[Texto de Marcelo Leite, publicado na Folha SP, 21 nov 2010]
Os primeiros contatos sistemáticos de brancos com ianomâmis, em território brasileiro, aconteceram nos anos 1940. Antes disso, só se conheciam as informações coletadas por viajantes como o etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, que travou contato com os ianomâmis em 1911-1913 e escreveu sobre suas guerras com a etnia dos iecuanas, e os relatos esporádicos de seringueiros, castanheiros e piaçabeiros que topavam acidentalmente com aqueles Ãndios nômades, falantes de uma lÃngua desconhecida e temidos por povos vizinhos como poderosos guerreiros e feiticieiros. Militares da Comissão Brasileira de Demarcação de Limites (CBDL) percorrem várias vezes as montanhas que servem como divisor de águas entre as bacias do Orenoco e do Amazonas, entre 1938 e 1945, com a missão de fixar a fronteira entre Brasil e Venezuela.
Foi o inÃcio de uma demanda irreprimÃvel dos Ãndios por objetos de metal, como machados e terçados. E foi também o inÃcio de uma fabulação ambÃgua sobre os ianomâmis, em que se misturam imagens de um povo idilicamente isolado, ainda chamado de “guaharibos”, com as de grupos violentos e vingativos. ImbuÃdo do positivismo benevolente que o futuro marechal Rondon imprimiria ao Serviço de Proteção ao Ãndio, Rubens Nelson Alves relata a expedição de 1942-1943 à região do rio Mucajaà como emissária do mundo civilizado, portadora de paz e amizade para “um grande império silvÃcola”. Dois anos antes no Demini, porém, um acampamento de base da CBDL sofrera um ataque dos ianomâmis, com vários feridos.
Na década seguinte começou um fluxo mais ordenado dos “napë” (brancos) para os platôs e sopés de serras como Imeri, que abriga o pico da Neblina (2.994 m). AtraÃdos pela condição “intocada” dos ianomâmis, missionários católicos e protestantes passaram a instalar-se no local, acompanhados de linguistas e antropólogos para auxiliar no aprendizado das lÃnguas locais. Atendimento de saúde, alfabetização e catequese formavam o tripé da máquina de boas intenções, que tampouco dispensava facões e espelhinhos.
Mas “napë”, para ianomâmis, em geral quer dizer mesmo garimpeiros. É deles a face mais odiosa do contato com a “civilização”, um tsunami de mortes por gripe, sarampo, rubéola e malária, além de massacres. Poderia ter extinguido os ianomâmis a partir da década de 1970, quando pereceram em apenas três anos 13% da população da etnia no Brasil, não fosse a capacidade de adaptação de alguns lÃderes, como Kopenawa e seu sogro, Lourival.
Dois livros recentes recontam essa história. “La Chute du Ciel – Paroles d’un Chaman Yanomami” (A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Ianomâmi, editora Plon, 2010; em português, sairá pela Companhia das Letras em 2011) a apresenta do ponto de vista do xamã Davi Kopenawa, cujas palavras foram coletadas pelo antropólogo Bruce Albert ao longo de 35 anos de convÃvio. Menos envolvido, mas não menos simpático à causa indÃgena, é “Les Yanomami du Brésil – Géographie d’un Territoire Amérindien” (Os Ianomâmis do Brasil, Geografia de um Território AmerÃndio, editora Belin, 2010).
Ambos formam um contraponto atual para a antiga visão que fazia dos ianomâmis um “povo feroz”, dedicado a guerras, vinganças e infanticÃdio, que teve como principal propagador o americano Napoleon Chagnon.”Yanomamö – The Fierce People”, aliás, era o tÃtulo da etnografia que esse controverso antropólogo publicou em 1968. Mais à frente, Chagnon foi acusado de envolver-se em pesquisas de vacinas com os Ãndios, sem o devido consentimento.
