Vivemos um momento fascinante da história eclesial. Para aqueles que acompanham os comentários nas publicações mais intelectualmente atentas ao redor do mundo, o colapso agora é quase palpável, apesar de acontecimentos como a canonizações em Roma há poucas semanas.
O Vaticano II tem sido visto por muitos como uma oportunidade para a Igreja se renovar e manter sua relevância no mundo moderno. Tom McMahon, como muitos de nós, ficou muito animado com o horizonte que o ConcÃlio entreabriu. Hoje, a iniciativa se perdeu, e a instituição parece estar desmoronando em um museu e em uma reminiscência, largamente irrelevante para as necessidades da grande maioria que ela uma vez batizou em nome de Jesus.
McMahon continua sua exploração do colapso. Hoje, ele chama a atenção para o sistema de seminários, que está no núcleo do poder da instituição desde o ConcÃlio de Trento.
Tom McMahon é ex-padre e agora casado, vive em San Jose, nos EUA, e continua contribuindo com a discussão católica em diversos âmbitos. O artigo foi publicado no sÃtio Catholica, 26-10-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.Em primeiro lugar, peço aos leitores que vejam um artigo que se encontra na edição do dia 16 de outubro da revista The Tablet. É sobre a história e o fechamento atual de um antigo seminário inglês – o último grande seminário que atendia o norte da Inglaterra, Ushaw College, localizado nos arredores de Durham. Que lição podemos aprender com isso? O que está acontecendo? A “bola de demolição” se aproxima de uma instituição envelhecida. Existe um futuro para o sistema de seminários? Tudo é processo! O ConcÃlio Vaticano II foi uma “bola de demolição” para a Igreja medieval? Lembre-se de Stanley Keleman: “Toda vida nova vem da destruição da velha”.
Em segundo lugar, eu incentivo a leitura do belo artigo de Richard Sipe, publicado no site Catholica [“O tempo para as desculpas acabou”, disponÃvel aqui, em inglês] Por favor, não leiam-no superficialmente, como se Richard estivesse divagando sobre a questão da pedofilia. Ele merece um estudo cuidadoso.
Ambos os artigos contêm as chaves para a compreensão da atual crise clerical. No escândalo sacerdotal mundial – notem as bandeiras da Liga das Nações –, o abuso clerical é uma crise internacional, que toca em todas as partes do globo. Há um denominador comum mundial do atual sacerdócio romano: o sistema de seminários do ConcÃlio de Trento controlado pelo Vaticano por 400 anos.
Não é de se admirar que Bento XVI pressione pelo regresso do latim, a lÃngua unificadora internacional da antiga Igreja medieval. Com o latim, todos os clérigos podem se manter à distância, se proteger dos leigos e vestir seus barretes obsoletos colocando a “culpa” no Papa.
Originalmente como cargo polÃtico na Roma antiga, o papado substituiu o imperador da Roma antiga e sobreviveu como a única monarquia de uma cultura medieval moribunda. O sistema de seminários mundial é o seu centro de comunicação atual e futuro. A palavra seminário significa “sementeira”, um lugar onde a polÃtica da corporação é plantada profundamente. Alguém é ordenado quando é claramente um homem da corporação. Aqueles que pensam independentemente não vão passar pela revista.
A contribuição do jesuÃta norte-americano John Courtney Murray (foto) ao ConcÃlio Vaticano II foi o 16º e último documento aprovado pelos 1.800 bispos do Conselho Geral. A Declaração sobre a Liberdade Religiosa é uma estaca no coração das religiões-vampiro dos Papas Borgia e da Inquisição. Somente um membro do moderno Mundo Livre poderia modelar esse reconhecimento ao estilo de Jesus. João Paulo II e seu seguidor, Bento XVI, menosprezaram essa liberdade cristã, particularmente ao silenciar teólogos como Leonardo Boff, Roger Haight e Tissa Balasuriya… Jesus veio para nos libertar.
