[Valério Cruz Brittos e Jonathan Reis, Observatório de Imprensa, 30 nov 2010]
Atualmente, grande parcela da sociedade não tem condições plenas para analisar obras de arte profundamente, reconhecendo seus referentes e possibilidades de interpretação. Prevalecem olhares sem a sensibilidade e o senso crÃtico necessários para avaliar um trabalho artÃstico em seu todo. Isto é comprovado ante a popularização de músicas com diversos tipos de apelo fácil, impulsionadas midiaticamente, embora cada sujeito tenha o direito de absorver artisticamente o que desejar (ou puder). Contudo, muito se perde neste processo.
Já ensinou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, no livro A distinção: crÃtica social do julgamento (São Paulo: Edusp, 2007), que a competência artÃstica significa apreciar obras de arte legÃtimas de maneira legÃtima. É produto de educação e origem social, numa sociedade de classes. A classe social tem relação com o consumo cultural, pois o gosto, construÃdo a partir de um processo educativo, serve como forma de distinção. O indivÃduo que não viveu tal experiência e deleite no plano familiar pode buscar o saber erudito com o estudo da arte, necessária nesta relação cultural. Nesta dinâmica, a mÃdia poderia contribuir, difundindo conhecimentos e experiência profundas, o que não acontece.
Para haver algum tipo de inclusão cultural, tratando-se de equipamentos como museus, não basta sua disponibilização, como via de regra ocorre, mas também a preparação dos possÃveis apreciadores para análise satisfatória, dotando-os de competência artÃstica. Se relacionar-se com uma obra de arte é, antes de tudo, um ato de interesse, como se deduz do livro O que é arte (15. ed. São Paulo: Brasiliense, 2002), de Jorge Coli, deve haver investimento público na construção desse interesse. Em meio a tanto problemas sociais e econômicos, não se pode querer que haja um interesse natural pelas artes mais eruditas, que exigem maior sensibilidade e pensamento crÃtico.
Irrelevante e desvalorizada
A complexidade da arte muitas vezes acaba por afastar as pessoas. A elegância, beleza e simbologia da arte perdem lugar para trabalhos extremamente comerciais que não geram reflexão e questionamentos. Isso decorre do baixo nÃvel cultural e educacional da população, permanecente apesar da melhoria na distribuição de renda no paÃs. O artista tem capacidade de causar a reflexão, provocando no apreciador interpretação além do óbvio, utilizando diversos conceitos de análise, com a mescla de questões técnicas e sentimentais. Aprender a apreciar a arte é resultado de análise e sensibilidade, envolvendo desde a educação gerada em casa até o estudo formal. Para uma apreciação satisfatória da arte, deve-se aproximar do complexo, com leitura e estudo. É preciso conhecer diversos artistas para diferenciar quem realmente o é. Atualmente, celebridades são consideradas artistas. No entanto, o artista faz arte, é um inteligente propositor de questões e situações, independentemente de fama.
No campo artÃstico, vender não significa necessariamente ser considerado o melhor. Por exemplo, na indústria musical, a banda Calypso pode vender 100 mil discos e Chico Buarque, 10 mil. Tal fato atesta que Calypso tem maior valor midiático; porém, certamente não exige mais sensibilidade e envolvimento em sua relação, comparativamente com Chico, um artista consagrado, de alto valor simbólico. Na literatura, cita-se Paulo Coelho, que, ao escrever seus livros, possivelmente projeta a vendagem, a adaptação de seus trabalhos para outros suportes, e Guimarães Rosa, que não pensava na venda, mas construiu obras de maior valor simbólico, tornando-se um clássico, lembrado até hoje.
Socialmente, a arte não é considerada relevante. Enquanto disciplina escolar tradicional, a arte é encarada como diversão pelos alunos, como algo menos sério que matemática ou português. Profissionalmente, a arte é desvalorizada. Artistas podem ser limitados e generalizados pelo fato da “inspiração” não ter hora para acontecer e o processo de “gestação” ser demorado. A partir de seu nascimento é que a arte pode ser encarada com mais seriedade comercial, dependendo de sua entrada e aceitação no mercado.
Cada cidadão pode ser uma poesia
No jornalismo cultural podem ser incluÃdos atualmente elementos diversos, tudo que é abordado pelas indústrias culturais e passa pelas redes da internet. Tal jornalismo dinamiza, documenta e oferece parâmetros. O crÃtico medeia (deve tentar traduzir, para o entendimento de não iniciados), formula perguntas, propõe respostas e interpreta. Devem-se analisar as questões de mercado para realizar a crÃtica. Se um trabalho ilegÃtimo vende, deve ser discutido. Com a crÃtica, o público abre os olhos para detalhes e analisa os significados, sem limitações, relevando todos os pontos de vista e analisando a arte de forma mais abrangente.
É perfeitamente viável a sobrevivência sem um quadro, uma escultura ou uma música, sendo inviável é sem água e alimentação. Apesar disso, a arte não tem como função primeira a decoração da sala de uma casa. A arte é simbólica e trabalha a sensibilidade. O apreciador analisa-a com um olhar interrogativo, questionando seus diversos ângulos e sentidos, interpretando o que quer dizer. A sensibilidade é necessária para a vida em sociedade com mais qualidade, pois todos os seres humanos deveriam ser vistos como as obras de arte. Deve-se dar atenção e interpretar o que cada um quer dizer, saber que por trás do feio pode existir o belo, que as limitações demarcam a condição humana, que não é analisando apenas um ângulo que se define alguém (se é que isto é possÃvel) e que não se deve associar nome de pessoas como exemplo de ato negativo, pois cada cidadão pode ser uma poesia.