[Folha SP, 23 mar 11] Boa parte da ansiedade em que se vive hoje vem de uma mudança de comportamento abrangente e silenciosa, que surgiu nas mÃdias sociais e se misturou a outras regras de convÃvio.
Normas de atitude, relacionamento, disponibilidade e transparência que sustentaram o funcionamento social nos últimos séculos foram abaladas de forma tão radical que não é de estranhar o enorme desconforto que o novo ambiente causa. O jogo mudou, não há como manter as velhas regras.
Tudo isso ainda parece conversa de marketing, ainda mais quando se considera a fúria emancipatória das empresas em busca de novos consumidores para produtos não tão novos. Mas a história mostra que as mudanças sociais raramente são feitas por motivos maiores do que um egoÃsmo pragmático. Da libertação de regimes autoritários à s guerras e à escravidão, são raras as transformações causadas por boas intenções visando o bem comum.
Com as mÃdias digitais não é diferente. Quando analisamos suas caracterÃsticas, percebemos que foram, aos poucos, influenciando as práticas cotidianas.
O compartilhamento, por exemplo, surgiu como uma subversão aos abusos da indústria, cresceu como uma forma hipócrita de poupar recursos, estimulou a pirataria e é hoje usado para promover a difusão de conteúdo e empreendedorismo. A cadeia de produtos, serviços e ideias derivadas dele se tornou tão complexa que não pode mais ser enquadrada em classificações simplórias.
Outras mudanças, como a crescente acessibilidade e disponibilidade, são ainda mais agressivas, principalmente se considerarmos que o que pregam nunca foi natural. Plantas têm perÃodos férteis, todos precisam descansar uma parte do dia e nem mesmo as crianças mais mimadas das gerações anteriores acreditariam em um mundo sempre ligado, próximo e prestativo. Hoje, porém, é quase um crime estar indisponÃvel. Todos precisam estar sempre prontos, quaisquer que sejam as condições. As vendas de Viagra que o digam.
O mundo digital aos poucos se funde com aquele que chamávamos de real, criando um hÃbrido que demanda adaptação.
Os novos produtos e serviços transformam seus discursos em diálogos, cada vez mais maleáveis e abertos a intervenções de seus usuários. Sem que se percebesse, criou-se um ambiente de relacionamentos, em que quase nada precisa nascer pronto ou durar para sempre, já que foi feito para evoluir.
Boa parte da explosão de inovação que se vê hoje em dia resulta simplesmente das coisas não precisarem mais ser terminadas. Sua forma incompleta, descartável e transitória é hoje vista como uma “versão beta”, que um dia talvez seja finalizada, embora o mais provável é que morra antes disso.
O mercado se tornou tão estranho, gigantesco, essencial e controverso quanto o fast food, em que as coisas precisam ser baratas, fáceis de usar e rápidas, mesmo que incompletas ou longe de trazer satisfação além da imediata.
Tudo é cada vez mais temporário, previsÃvel, instantâneo, pragmático. Considerando o uso e o acúmulo que se faz das coisas, um mercado assim até poderia ser chamado de racional, se não fosse claramente irracional.