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Arquivos do filósofo Walter Benjamin são apresentados em Paris pela primeira vez

O filósofo Walter Benjamin (1892-1940), um dos nomes mais importantes da história da filosofia na primeira metade do século XX, deixou um tesouro de pensamentos e imagens salvos graças a seus amigos, e que estão sendo apresentados, a partir de hoje, e pela primeira vez, no Museu de Arte e História do Judaísmo de Paris, 71 anos depois de sua morte na fronteira franco-espanhola.

[AFP, 24 out 11] Os arquivos deste pensador berlinense, autor, entre outros livros, de A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), existem graças à correspondência com os amigos, entre eles os filósofos Theodor Adorno, Hanna Arendt e Gershom Scholem; o dramaturgo Bertolt Brecht e o escritor Herman Hesse.

Partia de um pensamento que incorporava a influência romântica a um certo messianismo de origem judaica. Nos anos 1920, passou somar a estes fatores o Materialismo Histórico, aproximando-se, então, da chamada Escola de Frankfurt.

A influência de Nietzsche também é claramente perceptível. Sua projeção literária começou com a tese de doutorado: A Crítica de Arte no Romantismo Alemão (1919), seguindo-se, mais tarde As Teses sobre o Conceito de História (1940) – escritas no mesmo ano de seu suicídio, para escapar aos captores fascistas. Postumamente, em 1982, foram publicados os textos reunidos na coletânea Passagens, relativa ao período situado entre os anos 1927 e 1940. Continue lendo

Deus ainda não morreu ~ por William Lane Craig

Em pleno século 21, filósofos encontram novos argumentos para defender a existência do Todo-poderoso.

Nos últimos tempos, o mercado literário tem sido inundado por títulos defendendo o ateísmo. Boa parte deles viraram best-sellers – caso de Deus, um delírio, de Richard Dawkins, o mais ruidoso lançamento recente nesta linha. Pode-se supor, à primeira vista, que seja impossível aos pensadores modernos defender intelectualmente a existência de Deus. Todavia, um exame rápido nos livros do próprio Dawkins, bem como de autores como Sam Harris e Christopher Hitchens, entre outros, revela que o chamado novo ateísmo não possui base intelectual e deixa de lado a revolução ocorrida na filosofia anglo-americana. Tais obras refletem mais a pseudociência de uma geração anterior do que retratam o cenário intelectual contemporâneo.

O ápice cultural dessa geração aconteceu em 8 de abril de 1966. Naquela ocasião, o principal artigo da revista Time, um dos maiores semanários da imprensa americana, foi apresentado numa capa completamente preta, com três palavras destacadas em vermelho: “Deus está morto?”. A história contava a suposta “morte” de Deus, movimento corrente na teologia naquela época. Porém, usando as palavras de Mark Twain, a notícia do “falecimento” do Senhor foi prematura. Ao mesmo tempo em que teólogos escreviam o obituário divino, uma nova geração de filósofos redescobria a vitalidade de Deus.

Para entender melhor a questão, é preciso fazer uma pequena digressão. Nas décadas de 1940 e 50, muitos filósofos acreditavam que falar sobre Deus era inútil – aliás, verdadeira tolice –, já que não há como provar a existência dele pelos cinco sentidos humanos. Essa tendência à verificação acabou se desfazendo, em parte porque os filósofos descobriram simplesmente que não havia como verificar a verificação! Esse foi o evento filosófico mais importante do século 20. O fim do império da verificação libertou os filósofos para voltarem a tratar de problemas tradicionais que haviam sido deixados de lado. Continue lendo

Ancestralidade ~ Luis Felipe Pondé

UM HOMEM deve reconhecer seus ancestrais. Existem várias formas de ancestralidade. Nossos autores prediletos são nossos patriarcas.

O primeiro texto que me marcou foi a Bíblia. Abraão e sua solidão diante de um Deus que armou sua tenda no deserto me deram um senso estético que nunca perdi. Seus profetas, num combate contínuo contra a estupidez do povo, fizeram de mim um cético com relação às virtudes populares.