Há um grande problema no sistema de seminários de hoje, com o influxo dos filhos não nativos do terceiro mundo e daqueles que possuem orientação homossexual. Eles vêm de culturas dominadas pelos homens, com uma total incompreensão acerca da mulheres. Eles são uma contradição silenciosa a um Jesus histórico, muito dispostos a praticar os costumes do meu seminário de antigamente, assim como vendo a si mesmos acima do comum. Alguns se lembram da história que eu contei no Catholica sobre a minha visita ao St. Patrick’s Seminary and University, para uma grande celebração, quanto eu estava de pé na fila do almoço, atrás de quatro estudantes clericalmente vestidos. Eles não tinham nenhuma ideia de quem eu era. Eu simplesmente perguntei: “Por que um jovem gostaria de ser padre?”. Um jovem clérigo virou-se e disse: “É uma posição de prestÃgio” e, depois de se afastar por alguns segundos, falou novamente: “E serve à s pessoas”. Eu balancei a cabeça em assentimento e disse “obrigado”. O traje clerical é muito importante para o seminarista moderno.
Em 1800, o cardeal Paul Cullen (foto) desligou a tomada de um sacerdócio que se sebtua em casa com o povo irlandês. A maioria do clero nativo havia sido treinado na França, fortemente influenciado pela revolução dos povos [A Revolução Francesa (1789-1799) foi um perÃodo de agitação social e polÃtica radical na história francesa e europeia]. Nos dias da Grande Fome da Batata Irlandesa [em 1840, a Irlanda foi acometida por um terrÃvel fungo que atacou as plantações de batata, o que provocou um dos maiores surtos de fome da Europa moderna], Cullen condenou os analfabetos pela sua infidelidade, pregando que Deus havia os amaldiçoado com essa peste. O sistema de seminários Trentan estava convenientemente disponÃvel para separar os futuros clérigos das pessoas comuns. Cullen pretendia tornar o clero irlandês em bons ingleses, senhores poderosos como ele mesmo sobre pessoas simples, controlados por uma burocracia ultramontana chamada Cúria.
Esses poderosos monges internos excluÃram as mulheres, os casados e os não-ordenados desde 1139. A ordenação clerical se tornou a base nuclear para a religião Católica Romana, suplantando o significado e o valor do batismo e do Estado laico. A instituição era a atividade daqueles que continuam usando a mitra – o chapéu dos proprietários de terras do século XII.
Naquele momento, e hoje, apenas um Jesus cerimoniosamente honrado pode participar na sua farsa. A Europa Renascentista está repleto de lutas de poder entre as “nações” recém-nascidas e a corte papal. A luta pelo poder se desintegrou agora em uma atual briga de rua silenciosa: um bispo no Nebraska que estupidamente excomunga escoteiras meninas, e católicos romanos que pertencem a grupos de reforma.
A teóloga do século XXI Rosemary Radford Ruether (foto) sugeriu que o padre aceitável do amanhã virá de dentro das fileiras de uma comunidade cristã já estabelecida. O único sacerdote de sucesso é aquele que é nativo para o seu povo, alguém que os conhece e os compreende. Perdoem-me a utilização do gênero masculino, já que eu posso ver facilmente a liderança feminina se tornando rapidamente o estilo das chamadas religiões protestantes dos Estados Unidos. Espero que as mulheres possam evitar o clericalismo. As pessoas comuns podem ajudar nisso.
O grande Agostinho de Hipona se orgulhava porque, apesar fosse bispo, ele era membro da sua comunidade cristã. Para compreender Jesus, é preciso pertencer a uma comunidade cristã de diálogo. Hoje, esse é o grande desafio para o Povo de Deus. O poder clerical romano irá resistir poderosamente contra pessoas que assumem um lugar no governo do Vaticano. Essa é a questão básica da atual guerra civil dentro do catolicismo.
Como descendente de vÃtimas da Grande Fome da Batata Irlandesa e como sacerdote ordenado no âmbito de um Sistema de Seminários Romanos disfuncional, tenho uma profunda mágoa com relação a Paul Cullen e seus seguidores de batinas escarlates que, em minha opinião, traÃram não só o meu povo ao longo de centenas de anos, mas também a Jesus. Eu gostaria de incentivar os leitores a observar as palavras “consagrado” e “entronizado” na biografia de Cullen, assim como, em sua foto, a proeminência de um anel episcopal e da cruz peitoral como sinais do poder monárquico.
