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Não pode haver democracia sem laicismo ~ George Corm

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Georges Corm, historiador e jurista libanês, analisa a situação atual do mundo árabe.

Depois das esperanças levantadas pela Primavera Árabe em 2011 e a chegada ao poder no Egito e na Tunísia de movimentos que se declaram islâmicos, você é otimista quanto ao futuro dos países árabes?

O movimento de 2011 foi extraordinário: de Omã à Mauritânia, a consciência coletiva árabe despertou, mas as esperanças são de longo prazo. Os ciclos revolucionários do mundo árabe são longos, principalmente por conta de interferências externas. Para romper com esse movimento, se criaram pontos de fixação na Líbia e na Síria. Ambas as intervenções foram conduzidas para a catástrofe e provocaram a guerra civil quando armaram os manifestantes pacíficos. A indignação quanto a um ditador é seletiva e segue os interesses geopolíticos ocidentais junto de seus aliados locais. Acabar com um sistema ditatorial e predador para substituí-lo pelo que? Todo o Oriente Médio está sendo consumido por suas classes dirigentes e seus aliados dentro do mundo corporativo. São economias rentistas, totalmente improdutivas que geram desemprego e uma grande concentração de riqueza. Apenas a própria população pode resolver seus problemas com seus regimes políticos e econômicos e, assim, reconstruí-los.

Qual é a sua visão sobre a situação da Síria?

É uma batalha muito perigosa que ultrapassa, e muito, os desafios internos dos sírios, que pode desencadear uma guerra mundial. Enquanto existirem quase 100 mil combatentes não sírios e o financiamento estrangeiro da oposição continuar atrelado aos interesses de Turquia, França, Arábia Saudita e Qatar, não iremos a lugar algum. Estão destruindo o país de forma sistemática. Amanhã chegarão novos predadores para saquear a Síria com o pretexto de reconstrução, como ocorreu no Líbano, Iraque e Bósnia.

Em sua opinião, quais são os interesses estratégicos que atuam na região?

Agora se trata do reequilíbrio do sistema internacional e do final do unilateralismo estadunidense. A região é um caos total. Na costa sudeste do Mediterrâneo, EUA e Israel colocaram a região de joelhos com a invasão do Iraque em 2003 e depois com o ataque israelense ao Líbano em 2006. A Síria suportou cerca de um milhão e meio de refugiados iraquianos sem pedir ajuda, os tunisianos viram-se obrigados a acolher milhares de refugiados da Líbia. No Líbano, existem entre 800 mil a um milhão de refugiados sírios, ou seja, 25% da população. Nessa situação explosiva, a Europa – assim como os EUA – não desempenha nenhum papel de apaziguamento, mas exatamente o contrário.

Qual é o papel do Golfo Pérsico na região?

O aumento dos preços do petróleo desde 1973 constituiu um terremoto social no Oriente Médio de uma amplitude sem precedentes na época moderna. As elites urbanas árabes que desencadearam um “renascimento” no século 19 e adaptaram os princípios da lei islâmica às necessidades do mundo moderno, progressivamente cederam o poder cultural, religioso e midiático às famílias reinantes do Golfo, as quais dispõem de meios econômicos e financeiros desproporcionais frente aos demais regimes políticos do mundo árabe, fragilizados por suas derrotas para Israel e por fracassos no desenvolvimento. O “despertar islâmico” veio substituir o “renascimento árabe” – com seu séquito de pregadores influenciados pelo rigor teológico extremista do wahabismo. A religião muçulmana se converteu em uma arma política temível com sua aliança aos EUA na luta contra o comunismo. Abandonou-se a questão da Palestina em benefício de lutas que não são as nossas, no Afeganistão, na Bósnia, na Chechênia e no Cáucaso. Esses movimentos trazem em si, a legitimação de um autoritarismo terrível, que pretende controlar a vida dos crentes até em seus mínimos detalhes e combater os “infiéis”, muçulmanos ou não.