Na medicina, Freud foi um encontro definitivo: o homem é um barco à deriva num mar de pulsões autodestrutivas. Vive como pode num mundo onde sua felicidade não parece fazer parte dos planos do Criador.

O Deus do ateu Freud é arrasador. Um judeu ateu é sempre um drama maior do que qualquer ateu, porque se assemelha à agonia de um vulcão.

Já na filosofia, o viés trágico se impôs com a descoberta de Nietzsche e sua filosofia do martelo, cujo desprezo mortal pela covardia e pelo ressentimento se tornou em mim uma segunda natureza. Sua política, uma espécie de anarquismo aristocrático, é sempre perigosa para os amantes dos rebanhos.

O ceticismo dos gregos, de Montaigne e de David Hume abalou para sempre minha capacidade de fé na razão, não em Deus, como pensa a vã filosofia.
Nunca acreditei muito no ser humano: considero o otimismo, principalmente hoje em dia, um desvio de caráter. Santo Agostinho e Pascal, cristãos pessimistas, me ensinaram que o cristianismo é uma história do homem combatendo ingloriamente (e cotidianamente) sua natureza afogada no mais sofisticado orgulho e na mais profunda inveja (de Deus). Quando me perguntam qualquer coisa sobre o ser humano, antes de tudo, penso como um medieval: os sete pecados capitais estão quase sempre certos. Somos pó que fecha os olhos diante do vento.

Dostoiévski é sempre essencial. Para mim, uma de suas descobertas capitais é que, ao contrário do que diz nossa miserável ciência da autoestima, apenas quando encaramos o mal (a “sombra” de uma espécie abandonada ao próprio azar) em nós é que recuperamos a vontade de viver. Só esmagando o orgulho com a humildade de quem se sabe insignificante é que vale a pena apostar no dia a dia.

Entre Nietzsche e Dostoiévski, aprendi que o niilismo, “esse incômodo convidado para o jantar”, veio pra ficar e é apenas diante dele que vale a pena exercer a filosofia.

E o judeu Rosenzweig? Definitivo para quem pressente que a metafísica nada mais é do que pensamento mágico a serviço do medo da morte. E que não é a esperança mágica que deve nos guiar, mas a percepção de si mesmo como milagre em meio ao pó que em nós estremece. Rosenzweig pensa como o homem bíblico.

Quando “decidi” que a academia era pequena sem a mídia, os “jornalistas filósofos” passaram a marcar meu horizonte profissional. Otto Maria Carpeaux descreveu a imagem máxima da relação entre espírito e corpo: quando o primeiro se levanta, o segundo se põe de joelhos.

Nelson Rodrigues, que estava certo em tudo que falava, escrevendo uma obra entre Santo Agostinho, Dostoiévski e Freud, iluminou um fato consumado: se o mineiro for solidário apenas no câncer, então tudo é permitido.
Paulo Francis, uma eterna falta entre nós, percebeu que o medo e a mentira pautariam a vida intelectual futura e que o “bem político” seria a nova face da estupidez do pensamento público.

E finalmente a praga da “fé política”. Contra essa, Edmund Burke e Tocqueville são bálsamos essenciais. Tocqueville, principal referência para entendermos a democracia, nos alertou para a natural vocação que esta tem para uma nova forma de tirania, a tirania da maioria. Antes de tudo, a democracia fez os “idiotas” (expressão rodriguiana) descobrirem que são maioria.
Burke nos lembrou, contra os que “amam a moda”, que a sociedade é uma comunidade moral de almas, que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. Para Burke, é apenas neste arco de ancestralidade que o homem se faz homem, contra a banalidade do presente que nos assola.

Enfim, quem conhece sua ancestralidade, mesmo quando caminhando no vale das sombras, nunca está só.

Folha SP, 18 out 2010

Corrupção: a inimiga da república

De Renato Janine Ribeiro, filósofo, publicado na  Folha, 12 dez 08

Qual a sua idéia de corrupção? É quase certo que você fale em desvio, por um administrador desonesto, do dinheiro público. É a idéia que se firmou hoje em dia. Mas, antes disso, a corrupção era termo mais abrangente, designando a degradação dos costumes em geral.