O ConcÃlio de Trento condenou um episcopado mundano, embora sua voz não tenha sido ouvida durante mais de 300 anos até o ConcÃlio Vaticano II. No final dos anos 1960, quando um corpo do estudantes inteligente do Seminário da América do Norte, em Roma, discutiu os documentos do ConcÃlio Vaticano II, houve um êxodo em massa dos seminaristas de elite, por terem percebido duas Igrejas diferentes e a impossÃvel tarefa de servir a dois senhores. Mais de 100 estudantes norte-americanos deixaram o seminário, homens escolhidos a dedo pelos bispos locais para estudar em Roma e se tornarem futuros bispos da América. O futuro do sacerdócio e da hierarquia estavam em perigo.
A Irlanda, na década de 1960, tinha 11 seminários maiores, enquanto hoje tem apenas um. O artigo da The Tablet fala de 26 alunos no seminário inglês de Ushaw que foi agora fechado. Registros do St. Joseph College (foto) na Internet mostram bem mais de 250 alunos (de Ensino Médio e nÃvel Superior júnior) no auge do tempo em que eu estuve no seminário, nos anos 1942 a 1948.
Depois do ConcÃlio Vaticano II, o forte declÃnio do corpo discente acelerou. O terremoto de Loma Prieta de 1989 condenou a “Pequena Cidade de Deus”. Eu assisti durante horas a bola de demolição destruir não só o complexo de prédios, mas junto com eles “os sonhos de infância de muito tempo atrás”. Eu chorava e perguntava por que os prelados da antiga Igreja não podiam prever a mudança como benéfica para o povo. Com o desaparecimento do seminário menor, o arcebispo de San Francisco ainda tinha uma mão cheia de cartas. Ainda havia o St. Patrick – agora chamado de Universidade e Seminário – a apenas 50 milhas de distância das ruÃnas da Pequena Cidade de Deus. Eu vi na destruição a erosão de um sistema educacional do século XVI – um sacerdócio lavado cerebralmente em seu caminho ao esquecimento.
Para mim, a Pop’s Rock (monumento na frente do seminário, na foto) é uma lembrança simbólica da segunda comunidade cristã à qual eu pertenci, da minha famÃlia de infância, da primeira experiência de Jesus e de meus companheiros de seminário – uma famÃlia real. Eu entraria no sacerdócio em 1954, com uma visão de partilhar esse espÃrito de famÃlia cristã com o mundo. Eu sou um garoto da Grande Depressão norte-americana, um idealista que luta com a mentalidade negativa dos bispos romanos.
Eu me lembro muito vividamente, em 1939, de minha mãe ao dizer que havia percebido que o nosso bispo-pastor era um republicano genuÃno. Minha mãe era totalmente pró-Franklin D. Roosevelt. Enquanto eu envelhecia, encontraria a Igreja institucional em oposição aos movimentos sociais, em conflito com os ensinamentos de apoio à s pessoas do Vaticano II.
Existe uma linha comum – um denominador comum que une os sacerdotes do mundo inteiro? Creio que existem três bases comuns que podem ser encontrados em todos os seminaristas e sacerdotes, independentemente de suas nacionalidades (mais uma vez, lembre-se das bandeiras das nações de Sipe).
- Nós éramos crianças de pais comuns, simples, religiosos;
- O sistema de seminários absorveu bons rapazes que queriam servir a Deus e às pessoas;
- A experiência do seminário ofereceu uma mensagem ambÃgua, uma imagem distorcida da Criação e da futura possibilidade de trabalhar com pessoas boas.
Darei mais detalhes sobre isso futuramente. Como homens bons se tornam maus?
Espaço e tempo se esgotam enquanto minha mente se enche de ramificações das memórias da Pequena Cidade de Deus.
Fonte: IHU, 30 out 2010