Fonte: O Globo – 24 fev 2010
O Parque Nacional da Serra das Confusões, no PiauÃ, vai anexar 300 mil hectares de terra a partir de março, tornando-se a maior área de preservação de caatinga no Brasil. No total, serão mais de 802 mil hectares de um bioma único no mundo, onde a terra, seca na maior parte do ano, faz surgir plantas de raÃzes fortes e profundas e animais resistentes.
A área a ser incorporada é a da Serra Vermelha, uma grande chapada de 4.900 km quadrados que abriga água que não se vê. Estão nela as nascentes do Rio PiauÃ, onde a água só corre nos perÃodos de chuva, e do Rio Itaueira, onde a calha, sempre seca, forma um corredor de absorção de toda a chuva que cai na região.
Sem que se aviste a olho nu, este rio sem água abastece aquele que é um dos maiores lençóis freáticos do paÃs, o do Vale do Gurgueia, e grandes lagoas piauienses, como a Lagoa do Rio Grande.
– O chapadão funciona como uma enorme esponja. Absorve a água e abastece rios e lagoas da região – explica José Wilmington Paes Landim Ribeiro, agrônomo que dirige o Parque das Confusões desde 1999.
Para se ter uma idéia, o Vale do Gurgueia inclui poços que jorram água a 60 metros de altura. Conhecidos como ‘poços jorrantes’, eles foram abertos na década de 70, quando exploradores perfuraram a região atrás de petróleo e descobriram ali o lÃquido bem mais precioso.
Sem valor imediato para a descoberta, a água jorrou a céu aberto por 30 anos no meio do semiárido, conhecido justamente pela carência dela. Só recentemente foram providenciados registros para conter o desperdÃcio.
Dois municÃpios vão doar terras
Criado em 1998, o Parque Nacional da Serra das Confusões abrange atualmente, com seus 502.411 hectares, terras de sete municÃpios – Jurema, Tamburil do Piaui, Canto do Buriti, Alvorada do Gurgueia, Cristino Castro, Bom Jesus e Guaribas – este último considerado exemplo da pobreza no paÃs, por ter o menor PIB per capita, e, por isso mesmo, escolhido para o lançamento do Programa Fome Zero.
Com a nova área a ser anexada, serão incorporadas partes dos municÃpios de Bom Jesus – o maior doador de terra para a ampliação – e Santa Luz.
A delimitação da área, já negociada entre os governos federal e do PiauÃ, deve ficar pronta até o inÃcio de março, a tempo de aproveitar uma visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao estado para que o decreto seja assinado.
A idéia é que o novo perÃmetro do parque contorne os bolsões comunitários, evitando desapropriações desnecessárias e pendências por ocupações a serem indenizadas.
Em todo o Nordeste, apenas um parque hoje é maior do que o da Serra das Confusões. Trata-se do Parque das Nascentes do Rio ParnaÃba, com sede no Piauà e que abrange parte dos estados da Bahia, Maranhão e Tocantins. São 733 hectares. O bioma, porém, é o cerrado.
Outros parques de caatinga são o da Serra da Capivara (PiauÃ), Catimbau (Pernambuco), Chapada Diamantina (Bahia) e Cavernas Peruaçu (Minas Gerais). Juntos, porém, eles somam cerca de 400 hectares, apenas metade da nova área do Parque Nacional das Confusões
– O paÃs está devendo muito para a proteção da caatinga. É o bioma mais alterado pela ação do homem e nunca se deu muita importância a ele. Achavam que era um bioma pobre, sem muito a desvendar – diz Ribeiro.
Com a importância crescente dos temas ligados ao meio ambiente no planeta, os pesquisadores começaram a perceber que a caatinga, única no mundo, abriga espécies que nenhum outro lugar é capaz de acolher.
Castigada pelo clima, a flora é rica. São cerca de 930 espécies lenhosas, herbáceas, de cactos ou bromélias. Nos perÃodos de seca, as folhas de muitas delas caem justamente para evitar transpiração e perda de água. As raÃzes são profundas e exuberantes, capazes de captar umidade na maior profundidade possÃvel.