Como a corrupção veio a se confinar no furto do bem comum? Talvez seja porque, numa sociedade capitalista, o bem e o mal, a legalidade e o crime acabam referidos à propriedade. Por analogia com a propriedade privada, o bem comum é entendido como propriedade coletiva – e até como bem condominial, aquele do qual cada um tem uma parcela, uma cota, uma ação.

Mas o bem comum é diferente, por natureza, do bem privado. No estatuto de uma sociedade comercial, é obrigatório incluir o destino a dar aos bens, caso ela se dissolva. Se constituo uma firma com um sócio, caso a fechemos repartiremos os bens que pertencem a ela. Mas isso é impossível quando se trata da coisa pública. Há certos “bens” que só ela produz e que não podem ser divididos: virtudes, direitos e uma socialização que não só respeita o outro como enriquece, humanamente, a nós mesmos.

Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão simplifica demais as coisas. É sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. O corrupto não furta apenas: ao desviar dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior bem público. A indignação hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício enorme: reduzindo tudo a roubo (do “nosso dinheiro”), a mídia ignora – e faz ignorar – o que é a confiança, o que é o elo social, o que é a vida republicana.

UM TEMA REPUBLICANO

Pode haver corrupção em outros regimes, mas sem esse nome ou sem os perigos que traz para a república. Lembremos a tipologia de Montesquieu: há três regimes, monarquia, república e despotismo. O despotismo é um fantasma; reside no Oriente; é a grande ameaça à política, porque nele tudo é comandado pelo desejo. Os súditos do déspota desejam muito, porque, com os nervos excitados, são sensíveis a toda impressão externa. Daí que sejam lúbricos, luxuriosos, imediatistas.

O império da lei é impossível sob o calor. Não havendo autodisciplina, só pela irrestrita repressão externa se dá o controle social. Para conter o desejo sexual das mulheres, é preciso trancá-las num harém e castrar os homens que as vigiam. No calor, governar é reprimir.

O curioso é que nesse regime — mais uma caricatura que um retrato fiel dos sultanatos orientais — não há o tema da corrupção. Como se corromperia um regime cuja essência já é a degradação (a corrupção) do ser humano? Mesmo que os ministros saqueiem os cofres, não existe, no despotismo, uma regra da honestidade, uma medida do equilíbrio, um padrão da decência. Sem regra, medida ou grau, não há como falar em desregramento, em desmedida, em degradação. A corrupção só cabe quando o regime social e político valoriza o homem. Não é o caso do despotismo.

Será o da monarquia? Nela, o princípio é a honra, e portanto uma valorização está presente. O nobre preza mais a honra que a própria vida. É isso o que limita o arbítrio do soberano. Mas há dois pontos a assinalar. Primeiro, poucos têm honra – só os grandes. Segundo, a monarquia é uma hábil construção para que de um princípio filosoficamente falso – a desigualdade natural entre os homens – decorram resultados socialmente positivos. A engenharia política aqui faz que o mal produza o bem.

O preconceito é valorizado na monarquia. Dele resulta uma sociedade que, se respeita a lei, não é pela repressão externa, nem pela autodisciplina ou pela convicção de que é justo acatá-la. Em suma, na monarquia há um uso sábio daquilo que, em linguagem republicana, seria corrupção: ela dá bons frutos. Há privilégios, há desigualdade, há apropriação privada do que seria o bem público. Mas isso é da essência do regime, e é usado por ele para evitar males piores, que estariam no arbítrio do rei, tornado déspota. E por isso não é correto falar, aqui, em corrupção.

Corrupção só pode haver, como nome, num regime que a vê como negativa, como má – num regime cuja existência é diretamente ameaçada por ela. É a república. Seus padrões são altos. Nela, o bem pessoal é requisito para produzir o bem social. Individualmente, tenho de agir bem. Só quem atinge esse nível de conduta é cidadão, na república. Ou, inversamente, apenas dos cidadãos se pede esse patamar de comportamento. Não se exige isso das mulheres, escravos, estrangeiros e de todos os que terão uma cidadania reduzida ou negada. Em outras palavras, a república é o regime da ética na política.

