Nossa sociedade, como todas as outras, tem seu próprio critério para identificar, classificar e retribuir as pessoas. Valorizamos etnia (cor da pele), quantidade de diplomas, posses, poder, influência, performance… Somos, individualmente, o resultado aritmético de nossos sucessos e fracassos.
Há os que mesmo recém nascidos já acumulam ativos ou passivos consideráveis. No Brasil de hoje, por exemplo, o perfil dos que nascem com os maiores passivos é: mulher, negra, pobre, filha de um relacionamento instável, ou seja, sem pai conhecido. Estas, se sobreviverem às condições miseráveis de sanidade básica, na adolescência e juventude terão que lutar muito mais que outras meninas de perfil diferente simplesmente para serem reconhecidas como gente, identificadas e, quiçá, amadas.
Nossas mega cidades estão repletas de gente solitária em meio à multidão. Não faltam cinemas, praças, teatros, clubes, salões de festa… Mas quanta angústia em meio a tanta diversão. Há uma pandemia de tédio em meio a um mundo de entretenimento.
Trabalhamos muito, mais do que as gerações anteriores, produzimos mais e melhor, mas nos tornamos reféns de nossas linhas de produção, nossas agendas, plantões, cursos de reciclagem, pós-graduações, reuniões…
Somos miseravelmente pobres, e nem nos percebemos disso. A pobreza ocidental, contemporânea, urbana, com certeza não é material. A água, alimento, roupa e habitação que já temos, ou que já somos capazes de produzir, seriam plenamente suficientes para suprir as multidões em todas as suas necessidades básicas. O problema é que somos pobres em termos ‘humanos’. Nossa escassez é de significado, de amor, de solidariedade, de compaixão.
Em outras palavras, nossa sociedade está corrompida porque nossa humanidade é distorcida, fragmentada, diluÃda.
Mas talvez seja na perspectiva afetiva que nossa sociedade encontra o extremo de sua decadência. Fomos criados, homem e mulher, para desfrutar a sexualidade na perspectiva de um relacionamento estável, Ãntimo, prazeroso, mutuamente enriquecido. É bem verdade que casamento e sexualidade sempre foram temas polêmicos. Através da história, nas diferentes culturas, poucas vezes vimos sua face saudável, madura. Na maior parte das vezes, casamento e sexo foi moeda de troca, uma relação comercial. Estou ciente disso.
O problema da nossa geração é que a riqueza da dimensão afetiva-sexual foi reduzida na pobreza da pornografia. O prazer e a intimidade foram colocados a serviço do mercado, do lucro, das redes de tráfico humano, de exploração de crianças e adolescentes… Apetrechos de borracha e bonecos infláveis prometem ‘satisfação’ sem a necessidade de contato humano. Sites com salas de bate papo são congestionadas por milhares buscando o orgasmo à distância. Sem se conhecer, sem se tocar, sem se compreender, sem se doar, sem ser humano! Máquinas, imagens, interfaces mecânicas, mortas, frias, inertes, como a alma do ser humano pós moderno. Ao final destas experiências, o testemunho unânime do gosto amargo de não-ser. Somos diminuÃdos de nossa condição humana. Nada mais que objetos: manipuláveis, descartáveis, sem alma, sem coração. Morremos! As manchetes diárias de nossos jornais, as revistas, vÃdeos, músicas, todos eles formam um atestado público, colorido, midiático, de nossa morte.
Não consigo pensar em lugar melhor pra resgatar nossa humanidade do que na oração. Creio que podemos ter nossa humanidade restaurada na medida em que formos capazes de orar, ou seja, de retomar e manter o relacionamento vivo com nosso Criador e Pai. O relato do Evangelho nos ajuda. As palavras dirigidas pelo Pai ao seu Filho-humano, Cristo Jesus, recém batizado, assumem dimensões libertadoras, transformadoras, renovadoras, se lidas na perspectiva correta (Lucas 3.21,22). Ali, Jesus, o Santo de Deus, assume publicamente, por associação, sua condição de humano-pecador, identificando-se conosco, fragmentados, diluÃdos, partidos. Nós, os que O rejeitamos, somos aceitos por Ele no Filho, que voluntariamente se identificou conosco.
O Pai, por sua vez, comunica-se com o Filho Jesus na linguagem do coração, a linguagem do afeto: “você é meu filho amado; me alegro em vocêâ€! Na narrativa bÃblica histórica, esta declaração ocorre antes da vitória sobre a tentação no deserto, antes dos milagres, da cruz, dos ensinos. O Filho é amado e aceito por ser filho. Assim somos, se pela fé, nos identificarmos com o Filho.
Nele, em Cristo, nós somos – em Cristo somos gente, não coisa, objeto… Temos vida, mas numa qualidade diferenciada, pois repousa em nós a capacidade de nos comunicar com o Criador, articular em linguagem nossos pensamentos, emoções e vontades. Somos capazes de corresponder ao seu amor. Somos ‘outros’, mas da mesma essência: espÃrito, alma vivente. Cada um, cada ser humano, cada pessoa que vive sobre a terra carrega esta marca: nós somos, existimos, e nossa identidade flui Dele. Somente somos porque Ele é. Nossa existência está conectada a Ele. Aqueles que, pela fé, crêem no Filho, nascem de novo, do Alto, do EspÃrito! São parte de uma nova criação, uma nova humanidade que está sendo gerada aqui, agora, entre nós, neste mundo corrompido!
Nele, em Cristo, somos chamados ‘filhos’ – é uma relação de pertença, de continuidade, de semelhança, de intimidade. O Pai se alegra no Filho; sua vida está conectada à Dele. Nele, em Cristo, somos amados – somos queridos, estimados, valorizados, acolhidos como por nenhuma outra pessoa no universo. Para nos ter, o Pai foi capaz de dar a vida de seu único Filho! Pode existir amor maior? Nele, em Cristo, somos a alegria do Pai! Como pode? Nós, pequenos, enfermos, fragmentados, moÃdos, orgulhosos, egoÃstas, interesseiros…
Se estamos em Cristo, na oração, na devoção e no louvor, falamos a linguagem do coração, do afeto, da comunhão! Â
Antes de sermos igreja, precisamos voltar a ser gente. Para sermos gente temos que antes ser humanos. O pecado destruiu grande parte de nossa humanidade, dignidade, glória. Em Cristo podemos aprender como ser humanos novamente. O resgate da nossa humanidade passa pela restauração da nossa espiritualidade fundamental, o relacionamento com o Pai.
A oração é a linguagem do amor!
Te amo, Senhor!