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O crime de Lady Gaga ~ por Marcia Tiburi

Marcia Tiburi analisa o pós-feminismo pop de Lady Gaga

Lady Gaga é o mais recente ídolo pop da cena internacional. Entenda-se por ídolo pop um indivíduo que encanta as massas com a habilidade artística de que é capaz sendo seu autor ou o mero representante de uma estética inventada por publicitários e estrategistas de produtos culturais. Nesse sentido, todo ídolo pop age como o flautista de Hamelin conduzindo por certo efeito de hipnose uma quantidade sempre impressionante de pessoas. Ele é também um guia estético e moral das massas. A propósito, entenda-se por massa um grupo de indivíduos que, ao se encontrar com outros, perde justamente a individualidade, tornando-se sujeito de sua própria dessubjetivação. Em outras palavras, ele é hipnotizado como se estranhamente desejasse sê-lo. A Indústria Cultural depende desse mecanismo, por meio do qual oferece ao indivíduo a oportunidade de se perder com a sensação de que está ganhando. O ídolo pop é a humana mercadoria que permite o gozo pelo logro que o espectador logrado aplica a si mesmo.

Lady Gaga certamente veio para nos lograr. Mas, como disse Walter Benjamin sobre livros (e também putas), muitas vezes a mercadoria vale muito mais do que o dinheirinho que pagamos por ela.

O paradoxal desejo das massas

Antes de mais nada, é preciso ver que Lady Gaga, a despeito da qualidade boa ou má de si mesma e do que ela produz, vem a nós com números impressionantes. Se na internet seus vídeos são vistos por milhões de pessoas (certamente, quando você ler este artigo, os números serão ainda maiores) é porque ela mesma sabe – ou o diretor e roteirista de seus belos videoclipes nos quais a quantidade aparece, seja na nota de dólar com o rosto de Gaga como no vídeo de “Paparazzi”, seja em “Bad Romance” nos índices na cena dos computadores – que se trata em sua obra da questão da quantidade, mais do que da qualidade. A Indústria Cultural sempre tem na quantidade uma questão mais importante do que a qualidade, mas, se Lady Gaga sabe disso e não o esconde, é porque elevou o cinismo a discurso, mas, ao mesmo tempo, lança-nos uma ironia capaz de fazer pensar.

A questão da quantidade adquire um contorno subjetivo na mentalidade dos indivíduos aniquilados no todo. Assim, uma característica expositiva da condição das massas de nosso tempo é o próprio “desejo de ser massa”. Trata-se da ânsia de adesão ao todo que se disfarça no desejo de saber o que todo mundo sabe, ver o que todo mundo vê. Complicado falar de desejo das massas, quando a “massa” remonta à possibilidade de se deixar moldar pela ação exterior justamente por ausência de desejo. Podemos, no entanto, entendê-lo usando uma imagem gasta como a da ovelha a participar do rebanho. Um modo de ter lugar desaparecendo mimeticamente no todo. Nesse sentido, o desejo de ser massa é o mesmo que nos coloca na situação de fazer parte da audiência fazendo com que liguemos a televisão no programa mais visto, que queiramos ver o filme com a maior bilheteria, que, caso cheguemos a desejar um livro, seja da lista dos mais vendidos. Fazer parte da audiência é a garantia de que em algum momento estaremos juntos, que faremos parte de uma comunidade mesmo que ela seja apenas “espectro”. A angústia da solidão, da separação e da própria individuação desaparece por um passe de mágica da imagem do ídolo pop.

Uma estética pop para o pós-feminismo?

A obra da jovem Lady Gaga não é objeto descartável como a maioria das mercadorias promovidas no contexto da indústria e do mercado cultural. Se nos detivermos em sua música, em sua dança ou em sua imagem isoladamente, não entenderemos o todo da mercadoria. Portanto, é preciso estar atento à performance que ela realiza. A apreciação disto que devemos hoje chamar de obra-produto ou produto-obra deve começar por aí, tendo em vista que, acima de tudo, Lady Gaga é uma performer que agrega em seus vídeos diversas formas artísticas que vão da música ao cinema, passando pela dança e chegando a uma relação curiosa com um aspecto inusitado da produção contemporânea nas artes visuais. Lady Gaga tange em seus vídeos mais famosos questões que estão presentes na obra de artistas contemporâneas que podemos chamar de vanguardistas por falta de expressão melhor, tais como Cindy Sherman, Daniela Edburg e Chantal Michel. No Brasil, Karine Alexandrino, Paola Rettore ou o pernambucano Bruno Vilella praticam a mesma suave ironia até o mais cáustico deboche com trabalhos sobre mulheres mortas.