Contra essas “ideologias autoritárias”, você prega o retorno à liberdade de pensamento…

O grande erro de muitos intelectuais árabes tem sido deixar a questão religiosa à Irmandade Muçulmana e ao wahabismo, os quais, com seus meios, se apoderaram das mentes das pessoas. As conquistas da civilização islâmica, que instituiu uma liberdade de pensamento notável para a época, são esquecidas completamente. Falam-se apenas de Sayyid Qotb, Maududi e Ibn Taymiyyah! Agora vemos o resultado de 40 anos de uma política muito ativa, que remete à Guerra Fria, onde ocorreu uma “reislamização” das sociedades para lutar contra o comunismo. Atualmente você não é um muçulmano “representativo” se for um muçulmano moderado. No mundo árabe, sempre existiu um vivo debate sobre a maneira de interpretar o texto corânico, mas que não interessa aos setores acadêmicos e midiáticos.

Você advoga pelo laicismo, não é utópico defender um modelo impopular no mundo árabe?

Com o que ocorre no Egito, na Tunísia e na Síria, a opinião pública árabe, incluindo a parte crente, começa a compreender qual é a utilidade do laicismo. Na região do Mashreq, onde reina uma forte diversidade religiosa dentro do próprio islã, o laicismo é a única solução. Outra coisa é que não pode haver democracia sem o laicismo. Se tudo está polarizado no que concerne a referência religiosa nas instituições ou a identidade social e cultural, é porque não temos um pensamento econômico alternativo que havia deixado essa questão em segundo plano. Temos que rechaçar a análise que exclui as identidades: o problema é a desestruturação de nossas sociedades e a negação do pluralismo em uma região do mundo que é plural desde a mais longínqua antiguidade.

Qual papel desempenharia o Magreb, e Marrocos em particular, nesse contexto?

No Magreb, a Argélia tem sofrido enormemente com a onda islâmica. A Líbia está atualmente presa em uma anarquia que beneficia os elementos que se declaram militantes islamitas e a Tunísia se torna, a cada dia, mais perigosa. O Marrocos com sua monarquia de legitimidade religiosa, ao se declarar partidário de um islamismo moderado – que é o autêntico islã – poderia desempenhar um papel catalisador de um liberalismo árabe e islâmico moderno, como o que existiu nos anos 1950. É também o que tenciona fazer a Universidade de Al Azhar, no Egito. É o momento de trabalhar para restabelecer no mundo árabe a saúde mental que perdemos um pouco a cada dia e voltar a ter uma concepção de mundo aberta, tolerante e pluralista, onde, em outra época, construiu a grandeza da civilização árabe-islâmica e mais recentemente, o magnífico renascimento árabe.

[Kenza Sefrioui, do Telquel | Tradução: Vinicius Gomes, publicado na Revista Fórum, 16 dez 2013]

 ** Georges Corm, nascido em 1940 em Alexandria, assistiu em sua juventude a chegada ao poder de Nasser e a nacionalização do Canal de Suez. Possui um doutorado em Direito Público sobre as sociedades multiétnicas. Foi professor de Ciências Políticas pela Universidade Saint-Joseph de Beirute e ministro das finanças do Líbano de 1998 a 2000. Em suas numerosas obras, tanto em árabe quanto em francês, como “Le prche-Orient éclaté” e “Pour une lectura profane des conflicts”, advoga por um mundo árabe mais unido e mais independente, criticando duramente o apoio dos EUA e Europa aos Estados teocráticos como Arábia Saudita e Israel.

A injustiça mata a democracia. ~ Zygmunt Bauman

Portinari-Os MiseráveisNo seu novo livro, La ricchezza di pochi avvantaggia tutti. Falso! [A riqueza de poucos beneficia a todos. Falso!] (Ed. Laterza, 112 páginas), Zygmunt Bauman trata do tema da riqueza que não gera bem-estar. “A corrida ao lucro individual não é uma vantagem para todos: as disparidades crescem”. Um trecho do livro foi publicado no jornal La Repubblica, 25 fev 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto. [Publicado no IHU, 27 fev 2013] Eis o texto.

