Número de abortos legais cai 42% entre 2008 e 2009

Por Ullisses Campbell, no Correio Braziliense, 8 fev 10

São Paulo — Um levantamento inédito feito pelo Ministério da Saúde revela que o número de mulheres que procuram o Sistema Único de Saúde (SUS) para fazer aborto com autorização judicial caiu 42% entre os anos de 2008 e 2009.

Na avaliação do próprio governo, o número de abortos legais realizados no Brasil vem reduzindo ano a ano desde 2005 por causa do aumento na distribuição de contraceptivos, como camisinhas, anticoncepcionais e principalmente a pílula do dia seguinte. Só no ano passado, o Ministério da Saúde entregou 152 mil cartelas de contraceptivo de emergência.

Comparando com o ano anterior, o aumento na distribuição gratuita desse medicamento foi de 508%. “A tendência é aumentar ainda mais o acesso das mulheres às pílulas do dia seguinte para evitar gravidez indesejada por causa de acidentes de percursos”, avisa Lena Peres, coordenadora da área técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde.

Para ter acesso à pílula que evita gravidez, Lena diz que a paciente precisa ter em mãos uma receita médica e seguir até o posto de saúde mais próximo. No consultório, os profissionais dão a receita praticamente a todas as mulheres de 15 a 49 anos que desejam evitar a gravidez. “Elas geralmente dizem que não tinham camisinha na hora do sexo e que ficaram com receio de engravidar”, conta o médico Ricardo Porto, do posto de saúde da Vila Mariana, São Paulo.

A advogada brasiliense C.S.R, 28 anos, recorre à pílula do dia seguinte sempre que se esquece de tomar o anticoncepcional ou quando o namorado não está com camisinha. Em todo o ano passado, a jovem tomou três vezes a pílula. Todas compradas em farmácias e sem receita médica. “Não estou pensando em ter filhos agora porque ainda estou me firmando profissionalmente”, justifica.

Para o médico ginecologista Jefferson Drezett, assessor do Comitê Latinoamericano de Anticoncepção de Emergência, a distribuição de pílula do dia seguinte nos postos de saúde vai fazer cair, no futuro, uma estatística negativa. “A cada dois dias, uma mulher morre no Brasil por causa de abortos feitos clandestinamente”, diz.

Recurso

A designer A.A.D, 31 anos, recorreu a um aborto quando tinha 17 anos. O namorado, então com 19 anos, ficou assustado quando ela confirmou a gravidez, que estava em seis semanas. Assustada com a possibilidade de ser mãe muito jovem e apavorada porque o namorado não ia assumir o bebê, decidiu interromper a gestação. O namorado foi à farmácia e comprou Citotec, um abortivo comum. “Tomei e fui deitar. Em seguida, tive uma contração no útero e muita cólica. Fui ao banheiro, sentei-me no vaso sanitário e minha menstruação veio de uma só vez. (…) Não tive coragem de olhar para o feto. Sabia que existia uma criança ali. Quase não consegui dar a descarga”, relata emocionada. A designer carregou culpa por vários anos até engravidar pela segunda vez e ter uma filha.

Membro da Comissão de Cidadania e Reprodução, uma entidade não governamental, a socióloga Thaís Lapa, comemora o fato de os abortos estarem em queda no SUS graças à distribuição das pílulas. Mas ela faz o seguinte alerta: é possível que a diminuição do número de abortos possa estar relacionada à falta de hospitais que ofereçam o procedimento de interrupção de gravidez legal. Atualmente, apenas 60 hospitais estão credenciados pelo governo para a realização de “esvaziamento uterino”, termo usado pelo Ministério da Saúde.

“Acho que esse dado que mostra a queda de abortos deveria ser melhor analisado, até porque aumentou o número de curetagens”, diz Thaís. Estatísticas processadas pelo departamento da Saúde da Mulher apontam que o número de curetagem feita em postos de atendimento público aumentou 37% entre 2008 e 2009. Geralmente esse procedimento ocorre quando a mulher tenta fazer aborto em casa ou em clínicas clandestinas e acaba tendo complicações.

“O Brasil é um estado laico. A Igreja Católica tem o direito de se manifestar, mas o governo tem o dever de amparar as mulheres que não desejam ter filhos”

Lena Peres, coordenadora da área de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde

“O Ministério da Saúde está enganando a população porque a pílula do dia seguinte é um método tão abortivo quanto o Citotec”

Dom Antônio Duarte, médico, bispo auxiliar do Rio e membro da Pastoral da Vida

Igreja discorda das estatísticas

O aumento na distribuição de pílulas do dia seguinte pelo governo federal não é motivo de comemoração entre quem é contra o aborto. A entidade que mais critica é a Igreja Católica. O bispo auxiliar do Rio de Janeiro e membro da Pastoral da Vida e Família da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Antônio Augusto Duarte, é médico. Ele diz que realizou uma pesquisa científica no laboratório que fabrica a pílula distribuída pelo governo e concluiu que ela é tão abortiva quanto o Citotec. “O governo deveria dar todas as informações científicas para não enganar a população, já tão desamparada nos seus direitos à verdade, à segurança e à saúde”, critica o religioso.

Segundo a pesquisa de dom Antônio, a pílula do dia seguinte age impedindo que o esperma chegue até a parede uterina usando os mesmos mecanismos do Citotec numa proporção menor. “O ciclo da vida começa na fecundação. Usar a pílula é um microaborto”, define o religioso. Por outro lado, o bispo ressalta que a Igreja perdoa e ampara as mulheres que se submetem à contracepção de emergência.

Na avaliação de dom Antônio, o Ministério Público vem conseguindo diminuir o número de abortos legais feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas isso não significa que estejam ocorrendo menos interrupções de gravidez no país. “Todo mundo sabe que as mulheres estão fazendo abortos em casa tomando remédios e usando métodos rudimentares.”

Como o SUS só realiza aborto com autorização judicial, dom Antônio argumenta que os juízes podem ter negado mais autorização em 2009 do que no ano anterior, o que faz com que as mulheres recorram a outros meios que não sejam o hospital público.

Segundo uma pesquisa feita pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em 781 processos judiciais de todo o país, 31% das ações que tratam de aborto no Brasil referem-se a interrupções de gravidez causadas por violência contra gestantes. As ações pesquisadas tramitavam pelos Tribunais de Justiça de todos os estados, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 2001 e 2006.

Do total de processos vinculando aborto à violência, 67% eram da Região Sudeste, 20% da Sul, 7% da Centro-Oeste, 4% da Nordeste e 2% da Norte. Segundo o estudo, essa relação está diretamente ligada ao maior acesso ao Judiciário nos estados mais desenvolvidos do país. Quanto à tipificação penal, 63% tratavam de “homicídio e aborto não consentido”. Em segundo lugar destacavam-se casos de “violência sexual de criança ou adolescente até 14 anos e aborto”, com 10%.

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