A CORRUPÇÃO ANTIGA

Há dois tipos de corrupção, na república, conforme ela seja antiga ou moderna. Na república romana, falava-se em corrupção dos costumes. O cidadão romano é o pater famílias. O nome “pai de família” não quer dizer que ele tenha filhos: seu significado é político e não biológico. Ele é o chefe da família, o varão que nela manda. Se um menino perder o pai e o avô, pode ser pater ainda bebê. Será “pai” de sua mãe, avó, tios e irmãos.

O pater manda na casa. Costuma-se dizer que a lei romana lhe conferia direito a punir e até matar as mulheres a ele subordinadas, mesmo a mãe, a esposa, as irmãs. Não é bem isso. É pior. Nenhuma lei lhe dá esse direito, simplesmente porque o membro da cidade é ele, e não as pessoas suas subordinadas. Elas não são cidadãs, mal têm identidade pública. Punir quem pertence a sua “família” é direito privado do pater, e não público.

O eixo do controle que o pater exerce sobre os seus passa pela moral. Um homem que não controle as mulheres que dele dependem é infame e será punido pelos magistrados que cuidam da moral. Essa moral não é apenas sexual (a vitoriana será exagerada e centralmente sexual), mas em parte o é. Discrição, autocontrole, contenção são alguns de seus termos principais.

É talvez em Roma que se elabora, ou se aprimora, um traço fundamental das sociedades mediterrânicas, que ainda perdura em alguma medida: a idéia de que a mulher não tem honra própria, mas porta a honra – ou desonra – do homem seu senhor. Violar ou desrespeitar uma mulher se torna assim a melhor via para infamar seu marido, irmão ou pai. Quem perde a honra não é ela, são eles. Daí que, ao se vingarem, eles às vezes matam também a mulher que – mesmo se foi violentada – serviu de veículo para eles serem desonrados.

Portanto, na república antiga, o centro da corrupção são os costumes. É preciso as pessoas serem decentes, para que haja república. Nisso se inclui a contenção sexual, mas sobretudo a capacidade de fazer passar o bem comum à frente do pessoal. Evoquemos Múcio Cévola, que – estando Roma cercada – vai ao acampamento dos inimigos matar o general deles. Erra e é preso. Vão executá-lo. Mas ele queima o próprio braço numa chama, sem um gemido sequer de dor, dizendo que assim o castiga pelo fracasso de seu intento. Horrorizados, apavorados diante de gente tão resoluta, os inimigos debandam.

Não há prova dessa história, que talvez não passe de lenda, mas o importante é que ela educou gerações de romanos na convicção de que o fim público passa à frente de qualquer elemento particular. Como escravos, mulheres e estrangeiros não sentem assim, é óbvio que não terão a dignidade de cidadão.

Contrastemos a coragem de Múcio Cévola com a dos exércitos orientais, descritos por Montesquieu nas Cartas Persas (lembrando sempre que ele exagera em suas referências ao mundo islâmico). Os soldados do sultão se batem até a morte, mas – diz ele, na carta 89 – sua valentia não é a de quem preza a si próprio, e sim a de quem se despreza. É medo (ao sultão) tornado coragem (diante do inimigo). Não é o caso do romano. A cidade é o que o realiza. É o que dá sentido à sua vida.

Daí, finalmente, que na república antiga a educação seja fundamental. Ninguém age – naturalmente – como Múcio. Pela natureza estamos mais perto da conduta feminina. As mulheres são os seres mais naturais. Querem satisfazer seus desejos. Desejam enfeitar-se, ter prazer. Precisam ser contidas – a fim de contermos nossa tendência natural a ser como elas. A educação do cidadão será permanente, pois em última análise pode fracassar. Não é uma educação como a moderna, que desde o Emílio de Rousseau (Émile, ou_De l’éducation_, 1762) acredita em transformar o ser humano em algo melhor e estável. A educação do cidadão antigo é interminável, porque não há como estabilizar seu produto. O homem pode – sempre – decair e corromper-se.