Um estudo recente do Instituto Mundial de Pesquisas da Economia do Desenvolvimento (World Institute for Development Economics Research), da Universidade das Nações Unidas, relata que, em 2000, o 1% dos adultos mais ricos possuía sozinho 40% dos recursos globais, e que os 10% mais ricos detinham 85% da riqueza mundial total. A metade inferior da população adulta no mundo possuía 1% da riqueza global.

Mas esse é apenas o retrato de um processo em curso… Notícias cada vez mais negativas e cada vez piores para a igualdade dos seres humanos e, portanto, também para a qualidade da vida de todos nós se sucedem dia após dia.

“As desigualdades planetárias atuais fariam corar de vergonha os inventores do projeto moderno, Bacon, Descartes e Hegel”: é a consideração com a qual Michel Rocard, Dominique Bourg e Floran Augagner concluem o artigo Le genre humain menacé, publicado com a assinatura de todos os três no Le Monde do dia 2 de abril de 2011.

Na época das Luzes, em nenhum lugar da terra o nível de vida era mais do que duas vezes superior ao da região mais pobre. Hoje, o país mais rico, o Qatar, se orgulha de ter uma renda per capita de nada menos do que 428 vezes mais alta do que a do país mais pobre, o Zimbábue. E estas, não nos esqueçamos, são comparações entre médias, que depois se encaixam na historinha da galinha de Trilussa…

A obstinada persistência da pobreza em um planeta que luta com o fundamentalismo do crescimento econômico já é o suficiente para induzir as pessoas pensantes a se deterem por um momento e a refletirem sobre as vítimas diretas e indiretas de tal distribuição desigual da riqueza. O abismo cada vez mais profundo que separa os pobres e os que não têm perspectiva dos ricos otimistas, confiantes e barulhentos – um abismo de tal profundidade que já está acima das capacidades de escalada de qualquer um, exceto os alpinistas mais musculosos e menos escrupulosos – é um razão evidente para se estar gravemente preocupado.

Como os autores do artigo recém-mencionado advertem, a principal vítima da desigualdade que se aprofunda será a democracia, já que os meios de sobrevivência e de vida digna, cada vez mais escassos, procurados e inacessíveis, se tornam objeto de uma rivalidade brutal e talvez de guerra entre os privilegiados e os necessitados deixados sem ajuda.

Uma das fundamentais justificações morais adotadas em favor da economia de livre mercado, isto é, que a busca do lucro individual também fornece o melhor mecanismo para a busca do bem comum, se encontra enfraquecida. Nas duas décadas que precederam a ascensão da última crise financeira, na grande maioria dos países da OCDE, a renda interna real para os 10% das pessoas no topo da pirâmide social aumentou com uma velocidade 10% superior à dos mais pobres. Em alguns países, a renda real da camada inferior da pirâmide, na realidade, diminuiu.

As disparidades de renda, portanto, se ampliaram notavelmente. “Nos Estados Unidos, a renda média dos 10% no topo é atualmente 14 vezes a dos 10% de baixo”, vê-se forçado a admitir Jeremy Warner, editor-chefe do The Daily Telegraph, um dos jornais mais entusiasmados em exaltar a “mão invisível” dos mercados que seria capaz, aos olhos tanto dos redatores quanto dos leitores, de resolver todos os problemas por eles criados (e talvez alguns a mais).

Warner acrescenta: “A crescente desigualdade da renda, embora obviamente indesejável do ponto de vista social, não tem necessariamente grande relevância se todos se tornarem mais ricos, ao mesmo tempo. Mas se a maior parte das vantagens do progresso econômico vão para um número relativamente restrito de pessoas que já ganham uma renda elevada – que é o que está acontecendo na realidade de hoje – isso começa evidentemente a se tornar um problema”.

A admissão, cauta e morna no seu teor, mas cheia de compreensão mesmo que semiverdadeira no seu conteúdo, chega ao pico de uma maré crescente de descobertas dos pesquisadores e de estatísticas oficiais que documentam a distância rapidamente crescente entre aqueles que estão em cima e aqueles que estão embaixo na escala social.

