perigoso cÃrculo vicioso nos paÃses pobres. Ela destrói os mercados locais. Os pequenos agricultores locais não têm como concorrer com o produto de fora e perdem o estÃmulo para produzir e, assim, sua fonte de renda. A dependência cresce.
Além disso, uma parcela cada vez maior da população nos paÃses do Hemisfério Sul sofre com o aumento dos preços dos alimentos no mercado global. A presidente da Ação Agrária Alemã, Bärbel Dieckmann, calcula que, enquanto uma famÃlia alemã separa, em média, 13% do orçamento doméstico para a compra de alimentos, nos paÃses em desenvolvimento as famÃlias chegam a gastar mais de 70%.
Comércio global e biocombustÃveis
Muitos especialistas afirmam que a agricultura de larga escala não é uma alternativa para o combate à fome. Eles temem problemas ainda maiores: as monoculturas e os adubos quÃmicos destroem a biodiversidade e provocam o esgotamento do solo.
“O solo é o mais negligenciado dos recursos naturais”, opina Joachim von Braun, diretor do Centro para Pesquisa em Desenvolvimento da Universidade de Bonn. As mudanças climáticas pioram a situação. Situações extremas, como secas prolongadas ou grandes cheias, destroem colheitas e a fertilidade do solo.
Outro problema: uma parte crescente da colheita no mundo não é mais destinada à produção de alimentos. Em vez disso, produtos como o milho e a cana-de-açúcar são usados na produção de biocombustÃveis. Os paÃses industrializados incentivam essa estratégia para se tornarem menos dependentes dos combustÃveis fósseis. Mas a produção de biocombustÃveis ocupa grandes áreas de terras agricultáveis no mundo. “Isso deu origem, na verdade, a uma competição entre alimentos e combustÃveis”, opina o biólogo suÃço, Hans Herren, responsável pelo relatório Agriculture at a Crossroads, do Conselho Agrário Mundial.
A atual organização da economia mundial impede que todas as pessoas tenham o suficiente para comer, diz Windfuhr. “O comércio global cria situações absurdas.” Ele cita o caso de rações animais produzidas na América Latina e transportadas para a Europa apenas porque o transporte com combustÃveis fósseis é barato.
Na Alemanha, as rações vão parar em gigantescos estábulos para porcos. “O esterco lÃquido dos porcos polui a água subterrânea e deposita imensas quantidades de nitrogênio no solo”. No final, essa carne é exportada de forma barata para a China ou para a Coreia do Sul. “O resultado é um saldo energético miserável quando o bife finalmente chega ao prato”, critica Windfuhr.
Longe da meta
O primeiro requisito de uma vida digna é ter o que comer. Mas o planeta ainda está longe de alcançar o Objetivo do Milênio que estabelece a redução pela metade da fome no mundo. Segundo os especialistas, principalmente para os paÃses em desenvolvimento os preços dos alimentos vão continuar altos e, assim, inacessÃveis para os mais pobres.
“Com o atual modelo de pensamento industrial não podemos mais resolver o problema”, afirma Herren. Para ele, os governantes, mas também a sociedade civil, estão diante da obrigação de assumir mais responsabilidades para a resolução do problema, tendo em vista as convenções de direitos humanos vigentes. Já Windfuhr propõe um debate social e polÃtico para se chegar a uma produção agrÃcola global capaz de alimentar 9 bilhões de pessoas.
Autora: Ulrike Mast-Kirschning (mp)
Revisão: Alexandre Schossler