Os bancos das grandes democracias ocidentais são cúmplices de um crime contra a humanidade

[IHU, 30 mar 11] Os bilhões que são roubados a cada ano dos países mais pobres seguem sempre o mesmo caminho que os leva aos maiores bancos das democracias ocidentais. É um crime contra a humanidade. A reportagem é de Eduardo Febbro e publicado pelo Página/12, 27-03-2011. A tradução é do Cepat.

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Um crime contra a humanidade. Silencioso, sem violência aparente. Uma espantosa máquina de pilhagem dos povos levada a cabo com a cumplicidade do sistema bancário mundial. As fortunas dos ditadores estão dormindo nos bancos ocidentais enquanto dezenas de milhares de pessoas morrem de fome ou não têm condições de pagar o tratamento da Aids.

Jean Claude Duvalier no Haiti, Ali Ben na Tunísia, Hosni Mubarak no Egito, Joseph Mobutu no Zaire (atual República Democrática do Congo), Sanu Abacha na Nigéria, Omar Bongo no Gabão, Manuel Noriega no Panamá, Um-ssa Mu-Traoré em Mali Augusto Pinochet no Chile, Muammar Kadafi na Líbia, Ferdinand Marcos nas Filipinas e N’guesso Sassu no Congo Brazzaville.  As fortunas desses tiranos são depositados em bancos internacionais ou transformadas em investimento fabulosos em propriedades em Londres, Paris, Nova York ou Dubai.

Poucos dias atrás, a UE decidiu congelar os bens do governante líbio, da Autoridade de Investimentos da Líbia – LIA, e do Banco central da Líbia. Ambos os depósitos representam 150 bilhões de dólares. Colossal. A revista de gestão de ativos My Private Banking estima que 33% das fortunas de África e do Oriente Médio no exterior são depositados em bancos suíços, que representam 74 bilhões de dólares. Cada ano, entre 20 e 20 bilhões de dólares saem ilegamente dos países em desenvolvimento. Nos últimos 15 anos, apenas 5 bilhões foram devolvidos. A Suíça gerencia 30% dos ativos offshore do mundo e Londres uma quarta parte.

Os déspotas ou políticos corruptos que levam o dinheiro para o exterior têm um nome específico na linguagem bancária: politically exposed individuals. Isso não os impede, entretanto, de colocarem o seu dinheiro onde bem entendem. E há de todas as cores. Os muito eficazes e discretos –  os “shadow banking” (bancos da sombra) são os responsáveis pela reciclagem do dinheiro manchado de sangue. A imprensa britânica calculou que a fortuna do clã Mubarak chega a de 70 bilhões de dólares. O ditador da Tunísia foi muito mais modesto no saque do seu povo, com uma fortuna de 5 bilhões de dólares, quase a metade do que foi roubado pelo déspota Ferdinand Marcos nas Filipinas, durante o quarto de século em que martirizou o seu país – cerca de 10 bilhões.

Tendo em conta estes três, o ditador haitiano Jean-Claude Duvalier, Baby Doc, parece um pobretão, com 200 milhões de dólares transferidos para a Suíça. E o pobre Augusto Pinochet e seus 20 milhões de dólares roubados se assemelha a um triste mendigo de um bairro rico. Depositou no Riggs Bank of America e, é claro, em paraísos fiscais.

O ex-presidente Omar Bongo do Gabão tem 39 propriedades na França, 70 contas bancárias e nove carros de luxo. Sassu N’guesso tem 18 propriedades e 112 contas bancárias abertas na França. Depois de intermináveis processos judiciais, o tribunal francês aceitou que se abrisse uma investigação sobre os “bens ilícitos.” O sociólogo político suíço Jean Ziegler, atual vice-presidente de Direitos Humanos da ONU estima que dos “905 bilhões do dinheiro estrangeiro depositado na Suíça, 280 bilhões provém de países da Ásia, América Latina e África. Em 90% dos casos, se trata de dinheiro roubado das pessoas mais pobres do planeta”.

Os inescrupulosos Joseph Mobutu do Zaire, Sabu Abacha da Nigéria, Omar Bongo do Gabão e Mussa Traoré do Mali são um exemplo claro da análise de Jean Zigler. Após cinco anos de poder despótico, o nigeriano Abacha roubou 2,2 bilhões de dólares do banco do Estado. O maliense Traore tinha 2,4 bilhões de dólares na Suíça e em Mônaco. A Confederação Suíça identificou 3,4 bilhões de de dólares pertencentes ao ex-presidente Joseph Mobutu do Zaire – 34 anos no poder –, e esse montante é apenas uma fração dos 10 bilhões que roubou.