Em flagrante contradição com as declarações dos políticos, que pretendem ser recicladas como crença popular não mais sujeita à reflexão, nem controlada, nem posta em discussão, a riqueza acumulada no topo da sociedade falhou clamorosamente em “filtrar para baixo”, de modo a tornar todos nós um pouco mais ricos ou a nos fazer sentir mais seguros, mais otimistas acerca do nosso futuro e do dos nossos filhos, ou mais felizes…

Na história humana, a desigualdade, com toda a sua tendência por demais evidente de se autorreproduzir de forma cada vez mais extensa e acelerada, certamente não é uma novidade. No entanto, quem trouxe recentemente a eterna questão da desigualdade, das suas causas e das suas consequências novamente para o centro da atenção pública, tornando-a assunto de intensos debates, foram fenômenos totalmente novos, espetaculares, chocantes e iluminadores.

Mais democracia, menos mercado ~ Jürgen Habermas

Hoje, a Europa tem que acertar as contas não tanto com povos ilusoriamente homogêneos, mas sim com Estados-nação concretos, com uma pluralidade de línguas e de esferas públicas.

[La Repubblica/IHU, 15 mar 12] No processo de integração europeia, dois planos devem ser diferenciados. A integração dos Estados enfrenta o problema de como repartir competências entre a União Europeia, de um lado, e os outros Estados membros, de outro. Essa integração, portanto, diz respeito à ampliação de poderes das instituições europeias.

Ao contrário, a integração dos cidadãos diz respeito à qualidade democrática desse crescente poder, ou seja, a medida em que os cidadãos podem participar na decisão dos problemas da Europa. Pela primeira vez desde a instituição do Parlamento europeu, o chamado fiscal compact que está sendo aprovado nestas semanas (para uma parte da União) serve para fazer crescer a integração estatal sem um correspondente crescimento da integração cívica dos cidadãos. (…) Continue lendo

Cindindo a cruz ~ Hélio Schwartsman

O povo de Deus ficou bravo comigo por causa da coluna “Cristo despejado”, publicada na edição impressa da Folha no último domingo, na qual defendi a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de mandar tirar os crucifixos das dependências da Justiça gaúcha.

Tecnicamente, era um texto pró-religião. Eu tentava mostrar que o Estado laico, isto é, que se mantém numa posição de total neutralidade em relação a todos os credos, interessa muito mais a religiosos do que a ateus e agnósticos.

Para os que não cremos em Deus ou que julgam sua existência uma questão indecidível, o crucifixo não passa de dois pedaços de pau entrelaçados, uma manifestação supersticiosa, no máximo. Já para alguém que de fato abraça uma fé, pode ser bastante incômodo ver o Estado chancelando o símbolo de um credo que não o seu.

Judeus e muçulmanos, por exemplo, têm boas razões históricas para interpretar a cruz como um emblema de opressão e morte. Há mesmo algumas denominações protestantes que, levando a sério o segundo mandamento, consideram o crucifixo um caso de imperdoável idolatria. Continue lendo

Relatório da ONU sobre violência sexual em áreas de conflito lista piores criminosos

[ONU BR, 24 fev 12] O relatório anual das Nações Unidas sobre violência sexual em áreas de conflito nomeia, pela primeira vez, as forças militares, milícias e grupos armados suspeitos entre os piores criminosos.

O documento, que abrange o período de dezembro de 2010 a novembro de 2011, inclui o Exército de Resistência do Senhor (LRA) na República Centro-Africana e no Sudão do Sul, milícias e ex-militares na Costa do Marfim, além das Forças Armadas da República Democrática do Congo. Continue lendo

A utopia coletiva da carnavalização midiática da humanidade ~ Por Luís Eustáquio Soares

[Observatório da Imprensa, 27 de z 11] No livro O inconsciente político (1992), o crítico literário americano Frederic Jameson propôs uma metodologia interpretativa baseada numa dupla perspectiva, ao mesmo tempo opositiva e complementar: uma primeira inscrita na tradição analítica marxista, cujo pressuposto se inscreve na necessidade de uma prática crítica negativa ou da negatividade, sob o ponto de vista de que, num mundo de opressores e oprimidos, para citar o filósofo alemão Walter Benjamin, todo monumento de e à cultura é também um monumento de e à barbárie, porque, querendo ou não, foi produzido a partir do sofrimento, do desespero, do esquecimento, humilhação, abandono e mortes de milhares ou milhões de outros seres humanos; uma segunda perspectiva analítica que parte de um princípio oposto ao primeiro, porque compreende que, pela simples existência, todo e qualquer artefato cultural inscreve nele mesmo uma vontade utópica, por mínima que seja, de outro mundo.