A LIBERDADE PESSOAL

A corrupção moderna é outra. É verdade que, quando a França institui sua Primeira República, durante a Revolução, muitos sonham com Roma, mais talvez que com Atenas. Mas isso não dura. E já os Estados Unidos, ou antes deles a Inglaterra monárquica, mas constitucional, haviam-se aberto para uma república de exigências aliviadas – como veremos com Mandeville.

Benjamin Constant (1767-1830), político liberal franco-suíço de tanto impacto no século 19 que um republicano brasileiro foi batizado com seu nome, criticou aqueles, como Rousseau, que davam tal importância à Antiguidade que não conseguiam ver as reais características dos novos tempos. Esse foi, disse, o erro dos revolucionários que quiseram restaurar a sociedade antiga, na qual a coletividade era tudo e o indivíduo, nada.

Para os antigos – explica Constant – a liberdade importante era a da pólis grega, da civitas romana. O cidadão aceitava sacrificar-lhe tudo. Mas nos tempos modernos a liberdade que conta é a do indivíduo, que não admite ser oprimido pelo coletivo. A coletividade para nós é um peso, um fardo. O convívio político e mesmo social se tornou custoso. Ampliou-se enormemente a vida privada, como área de produção econômica, como tempo de lazer e como espaço em que escolho os valores e fins mais preciosos de minha vida.

Disso resultam duas coisas. Primeiro, aumenta incrivelmente nossa liberdade – insistindo: como indivíduos, como pessoas. Escolho minha profissão, minha religião, meu amor. Cada vez preciso dar menos satisfação disso. Mas, se isso passa a constituir minha liberdade, é porque se esvazia o alcance social das escolhas. Se antes do século 17 tantas sociedades puniam severamente quem adotava uma religião distinta da dominante, era porque passava pela religião o elo social. Quando um budista se abstém de carne, um muçulmano de vinho, um judeu de porco, ele dá à sua religião um alcance bem maior do que no mundo leigo que a modernidade cristã construiu.

O que significa o casamento se tornar escolha pessoal? A justificação romântica é que assim escolho um cônjuge com o coração. Mas quer isso dizer que eu seja mais feliz? Não é óbvio. O casamento como contrato entre famílias tinha menor sentido sexual e sentimental, mas seu alcance social fazia dele um espaço de maior satisfação pública. Modernamente, estamos condenados a buscar a realização, a felicidade, no plano privado, quase íntimo. Perdemos a dimensão pública e sofisticamos a particular, a pessoal. Não é uma crítica; é uma constatação. Houve ganhos, mas também custos, uns e outros enormes.

A segunda conseqüência da modernidade é, assim, a redução do espaço público. Tornou-se exíguo. Os costumes passaram, de sociais ou grupais, a individuais. Surgiu a vida psíquica como campo cada vez maior de indagação, de perplexidade, de escolha. Ora, isso torna praticamente absurdo pensar em costumes como fiadores da república. Quando o valor básico é o da realização pessoal, como queimar a mão ou sacrificar a sexualidade a um ideal social? Ao contrário: se alguém nos propuser um ideal que passe por tais custos pessoais, provaremos que só pode ser um falso ideal, gerador de males sem fim e até de doenças. E provaremos isso tão bem quanto um antigo provaria o contrário.

A CORRUPÇÃO DESPOLITIZADA

Mas a idéia de corrupção dos costumes não desapareceu de um momento para o outro: provavelmente passou por duas fases. Para os antigos, ela ameaçava a república. Quando a França retoma uma república mais próxima da romana, em 1792-3, a corrupção e seu antônimo, a virtude, voltam à cena. Mas isso dura pouco. Daí a dois anos, Robespierre, o Incorruptível, é deposto e guilhotinado. Na vitória dos moderados – ou corruptos, como outros os vêem -, é interessante que as roupas femininas se tornem vaporosas e que em fins da década de 1790 mulheres da sociedade até exibam em público os seios nus.

Poucas sociedades se dispõem a pagar, pela república, o preço da contenção dos costumes; talvez o último movimento a fazê-lo tenha sido o Khmer Rouge, que tomou o poder no Camboja em 1975 e chacinou um terço da população, querendo purificá-la. Alguns temas republicanos, reativados em nossos dias, correm o risco de resultar em crime contra a humanidade.

