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Genocídio Feminino?

Assassinatos de mulheres na América Central alcança níveis epidêmicos

O termo epidemia é definido pela incidência, em curto período de tempo, de um grande número de casos de uma doença. Na América Central, porém, o que vem apresentando níveis epidêmicos é o número de assassinatos indiscriminados de mulheres por seus parceiros, parentes ou desconhecidos – o feminicídio.

A morte intencional e violenta de mulheres rapidamente avança na região. Em poucos anos, o total de assassinatos de mulheres na América Central duplicou, passando de 1.006 em 2003 para dois mil em 2009. Oitenta por cento destes delitos foram classificados como feminicídios e a maioria das vítimas tinha entre 20 e 29 anos. Frente aos números, diversas organizações ligadas aos direitos das mulheres lançaram um apelo às instituições nacionais para que prontamente se manifestem sobre o assunto.

De acordo com a pesquisa “Não esquecemos, nem aceitamos: Genocídio de mulheres na América Central”, realizada pelo Commca (Conselho de Ministérios da Mulher Centro Americanas), em conjunto com o Cefemina (Centro Feminista de Informação e Ação) e o Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher), Guatemala, Honduras e El Salvador são os países com maior índice de feminicídio “ao registrarem até 18 mortes para cada 100 mil cidadãs”.

Segundo o estudo divulgado na semana passada, entre 2000 e 2007 os casos de genocídio feminino na Guatemala aumentaram 183%, em Honduras, 150% e em El Salvador, 111%. O aumento de crimes contra mulheres foi o dobro dos assassinatos de homens em todos esses países.

Apesar de ter um número menor de feminicídios, a pesquisa trouxe dados muito preocupantes também de outros países da região e Caribe. Na Nicarágua, Costa Rica, Panamá e Republica Dominicana a quantidade de assassinatos duplicou entre 2000 e 2007, assim como a relação vítimas/população feminina, que era de entre duas e quatro mortes para cada 100 mil cidadãs.

“É um crescimento muito preocupante, que deve nos alarmar. O fenômeno do genocídio feminino está alcançando a categoria de epidemia na Guatemala, El Salvador e Honduras. Nos demais países da região surgem sinais de que existem as mesmas condições para que esse nível seja alcançado”, relatou ao Opera Mundi a coordenadora da pesquisa e diretora do Cefemina, Ana Carcedo.

Segundo ela, “outros indicadores que comprovam a gravidade da situação são o crescimento muito mais rápido dos genocídios femininos do que dos homicídios de homens e uma evidente mudança de situação onde se consumam estes genocídios”.

Causas e cenários

A literatura especializada indica que existem três tipos de feminicídio: íntimo, não íntimo e por conexão. Íntimo são assassinatos cometidos por homens com quem a vítima tinha uma relação íntima, familiar ou de convivência próxima. O feminicídio não íntimo acontece quando o crime é cometido por homens com quem a vítima não tinha qualquer relação, frequentemente envolvendo ataque sexual.

Já o feminicídio por conexão envolve mulheres assassinadas “na linha de fogo”, ou seja, quando um homem tenta matar uma mulher e outra é atingida. Este caso se relaciona a parentes, filhas ou outras pessoas que tentaram interferir ou que simplesmente foram envolvidas na ação. “No passado, a maior parte dos feminicídios era do tipo íntimo. Entretanto, hoje, as investigações mostraram o surgimento de contextos sociais e econômicos de desigualdade que facilitam os crimes”, contou Carcedo.

“Estamos falando”, continua ela, “da questão das mulheres, de redes de exploração sexual, a vingança do homem perpetrada nos corpos das mulheres, do crime organizado e das máfias, dos grupos armados que atuam coletivamente para matar mulheres”. Segundo a pesquisadora, as novas situações têm um peso significativo no aumento dos feminicídios.

Entre as principais causas dos genocídios femininos estão fatores sociológicos. Há “um desmanche muito forte das sociedades com base no impulso das políticas de desenvolvimento atuais, baseadas no neoliberalismo”. As políticas de governos da região “transformaram tudo em mercadoria, colocaram preço na vida, destruíram as redes sociais de apoio e transformaram rapidamente as relações entre gêneros, desfavorecendo as mulheres”, explicou.

Carcedo assinalou que há uma transformação das relações de poder na sociedade centro-americana: “Existe uma ofensiva sem precedentes, fundamentalista, que está colocando a mulher como um objeto dispensável. Quando alguém diz que as mulheres têm ganhado muitos direitos e que é preciso acabar com isso, que a vida de uma mulher vale menos do que a de um feto, que é preciso castigá-la, a mensagem é a de que essas vidas não valem nada. Isso contribui para um considerável aumento da misoginia”, avaliou a pesquisadora do Cefemina.