O método interpretativo proposto por Jameson, portanto, está implicado com o jogo analítico entre negar, em retrospectiva; e afirmar, em perspectiva: negar o que coopta ou compartilha com o abandono dos desterrados da terra, desde antes até a atualidade; e destacar, por outro lado, as chispas utópicas que se inscrevem nos artefatos culturais, como afirmação de coletivas vidas futuras. Continue lendo

Zizek: o casamento entre democracia e capitalismo acabou

O filósofo e escritor esloveno Slavoj Zizek visitou a acampamento do movimento Ocupar Wall Street, no parque Zuccotti, em Nova York e falou aos manifestantes.

“Estamos testemunhando como o sistema está se autodestruindo. “Quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou”.

[O pronunciamendo de Zizek foi publicado por Carta Maior e IHU, 11 out 11].

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Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma.

Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.

Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.

Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street: “hey, olhem para baixo!” Continue lendo

As profecias equivocadas sobre o islamismo ~ Gilles Kepel

[IHU, 9 mar 11] “O extremismo islâmico, do qual Bin Laden era o emblema, não conseguiu arrastar as massas do mundo muçulmano. A Al Qaeda se reduziu a uma seita sem fecundidade política.”

A análise é de Gilles Kepel, estudioso do extremismo islâmico e professor de ciências políticas em Paris, em artigo para o jornal La Repubblica, 05-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto.

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Lembro-me de um café da manhã no Clube dos Professores de Harvard com Samuel Huntington, alguns anos depois da publicação do seu famoso artigo, depois do seu livro, sobre o Choque de Civilizações. Gostaria de saber por que, para elaborar o seu argumento, ele havia usado, dentre outros, o meu livro A Revanche de Deus (Ed. Siciliano, 1999). Nessas páginas, eu explicava como, nos anos 70, se desenvolveram os movimentos políticos religiosos dentro do cristianismo, do judaísmo e do Islã.

Quis traçar paralelos transreligiosos entre esses fenômenos; demonstrar como, embora de modo diverso, cada um dos três nasceu em reação à crise da modernidade e do mundo industrial, ao enfraquecimento das solidariedades sindicais e operárias depois do desaparecimento do trabalho na fábrica, do aumento do desemprego e assim por diante. Continue lendo

Irmandade Muçulmana não consegue eleger representantes para o Parlamento egípcio

Protestos de partidários da Irmandade Muçulmana no Cairo: derrota nas urnas

[BBC Brasil, 1 dez 2010]

A Comissão Eleitoral do Egito divulgou nesta quarta-feira os resultados oficiais das eleições legislativas do país, confirmando que o principal grupo de oposição, a Irmandade Muçulmana, não conseguiu sequer uma só cadeira no Parlamento. O governista Partido Nacional Democrático (PND), do presidente Hosni Mubarak, obteve 95% dos assentos no primeiro turno da votação. A oposição, que vinha acusando o governo de fraudar a votação, manifestou revolta com o resultado.

A Irmandade Muçulmana, que no último Parlamento detinha um quinto das cadeiras, foi banida no Egito, mas muitos de seus integrantes concorreram como independentes.

De acordo com os resultados divulgados, o PND conquistou 217 dos 508 assentos no primeiro turno. No total, os partidos do bloco opositor elegeram somente cinco candidatos. O partido liberal Wafd obteve dois assentos, enquanto que o esquerdista Tagammu, o partido Justiça Social e o liberal Ghad conquistaram um assento cada.

