Consumo de conteúdos adultos cresce entre mulheres. Até as produções em vÃdeo ganham um novo gênero: o pornô feminino
[Paula Reverbel, Veja, 9 jul 11] Um dormitório da casa da famÃlia Balboa, em Recife, mantém sua porta fechada durante toda a noite. Lá dentro, sentada diante de um computador, uma pessoa conecta o fone de ouvido na máquina e atravessa a madrugada com os olhos grudados no monitor, assistindo a quantos vÃdeos aguentar, até ser vencida pelo sono. O restante da noite é gasto na troca de mensagens com contatos em redes sociais ou salas virtuais de bate-papo, à procura de mais filmes do gênero consagrado como “pornô”. É assim que a fotógrafa Tati, de 27 anos, gosta de gastar o tempo livre.
Ela faz parte de um número crescente de mulheres que apreciam pornografia na internet – e investem nisso tempo e dinheiro. Sim, a exemplo de games, computadores e futebol, esse também não é mais um território exclusivamente masculino. “O consumo de conteúdos pornográficos foi tradicionalmente comum entre homens. Porém, aos poucos, temos observado esse comportamento também entre mulheres”, diz Marco Scanavino, responsável pelo Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das ClÃnicas. “A pornografia passou a fazer parte dos recursos válidos para buscar a satisfação sexual – uma busca que hoje é vista como um direito.”
Números do mercado pornô ratificam a observação clÃnica de Marco Scanavino. A Vivid Entertainment, um dos principais estúdios da indústria de conteúdo adulto americana, já constatou a ascensão das mulheres entre seus clientes. Em quase três décadas, a participação do público feminino nas vendas praticamente dobrou: segundo a companhia informou a VEJA, atualmente, as consumidoras respondem por até 40% do faturamento da marca.
A Vivid não está instalada em Hollywood propriamente. Mas fica perto dali, no Vale de São Francisco. Estima-se que, em 2009, o local abrigava cerca de 200 produtoras do gênero, que empregavam 1.500 atores, produziam 11.000 filmes (algumas produções são quase caseiras, rodadas em três dias) e movimentavam cerca de 13 bilhões de dólares, segundo números levantados pelo jornal The New York Times. Se a participação das mulheres nesse bolo for comparável à que elas mantêm na Vivid, significa que elas gastam o equivalente a 5,2 bilhões de dólares com pornografia só no mercado americano.
O crescente interesse feminino forçou até uma mudança nos filmes. Criou-se uma pornografia feminina. “São filmes completamente diferentes dos feitos para homens”, diz a produtora de conteúdo Roberta, de 27 anos, que trabalha em uma agência de publicidade e prefere não revelar seu nome verdadeiro. “Nos pornôs usuais, não existe uma trama que leva ao sexo, e os atores em geral já começam a história despidos. A safra de obras para mulheres aposta mais na história e na sutileza.”
A segmentação já rendeu até uma premiação. A Good For Her – instituição canadense hÃbrida de sexshop e centro de educação sexual – organiza há seis anos o Feminist Porn Awards (Prêmio de Pornô Feminista), que chegou à sexta edição neste ano. Segundo seus organizadores, o prêmio existe porque o público está cheio de pornografia “degradante e clichê”. “Percebemos que não era suficiente criticar filmes adultos por não representar adequadamente a sexualidade da mulher – e, em muitos casos, até a do homem”, afirma a organização em seu site.
Empresas brasileiras também começam a explorar esse segmento. É o caso da produtora Brasileirinhas. “Elas querem beijo na boca, mais enredo e um figurino mais cuidado. É pornô com romantismo”, diz Katia Teixeira, porta-voz da empresa. “Nos filmes para homens, normalmente o sexo é mais pesado e a capa do DVD já contém uma cena explÃcita.”
Do prazer à compulsão – A fotógraga Tati estima que dedica ao menos quatro horas diárias ao consumo de vÃdeos pornográficos na internet. E reconhece que tamanha dedicação acaba roubando horas de outras atividades. “Às vezes, falta tempo para estudar. Eu gostaria de fazer uma pós-graduação, por exemplo”, diz. Este pode ser um sinal de alerta, avisa o psiquiatra Marco Scanavino. Segundo o especialista, o interesse pela pornografia – a exemplo de qualquer outro hábito – pode se tornar uma compulsão, sexual neste caso. “Quando isso acontece, a vida sexual do indivÃduo acaba interferindo em sua vida social, ocupacional, conjugal e assim por diante”, diz.
O psiquiatra ressalta que não é a quantidade de horas dispendidas na apreciação dos vÃdeos que caracteriza a compulsão. “O problema se revela quando a pessoa tem sua rotina afetada de forma negativa: começa a chegar atrasada no trabalho, não conseguem se concentrar, passa a ter prejuÃzos financeiros, por exemplo.”
Apreciadoras do cinema pornô apontam ainda outros efeitos colaterais. Para a blogueira Juliana, de 39 anos, a maior dificuldade foi revelar o prazer a amigas. “Conversei com minhas quatro amigas mais próximas: nenhuma delas se interessa pelo assunto. Não me sinto uma extraterrestre, mas sei que o número de garotas que curtem pornografia ainda é pequeno”, afirma. Problema maior ainda surgiu na hora de explicar o “hobby” a namorados – e ao marido. “Isso é um incômodo em meus relacionamentos.”
A partir dos anos 60, e pelas décadas seguintes, filmes e revistas pornográficas foram alvos centrais do movimento feminista. Eles fariam da mulher um objeto e incentivariam a violência contra ela. Nos anos 90, a crÃtica cultural americana Camille Paglia comprou briga ao romper com esse ponto de vista. “A pornografia não causa o estupro e a violência, que a antecedem em milhares de anos”, dizia ela. “A pornografia é uma arena pagã de beleza e vitalidade. Ela deve quebrar todas as regras, ofender toda moralidade.”
Para as novas consumidoras de pornografia, debates como esse são arcanos. Pertencem a outra época. Desde que feita e consumida por adultos (o que exclui produções criminosas que envolvem, por exemplo, a pedofilia) a pornografia diz respeito à intimidade dessas mulheres, e não ao escaninho das questões polÃticas. No lugar da discussão que marcou o feminismo surgem, no entanto, outras preocupações – a tratar no consultório do psiquiatra, ou no divã do analista.