O tema da mulher morta torna-se quase um lugar-comum na arte contemporânea, como foi no século 19. Naquele tempo, ele representava o impulso próprio do romantismo que via na mulher falecida e inválida um ideal agora retomado de modo irônico por diversas artistas contemporâneas. Lady Gaga vai, no entanto, muito além dessas artistas em termos de coragem feminista. Enquanto elas zombam das mulheres estereotipadas que morrem como Ofélias por um homem, Lady Gaga, de modo mais surpreendente e corajoso do que importantes artistas cultas, dá um passo adiante.

No vídeo de “Paparazzi” fica exposto o amor-ódio que um homem nutre por uma mulher, a invalidez à qual ela é temporariamente condenada por sua violência e, por fim, uma vingança inesperada com o assassinato desse mesmo homem. “Incitação à violência”, pensarão as mentes mais simples; “feminismo como ódio aos homens”, dirá a irreflexão sexista acomodada, quando na verdade se trata de uma irônica inversão no cerne mesmo do jogo simbólico que separa mulheres e homens. Se em “Paparazzi” o deboche beira o perverso autorizado psicanaliticamente (a mulher sai da posição deprimida ou melancólica e aprende a gozar com seu algoz, que ela transforma em vítima), em “Bad Romance”, “o vídeo mais visto de todos os tempos”, mulheres de branco – como noivas dançantes – surgem de dentro de esquifes futuristas para curar uma louca que chora querendo ter um “mau romance” com um homem. Um contraponto é criado no vídeo entre a imagem do rosto da própria Gaga levissimamente maquiado, demarcando o caráter angelical de sua personagem, em contraposição ao caráter doentio da personagem da mesma Gaga de cabelos arrepiados e olhos esbugalhados. Entre eles a bailarina sensual junto de suas companheiras faz o elogio do corpo que é obrigado a se erotizar diante de um grupo de homens.

A noiva é queimada. Sobre a cama, no fim, a noiva como um robô um pouco avariado, mas ainda viva, contempla o noivo cadáver. A ironia é o elogio do amor-paixão, do amor-doença e morte ao qual foi reduzido o amor romântico pela estética pop da ninfa pós-feminista. O feminismo só tem a agradecer.

Em “Telephone”, a estética eleita é a da lésbica e da pin-up. Ambas criminosas. A primeira por ser uma forma de vida feminina que dispensa os homens, a segunda por ameaçá-los com uma estética da captura (a mulher-imagem-de-papel, a mulher “cromo”, a mulher-desenho-animado que configura o conceito do “broto”, do “pitéu”). No mesmo vídeo o personagem de Gaga compartilha com Beyoncé uma cumplicidade incomum entre mulheres.

Esse sinal é dado no meio do vídeo, quando Beyoncé vai resgatar Gaga na prisão e ambas mordem um pedaço de pão, que logo é lançado fora como algo desprezível. A comida mostra-se aí como o objeto do crime. O vídeo é mais que um elogio ao assassinato do mau romance, ou da vingança contra o evidente amor bandido de quem a personagem de Beyoncé quer se vingar. Trata-se de uma profanação da comida pelo veneno que nela é depositado. O amor bandido é morto pela comida, uma arma simbólica muito poderosa associada à imagem da mulher-mãe, da mulher-doação, dedicada a alimentar seu homem na antipolítica ordem doméstica.

O palco é a lanchonete de beira de estrada como em Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. O assassinato é o objetivo do serviço das duas moças perversas que, no fim do vídeo, dançam vestidas com as cores da bandeira norte-americana – meio Mulher Maravilha – diante dos cadáveres de suas vítimas, já que, além do amor bandido, todos morreram. Cinismo? Sem dúvida, mas como paradoxal autodenúncia.

Mas o maior crime de Gaga, aquilo que fará com que tantos a odeiem, não será, no entanto, o feminismo sem-vergonha que ela pratica como uma brincadeira em que o crime é justamente o que compensa? E, como ídolo pop, não poderá soar aos mais conservadores como um modo de rebelar as massas de mulheres subjugadas pela perversa autorização ao gozo, doa a quem doer?

Texto de Marcia Tiburi ~ Revista Cult, 8 mai 2010