Outros seis candidatos independentes conquistaram cadeiras. O restante das 280 será disputado em um segundo turno, marcado para o próximo domingo. Continue lendo

Democracia indiana reflete cada vez mais a diversidade do país, dizem analistas

Business Concept - Diversity

A maior democracia do mundo passou por um período de evolução e reflete cada vez mais as diversidades da população do país – uma das maiores do planeta. De acordo com analistas, as eleições legislativas indianas viram, nas últimas duas décadas, o fortalecimento dos chamados partidos regionais – que representam demandas de uma determinada região, casta social ou grupo cultural e religioso.

Nas eleições do ano passado para o Parlamento indiano, a vitória contundente da coalizão governista liderada pelo Partido do Congresso – que dominou a política indiana nos anos 1950 a 1970 – levou alguns analistas a decretarem o fim deste processo.

Uma segunda avaliação, entretanto, mostrou as nuances do resultado do pleito: os indianos deram seu aval ao partido dominante nao só devido à prosperidade econômica que o país atravessava, mas também pela capacidade do partido de se regionalizar, segundo especialistas.

“É uma mudança no rosto do Legislativo indiano”, diz Sanjay Kumar, vice-diretor do Programa Lokniti sobre Democracia Comparativa, do Centro para o Estudo das Sociedades em Desenvolvimento (CSDS) em Nova Déli.

“Hoje temos muito mais representantes de mais comunidades de castas no Legislativo nacional do que costumava haver nos anos 1960 e 1970”.

Alguns analistas afirmam, entretanto, que a diversidade é também o grande paradoxo da democracia indiana. Ao mesmo tempo em que um Congresso “regionalizado” representa uma gama maior de interesses, também torna mais difíceis a formação de coalizões que facilitem o funcionamento do governo.

Regionalização

A Índia possui uma imprensa variada e livre, o direito à liberdade de opinião é amplamente respeitado e mesmo em regiões que registram níveis mais altos de violência, como a Cachemira, na fronteira com o Paquistão, as eleições vêm sendo consideradas livres e justas. Desde que se tornou uma república parlamentarista independente do império britânico, em 1947, a Índia só passou por apenas 21 meses de exceção democrática, nos anos 1970.

No nível federal, o Partido do Congresso, que teve em seus quadros políticos como Indira Gandhi e Jawaharlal Nehru, foi historicamente a força dominante. Nos anos 1980, surgiu o partido de oposição Bharatiya Janata Party (BJP), que se tornou a força polarizadora da política indiana, e que governa o país entre 1998 e 2004.

Nas últimas eleições, diversos partidos regionais fincaram o pé no Congresso indiano.

“Combinados, os partidos regionais receberam nas três últimas eleições nacionais cerca de um terço dos votos, enquanto nos anos 70 ou 80 esse percentual era 8-10%”, diz o professor Kumar.

Combinados, os partidos regionais receberam nas três últimas eleições nacionais cerca de um terço dos votos, enquanto nos anos 70 ou 80 esse percentual era 8-10%

Sanjay Kumar, analista político

“Não há plataforma comum entre esses partidos, porque cada um está próximo dos interesses regionais de grupos que foram deixados de lado e à margem da política indiana historicamente. Eles representam uma aspiração para as elites emergentes locais, uma oportunidade de obter poder político”.

Entretanto, a regionalização indiana suscita também cautela entre os analistas políticos. Em entrevista à BBC Brasil concedida pouco antes das eleições do ano passado, o historiador Ramachandra Guha observou:

“Esse fenômeno, por um lado, é um aprofundamento da democracia indiana”, disse o historiador. “Mas no nível nacional é irracional porque, com 25 partidos diferentes formando um governo, fica impossível ter qualquer política coerente de longo prazo em termos de infra-estrutura, educação e saúde.”

O centro de estudos Loktini, de Kumar, publicou no jornal The Hindu uma série de análises políticas a partir dos resultados das eleições do ano passado. Os pesquisadores avaliaram que, embora o partido dominante tenha levado mais cadeiras no Parlamento, sua votação não foi maior que em eleições anteriores.

