Herton Escobar, no Estadão, 9 fev 10
De onde vem a religião? O fato de que todas as sociedades humanas conhecidas acreditam (ou acreditavam) em algum tipo de divindade – seja ela Deus, Alá, Zeus, o Sol, a Montanha ou espÃritos da floresta – intriga os cientistas, que há tempos buscam uma explicação evolutiva para esse fenômeno.
Seria a religião uma caracterÃstica com raiz evolutiva própria, selecionada naturalmente por sua capacidade de promover a moralidade e a cooperação entre indivÃduos não aparentados de uma população? Ou seria ela um subproduto de outras caracterÃsticas evolutivas que favorecem esse comportamento social independentemente de crenças religiosas?
A origem mais provável é a segunda, de acordo com um artigo cientÃfico publicado ontem na revista Trends in Cognitive Sciences. Os autores fazem uma revisão dos estudos já publicados sobre o tema e concluem que nem a cooperação nem a moralidade dependem da religião para existir, apesar de serem influenciadas por ela.
“A cooperação é possÃvel graças a um conjunto de mecanismos mentais que não são especÃficos da religião. Julgamentos morais dependem desses mecanismos e parecem operar independentemente da formação religiosa individual”, escrevem os autores. “A religião é um conjunto de ideias que sobrevive na transmissão cultural porque parasita efetivamente outras estruturas cognitivas evoluÃdas.”
O artigo é assinado por Ilkka Pyysiäinen, da Universidade de Helsinki, na Finlândia, e Marc Hauser, dos Departamentos de Psicologia e Biologia Evolutiva Humana da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
Em entrevista ao Estado, Hauser disse que a religião “fornece apenas regras locais para casos muito especÃficos” de dilemas morais, como posições sobre o aborto ou a eutanásia. Já questões de caráter mais abstrato são definidas com base numa moralidade intuitiva que independe de religião.
Estudos em que pessoas são convidadas a opinar sobre dilemas morais hipotéticos mostram que o padrão de julgamento de religiosos é igual ao de pessoas sem religião ou ateias. Em outras palavras: a capacidade de distinguir entre certo e errado, aceitável e inaceitável, é intuitiva ao ser humano e independe da religião, apesar de ser moldada por ela em questões especÃficas.
“Isso pode sugerir como é equivocado fazer juÃzos sobre a moralidade das pessoas com base em suas religiões”, disse ao Estado o pesquisador Charbel El-Hani, coordenador do Grupo de Pesquisa em História, Filosofia e Ensino de Ciências Biológicas da Universidade Federal da Bahia. “Entre os ateus, assim como entre os religiosos, há a variabilidade usual dos humanos. Há ateus tão altruÃstas quanto Irmã Dulce, assim como há religiosos tão dados à desonestidade e a faltas éticas quanto pessoas não tão religiosas.”
Segundo Hauser, o ser humano não tem uma propensão a ser religioso, mas sim a buscar causas e propósitos para o mundo ao seu redor – o que muitas vezes acaba desembocando em alguma forma de divindade. Nesse caso, a religião seria um produto da evolução cultural, e não da evolução biológica. “O fato de algo ser universal não significa que faça parte da nossa biologia”, diz o pesquisador de Harvard.
Ele e Pyysiäinen sugerem que “a maioria, se não todos, dos ingredientes psicológicos que integram a religião evoluiu originalmente para solucionar problemas mais genéricos de interação social e, subsequentemente, foi cooptada para uso em atividades religiosas.”
Ao estabelecer regras coletivas de conduta, a religião funcionaria como uma ferramenta de incentivo e controle da cooperação – tanto pelo lado da salvação quanto da punição. “Que a religião está envolvida na cooperação não há dúvida. Mas dizer que ela evoluiu para esse propósito é algo completamente diferente”, afirma Hauser.