Para Mônica Zalaquett, diretora do Ceprev (Centro de Prevenção da Violência), os confrontos de gênero geraram um forte choque com a mentalidade existente “de crenças, culturas, estereótipos arraigados”, o que gera um paradigma. “Quando um homem perde poder, ele está deixando uma parte da sua própria identidade masculina, que está indissoluvelmente associado ao trabalho e ao papel de provedor. Este papel está se transferindo para as mulheres, que começam a ter mais protagonismo do que antes e isto também a sobrecarrega”, afirmou.

Zalaquett acredita que as mudanças não estão se refletindo dentro de casa. “Temos forçado mudanças nas relações de poder tradicionais, mas no âmbito familiar a mulher continua totalmente desprotegida, presa a uma terra de ninguém onde impera a impunidade e a ditadura familiar. É difícil que a mulher possa defender-se nessa situação. Temos masculinizado as mulheres sem feminilizar os homens”, analisou a especialista. Além da perda de poder do homem, outros importantes detonadores da violência são a crise econômica e o consequente desemprego.

“Atualmente existe um fenômeno de revanche do homem contra a mulher. Se trata de uma verdadeira crise do modelo machista tradicional e aparentemente ninguém se importa”, lamentou Zalaquett.

Histórias reais

A nicaraguense Silvia de Los Angeles Aguirre foi assassinada pelo marido em 2004. Ele a embebedou e, com a esposa desacordada, a cortou várias vezes, mutilando seu corpo (cabeça e perna esquerda). E quando Silvia ainda tinha sinais vitais, o marido fez um corte entre o tórax e o abdômen.

Conforme relatava a história da irmã, Sonia del Carmem disse que ela “era um ser humano e foi massacrada de forma desumana”. Silvia era mãe de duas crianças.

Em 2005, o assassino foi condenado a 30 anos de prisão. Em 2008, obteve uma redução da pena por bom comportamento e no ano passado pediu liberdade condicional. “Mas ainda não sabemos onde está a cabeça e a perna da minha irmã”, relatou Sonia em Manágua, durante a apresentação da pesquisa. “Nós a enterramos aos pedaços. Como puderam me dizer que ele havia mudado porque se converteu ao Evangelho e que por isso queriam lhe dar a liberdade condicional?”, perguntou, indignada.

O pedido foi recusado pela Justiça. “Estou aqui pela memória da minha irmã, para contar sua história e a luta que travamos para que seu assassino fosse condenado, para que episódios como este não voltem a acontecer.”

Cecília Torres Hernandez, ativista da RMCV (Rede de Mulheres contra a Violência), norte da Nicarágua, se tornou outra vítima de feminicídio em 2006. “Cecília era uma mulher humilde, muito firme e com uma grande convicção dos direitos das mulheres, do direito de viverem livres da violência. Segura de sua cidadania. Por isso lutou e deu sua vida”, relatou o Grupo Venancia, organização que luta pelos direitos das mulheres.

”Para Cecília, não bastava trabalhar para ajudar a família. Interessou-se pelos direitos das mulheres e participou de várias redes de apoio. Tornou-se promotora dos direitos humanos, parteira de sua comunidade e agente de saúde”, diz o relatório. Lutou durante anos para que o ex-companheiro da filha Noemi reconhecesse a paternidade da neta e pagasse pensão alimentícia. Levou o caso aos tribunais e, em 2006, obteve sentença favorável.

Em 3 de abril de 2007, Cecília estava em sua casa quando o ex-companheiro da filha passou o braço por cima de seus ombros e disse: “Cecília, vim acertar as contas com você”. O rapaz sacou um punhal da cintura e o cravou no estômago da mulher.

As crianças, que estavam na cozinha, correram para se esconder. A outra filha, Josefina, ao ver a mãe ferida, saiu para pedir ajuda. Jhonny a derrubou no chão e também lhe feriu com o punhal, no abdômen.

Ao ver o que acontecia, Cecília, sangrando, teve forças para pegar uma pedra e jogar contra o homem enfurecido que, apesar de não ter sido atingido, deixou Josefina fugir. Mas Cecília não teve escapatória. Jhonny a alcançou e acertou seis punhaladas, segundo relato do Grupo Venancia.

Fonte: Ópera Mundi, 29 maio 2010