Além disso, uma pesquisa de opinião do instituto revelou que mais de 70% dos entrevistados consideravam mais importante ser fiel aos interesses regionais e só depois aos nacionais.

Para os pesquisadores, existe uma “saturação” da política feita com viés regional – mas isto “não significa o fim do poder das castas na política”.

“Talvez o futuro seja uma política ‘para além da identidade’, que combine uma fundação básica a partir das castas e das comunidades com certos interesses nacionais básicos.”

Desafios

Para que os representantes políticos reflitam melhor a opinião de seus cidadãos, porém, a democracia indiana precisa vencer certos desafios, dizem analistas.

Um deles é o que se convencionou chamar de “criminalização da política indiana”, a crescente presença de candidatos com antecedentes criminais autorizados a disputar eleições regionais e nacionais.

Segundo um relatório da Associação para as Reformas Democráticas (ADR, na sigla em inglês), que monitora os resultados eleitorais, cerca de um terço dos parlamentares eleitos para a Lok Sabha no ano passado é alvo de acusações criminais, sendo que metade deles responde por acusações criminais graves.

“A outra grande preocupação é que existe uma grande mudança na representação política em termos de perfil social. Mas em termos de perfil econômica, houve pouca mudança”, afirma o professor.

“Mesmo entre as pessoas que vieram de castas marginalizadas para ocupar cargos públicos, foram os mais ricos que ganharam proeminência. Então, em termos de classe, a política permanece nas mãos, senão dos mais ricos, pelo menos das classes médias altas”, avalia.

Fonte: BBC Brasil, 5 maio 2010

Para especialista, ‘melhor democracia não significa melhor sociedade’

Especialista em estudos sobre o tema, o cientista político Marc Plattner afirma em entrevista que “a melhor democracia não significa necessariamente a melhor sociedade”.

“A democracia é uma forma de governo, o que significa que as pessoas têm o poder de tomar as decisões. Mas isso não quer dizer que sejam as melhores decisões”, afirma Plattner, cofundador da revista acadêmica Journal of Democracy.

Editor de diversos livros sobre o tema, especializado em democracias emergentes, como a Índia e os países latino-americanos, Plattner ainda assim defende o modelo liberal de democracia porque, mais que o governo da maioria, representa a proteção dos direitos e liberdades dos indivíduos que compõem a sociedade.

“Os últimos 25 anos do século passado foram muitos bons para o avanço da democracia”, afirma. “Hoje estamos em um período de estagnação em termos de progresso democrático, mas não percebemos uma reversão completa da democracia ou autocracia.”

A entrevista é parte da minissérie de sete reportagens sobre democracia que a BBC Brasil propõe neste ano de eleições. Através de entrevistas com especialistas, a série avaliará o estágio democrático de seis casos simbólicos: Brasil, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Índia, Rússia e Irã.

A seguir, leia trechos da conversa da BBC Brasil, na qual Plattner diz não acreditar em um “modelo russo ou iraniano” de democracia e avalia que o Brasil já deixou de ser “emergente” neste aspecto.

Qual sua definição de democracia?

No dicionário, democracia significa o governo do povo. No sentido atual, porém, significa democracia liberal, que não é apenas o governo da maioria, mas a proteção dos direitos e liberdades dos indivíduos que compõem a sociedade. Esses dois aspectos têm de estar presente.

Existe algum modelo de democracia que se aproxime do ideal no mundo de hoje?

A melhor democracia não significa necessariamente a melhor sociedade. A democracia é uma forma de governo, o que significa que as pessoas têm o poder de tomar as decisões. Mas isso não quer dizer que sejam as melhores decisões. Quando se discute esse tema, os países nórdicos – Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia – tendem a sair na frente, porque eles têm menos corrupção e relativamente menos desigualdades econômicas que outros países. Mas não sei se isso quer dizer que sejam mais democráticos que outros, e sim que suas sociedades têm mais virtudes que outras.

O escritor americano Fareed Zakaria sugeriu que o processo de democratização mundial gerou democracias de fachadas, ou “iliberais”. O senhor acha que essa é uma tendência?