Um relatório do Banco Mundial calcula conservadoramente os fundos a cada ano roubados pelos ditadores de suas aldeias, entre 20 a 40 bilhões de dólares. A sede desses assassinos de suas próprias sociedades, com a cumplicidade do sistema bancário internacional não tem limites. A impunidade e a conivência do Ocidente são perfeitamente comparáveis aos crimes contra a humanidade quando se sabe que apenas 100 milhões de dólares por ano possibilitaria o tratamento de 600 mil pessoas com Aids. Entretanto, no interior do moralista G-20, países como a Alemanha e o Japão ainda não ratificaram a Convenção da ONU contra a Corrupção, Cnucc – a Convenção de Mérida.

As rotas dessa espoliação são bem conhecidas: Londres, Luxemburgo, Suíça, Bélgica, Mônaco, Ilhas Cayman. O dispositivo Stolen Assetes Recovery – Recuperação de Ativos Roubados – que a ONU e o Banco Mundial usam para combater a corrupção, colide muitas vezes com os argumentos jurídicos. A Stolen Assetes Recovery colaborou com o governo haitiano em processos judiciais com vistas à restituição de 7 milhões de dólares da família do ditador Jean-Claude Duvalier congelados na Suíça. O Estado suíço colaborou, mas, em seguida, o Supremo Tribunal suíço anulou a sentença.

Entretanto, para os atores anti-corrupção, as revoltas em todo o mundo árabe e a subsequente onda de bloqueio e congelamento de contas de fundos irá mudar as coisas. Daniel Lebègue, presidente da Transparência Internacional da França, destacou que “percorreu-se em três semanas mais do que em 15 anos.” Os problemas políticos, financeiros-militares de Muammar Khadafi demonstram o absurdo de como o sistema financeiro internacional, cujo coração está nas grandes democracias do Ocidente, desempenha um papel fundamental na protecção dos fundos dos ditadores.

Até 2003, a Líbia não participava do mercado global de finanças. A partir desse ano Khadafi se reconciliou com o Ocidente e a Líbia deixou de estar sob o peso das sanções internacionais. O ocidente abriu as portas do seu capital, dos seus bancos, de suas empresas e da ONU. Em 2006, o regime de Tripoli copiou o famoso modelo dos fundos soberanos de países do Golfo e criou a LIA – Líbia Investment Authority. Esse fundo, com sede em Trípoli e em Londres, moveu entre 65 e 75 bilhões de dólares. O tesouro americano bloqueou até o momento 32 bilhões de euros.

O LIA investiu o seu capital em grandes empresas italianas (bancos, a Fiat, a Finmeccanica) e empresas de informática na França e na Grã-Bretanha, entre outros países. O fundo de soberano não tem nada. Em vez de beneficiar o povo líbio, a LIA é controlada inteiramente por um dos filhos de Kadafi, Seif al Islam. O bloqueio de contas pessoais Khadafi e dez de seus parentes permitiu imobilizar em Londres 1,5 bilhões de dólares do ditador dólares e de cinco membros de sua família. Mas esse montante não é nada da verdadeira fortuna escondida no exterior, calculado em 14 bilhões de dólares.

O maior obstáculo é como identificar os fundos. Tony Wicks, especialista em lavagem de dinheiro e diretor do Actimize Nice, uma empresa especializada no combate à fraude, destacou que a transcrição dos nomes árabe é um dos grandes truques para evitar a detecção. “Na França, Estados Unidos ou a Grã-Bretanha, o nome de Khadafi pode ser escrito como Qadafi ou Gaddafi. Calculamos que com o nome e o sobrenome completo de Muammar Khadafi se podem fazer 115.000 combinações possíveis”.

A ONG britânica Global Witness levantou duas questões pertinentes que abrange a conduta ocidental frente aos ditadores: Esses dinossauricos assassinos permaneceriam no poder sem a cumplicidade bancária das grandes democracias? Teria sido necessário a intervenção militar na Líbia, se os bancos ocidentais se recusassem a trabalhar com o dinheiro de Khadafi? Sem dúvida, as coisas seriam diferentes. “Ao aceitar esse dinheiro, os bancos permitiram a esses regimes brutais pagar aos seus amigos políticos, fraudar eleições e aterrorizar suas populações”, observa a Global Witness.

Com relação às fortunas fabulosas guardadas no exterior pelo presidente egípcio Hosni Mubarak, o tunisiano Ben Ali, ou mesmo de Khadafi, Anthea Lawson, um ativista da Global Witness Cleptocracia, observa que ” os bancos nunca poderiam ter aceito esse dinheiro e nem os governos poderiam ter permitido”. Mas o dinheiro não tem cheiro. Vem de um bordel, de um pacote de cocaína, dos circuitos sujos do sistema financeiro internacional ou do sangue dos povos oprimidos pelos tiranos do mundo e fica “limpo” no mesmo lugar: os bancos.

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