A fauna é de bichos fortes. O Carcará, árvore de rapina, é uma delas. Os lagartos que seguem a cor da vegetação para se camuflar durante o inverno e a seca são, pelo menos, de 47 espécies – sete deles sem pés. A mais recente encontrada está sendo descrita por pesquisadores da USP e chama-se Calyptommatus confusionibus. Só de serpentes, são 45 espécies.
Das 18 espécies de aves endêmicas da caatinga, 13 estão presentes do Parque da Serra das Confusões. Há ainda o veado catingueiro, a onça parda, o tamanduá e o tatu-bola, muitos na lista de ameaçados de extinção.
– A caatinga, depois de anos de esquecimento, tem agora prioridade máxima de preservação para que sua biodiversidade seja protegida – diz o diretor do parque.
A pressão da soja
Rodeado pela agricultura familiar e de subsistência, o Parque Nacional da Serra das Confusões vai crescer para não diminuir. Esta é a tese das autoridades e ambientalistas envolvidos no projeto.
A paisagem cinematográfica, repleta de cânions, vales, formações rochosas, grutas e sÃtios arqueológicos sofreu, ao longo do tempo, a ação das carvoarias clandestinas.
A vegetação da caatinga, à primeira vista escassa, sempre abasteceu fornos industriais no Nordeste, onde o carvão ainda hoje é importante matriz energética. O corte, porém, era com machados, feitos por gente que nasceu e sempre morou ali e tem no carvão e na lenha única fonte de renda.
A ameaça, agora, vem da soja. Dono de plantações mais recentes e consideradas das mais produtivas de todo o paÃs, o Piauà corre o risco de ver a expansão da soja passar das áreas de cerrado para as de caatinga por causa da especulação em torno do preço da terra.
As chamadas terras de altitude, não exploradas pela agricultura familiar, para os grandes produtores de soja se tornam uma nova fronteira de ocupação. Com plantio e colheita mecanizados e uso de adubo em larga escala, fazendeiros de outros estados lançam olhos sobre o chão árido que, até agora, parecia ser só dos lagartos.
O preço compensa: a diferença entre o cerrado e a caatinga é de R$ 1.000 para R$ 50 por hectare.
O desmatamento e a interferência no bioma é a principal questão.
– Na medida em que desmata e o solo deixa de absorver, a água vai correr em superfÃcie e a esponja deixa de existir – explica Ribeiro, referindo-se ao chapadão da Serra Vermelha.
Turismo ecológico
No projeto do parque ampliado, a compensação financeira parece mais distante, mas pode incluir mais gente. No lugar de grandes fazendas mecanizadas, com uso restrito de mão-de-obra, o projeto propõe a criação de infraestrutura para o turismo ecológico, atraindo inicialmente os estrangeiros, já interessados na área da Serra da Capivara, diante apenas 80 km da Serra das Confusões na medida portão a portão.
Estruturas para turismo em grutas, trilhas e até museus a céu aberto nas áreas de sÃtios arqueológicos e pinturas rupestres estão em fase licitação.
– A preocupação maior é conter o avanço da soja em direção ao parque. Nossa obrigação é proteger a unidade – afirma Ribeiro.
O bioma
Segundo informações do Ibama, a caatinga corresponde a 6,83% do território nacional e se estende por 10 estados. A caatinga ocupa 100% do Ceará, 95% do Rio Grande do Norte, 92% da ParaÃba, 83% de Pernambuco e 63% do PiauÃ. Na Bahia (54%), Alagoas (48%) e Sergipe (49%) corresponde a cerca de metade do território. Ãreas menores estão em Minas Gerais (2%) e Maranhão (1%).
O termo Caatinga é originário do tupi-guarani e significa mata branca. Na seca, as folhas caem. No perÃodo de chuvas, ficam verdes. Os rios também são intermitentes e ficam secos durante parte do ano.