O diagnóstico de Zakaria é correto. Antes de 1975, a democracia se restringia aos países ricos e avançados do Ocidente, que também tinham uma longa história de liberalismo. Nos anos 1970 ocorre a chamada “terceira onde da democratização”. Dezenas e dezenas de países que não tinham histórico de liberalismo, tradição de Estado de Direito e não eram economias avançadas começam a ter eleições e escolher seus próprios líderes. Não surpreende, portanto, que muitos fossem iliberais no início. A questão é como você desenvolve a democracia liberal. Para mim, o caminho passa por trabalhar junto com essas democracias iliberais, tentando fortalecer o Estado de Direito, a proteção dos direitos dos indivíduos, etc.

Zakaria chegou a sugeriu que, em vez de incentivar o nascimento de “democracias iliberais”, era melhor criar as “autocracias liberais”. Qual sua opinião?

Discordo de Zakaria. Se você analisar o mundo hoje, não existem autocracias liberais, no sentido de que os países que são autocráticos tampouco tendem a ser liberais e você não pode contar que seu direito seja respeitado nesses países.

É possível falar de um modelo de democracia iraniano ou russo, ou nesses países simplesmente não há democracia?

Esses países não são democracias e certamente não democracias liberais. Você pode jogar com as palavras e falar de “democracia gerenciada” ou “democracia soberana”, como o governo Putin tem feito. Da mesma forma, na era soviética, falava-se de “democracia popular”. Você pode usar e abusar da palavra sem chegar à verdade. A maioria dos estudiosos sobre a democracia concorda que nem o Irã nem a Rússia são democracias.

Então o senhor não acredita que haja fatores culturais, por exemplo? Podemos apontar para a história autoritária da Rússia, que explicaria o formato do sistema político do país.

Sim, há fatores históricos que dificultam a democratização dos países. Mas eles se tornam democráticos. Lembre-se que há alguns séculos não havia democracias e todos os países democráticos tiveram de superar obstáculos na sua história e tradição que eram avessos à democracia. Talvez isto seja mais difícil para umas culturas que para outras, mas nunca vi nenhuma que seja irremediavelmente incompatível com a democracia.

O senhor então é um otimista em relação ao processo de democratização do mundo? Ou a democracia liberal sempre será um ideal?

Sou otimista. Os últimos 25 anos do século passado foram muitos bons para o avanço da democracia, especialmente entre 1985 e 1995. Depois as coisas começaram a desacelerar um pouco e, nos últimos três ou quatro anos, segundo a organização Freedom House (que monitora a democracia no mundo), é possível ver uma ligeira erosão na democracia liberal, ou das liberdades, como eles chamam. Hoje creio que estamos em um período de estagnação em termos de progresso democrático, mas não percebemos uma reversão completa da democracia ou autocracia. Creio que nos próximos cinco ou dez anos não haverá grande mudança em qualquer direção. Mas em geral sou otimista em relação à democracia.

Em que estágio democrático o senhor avalia que o Brasil está? Ainda somos uma “democracia emergente”?

A palavra que os cientistas políticos usam para países que já fizeram a transição para a democracia é “consolidação”, o que reflete a ideia de que esse país ainda passará um período sob o risco de regredir e de que leva tempo para a democracia fincar suas raízes e as pessoas se acostumarem a ela. E em algum momento há uma conclusão de que um país se tornou uma democracia, se consolidou. Não conheço muito o caso brasileiro, mas estou inclinado a pensar que o Brasil não é mais emergente, mas sim perto de se consolidar. Minha única preocupação não é com a política doméstica do Brasil e sim com a postura do Brasil em relação à democracia em outros lugares, que não acho que tem sido construtiva.

O senhor se refere (à demonstração de apoio do Brasil) ao Irã?

Sim. Fiquei chocado com o que o presidente Lula disse em relação aos protestos iranianos e as eleições iranianas. Porque no Irã as pessoas estão lutando pela democracia, da mesma forma que fizeram os brasileiros 25 anos antes, entre eles o presidente.

Fonte: BBC Brasil, 7 maio 2010