Antes de Albert, o antropólogo de escola francesa mais próximo de ianomâmis foi Jacques Lizot, que descreveu em 1976, no livro “Le Cercle des Feux” (“O CÃrculo dos Fogos”, editora Martins Fontes, 1988), os costumes da etnia. Mas Lizot foi depois acusado de pedofilia. Exposições mais detalhadas desse capÃtulo antropológico nada edificante protagonizado por Chagnon e Lizot podem ser encontradas no livro “Trevas no Eldorado”, de Patrick Tierney (Ediouro, 2002) e no documentário “Secrets of the Tribe” (Segredos da Tribo), que José Padilha fez para a BBC em 2009.
MASSACRE Como missionários, antropólogos e outros “napë”, os garimpeiros atraem os Ãndios com presentes. Depois de obter acesso aos veios de interesse, como depósitos de cassiterita (minério de estanho) e ouro na região de Surucucu, o suprimento começa a minguar e pode terminar cortado.
Irados, os ianomâmis acabam por revidar o que tomam por ofensas. Deflagram uma guerra em que serão fatalmente derrotados. Isso ficou evidente com o famoso massacre de Haximu (1993), que acarretou a morte de 16 indÃgenas, na maioria mulheres, crianças e velhos, após o assassinato de um garimpeiro. O drama oculto do extermÃnio ianomâmi, que se desenrolava no recôndito da selva amazônica, ganha repercussão mundial. O relato mais detalhado dos eventos aparece em artigo de Bruce Albert publicado pela Folha em 3 de outubro de 1993. [Leia aqui a reportagem como publicada, parte 1 e parte 2 ]
Como diria Kopenawa, não adiante brigar com “napë”. Eles têm armas de fogo, tratores e o próprio fogo como aliados, na hora de derrubar a mata. Na frente de devastação, em Roraima, Amazonas e Venezuela, os brancos podem encontrar-se em minoria, mas há muito mais deles, nas grandes cidades, do que todos os 33 mil ianomâmis juntos, brasileiros e venezuelanos. Como gafanhotos, nunca faltarão garimpeiros.
Mas Haximu foi também um anticlÃmax para os não Ãndios, que um ano antes do massacre tinham presenciado uma vitória importante dos ianomâmis em BrasÃlia: a homologação dos 96.650 km2 da Terra IndÃgena Yanomami, assinada pelo presidente Fernando Collor pouco antes da Eco-92, no Rio. Um território maior que Portugal, de propriedade da União e reservado para usufruto exclusivo de cerca de 17 mil ianomâmis (os outros 16 mil vivem do lado venezuelano).
Era o objetivo por que lutara nos 15 anos anteriores a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), uma ONG fundada entre outros pela fotógrafa Claudia Andujar, que conseguiu o apoio de personalidades como o senador Severo Gomes (PMDB-SP). À sua sombra cresce também a liderança de um jovem ianomâmi, funcionário da Funai batizado e alfabetizado por missionários: David Kopenawa.
PERIMETRAL NORTE Curioso sobre os costumes do brancos, Kopenawa emprega-se como intérprete dos brancos mobilizados para construir um trecho da rodovia Perimetral Norte (BR-210), a partir de 1973, da cidade de Caracaraà até a Missão Catrimani, já em território ianomâmi, e daà até o posto da Funai Demini. Peça-chave do Plano de Integração Nacional do governo militar, a maior parte da estrada acabou abandonada e tomada pela selva. Com pouco mais de 20 anos, o jovem se torna depois chefe do posto Demini, no km 211 da Perimetral.
Bruce Albert conta em seu livro que Lourival, lÃder de uma comunidade ianomâmi com história problemática de migrações e conflitos com brancos, vê aà a oportunidade de ganhar acesso descomplicado à s mercadorias úteis dos “napë”, sobretudo utensÃlios de metal como machados e facões Aproxima seu povo do posto e acaba por fixá-lo na aldeia Watoriki, em 1993. No processo, casa uma filha com Kopenawa e o inicia nas artes do xamanismo. Consegue, com isso, obter o que lhe interessa dos brancos, por um intermediário alfabetizado e versado nos costumes dos brancos, sem ter de brigar com eles. Depois de Kopenawa, a nova geração ianomâmi amplifica o uso da escolarização como meio de fazer a etnologia dos “napë”, assimilando seus códigos para defender os próprios interesses de modo mais eficaz.
♣
Veja também o álbum de fotos.
Excelente trabalho! Recomendo.