Essa foi a primeira fase, tentando-se reciclar Roma em Paris. Mas não sumiu o tema da corrupção dos costumes. Não deu certo articulá-lo com a república, mas ele ressurgiu, fortíssimo, com os vitorianos. É curioso: Constant mostrou que não pagaríamos, pela república moderna, o sacrifício de nossa vida íntima. Mas se pagou esse preço, pela monarquia moral da rainha Vitória. A contenção dos costumes veio não com a república, com o regime da autonomia ou do autogoverno, mas com o da heteronomia, do moralismo, das reverências à realeza.

Nessa segunda fase, a corrupção tornou-se tema exclusivamente moral. Sustentou, é claro, uma política – mas sustentou-a de maneira não clara e explícita, como na república romana, e sim implícita e indireta. Até porque a contenção dos costumes era apresentada não como a condição para uma política (se quiserem ser livres politicamente, abram mão da liberdade íntima), e sim como a única conduta decente. No século 19, quando alguns religiosos cristãos, chocados com o deboche sexual dos polinésios, procuraram ensinar-lhes um modo tido como decente de ter relações sexuais (o papai-mamãe, como chamamos, ou a missionary position, como ficou conhecido em inglês), o que faziam era transmitir essa moral única para toda a humanidade. A política – no caso, a destruição de uma cultura em proveito da ocidental – vinha a reboque, discreta, escondida.

Enfim: a contenção e a corrupção dos costumes deixaram de ser tema explicitamente político e essencialmente republicano. Ocultaram a dimensão política e favoreceram a opressão. Nossos políticos da República Velha podiam ler Cícero e reprimir as mulheres de sua família: com isso nada efetuavam de republicano. Temas romanos podiam ser repetidos, mas tinham-se tornado vitorianos.

NOSSO PROBLEMA

A corrupção continua, porém, sendo um tema republicano – só que com outro sentido, outro conteúdo. Ela ainda é o grande perigo para a república. Como esta valoriza o bem comum, todo desvio dele para o particular a ameaça. Mas nossa idéia de corrupção é mais fraca que a antiga.

Chamamos de corrupção o furto do patrimônio público. Ora, isso faz esquecer que o bem público tem natureza distinta do bem particular ou da propriedade privada. Muitos se referem ao Estado como se fosse equivalente a um indivíduo ou empresa. Com isso, ficam na perspectiva patrimonialista, cujos problemas vimos no capítulo anterior.

Uma saída para a pouca importância, hoje, do tema da corrupção seria apostar na educação. Diríamos: a corrupção ameaça a república, mas não se resume no furto do dinheiro público. O corrupto impede que esse dinheiro vá para a saúde, a educação, o transporte, e assim produz morte, ignorância, crimes em cascata. Mais que tudo: perturba o elo social básico que é a confiança no outro. Quem anda por nossas ruas, com medo até de crianças pequenas, e depois se espanta com a descontração das pessoas em outros países pode sentir o preço que pagamos por não vivermos numa república – por termos um regime que é republicano só de nome.

A saída educativa é indispensável. Mas ela exige dar à educação dos costumes um sentido distinto do que teve no antigo pensamento republicano. Não se trata mais de conter a sexualidade, de promover a castidade e a discrição. Os costumes viáveis, a educação desejável em nosso tempo têm a ver com a realização pessoal. Será preciso combinar essa promoção de si com o respeito devido ao outro. E será necessário, mais que tudo, recuperar – ou reinventar – a idéia de que haja algo, no espaço comum a todos, que seja mais do que um simples arremedo social da propriedade privada.

Jürgen Habermas

Por Thomas Assheuer, na Revista “Deutschland”, 09.07.09

Nenhum filósofo alemão da atualidade desperta tanta atenção mundial como Jürgen Habermas. Um perfil, por ocasião do seu 80º aniversário

No final da década de 1970, os livros de Jürgen Habermas eram lidos sob a carteira escolar, às escondidas dos professores do colégio. Hoje, os textos de Habermas são leitura obrigatória. Quem não conhece seus conceitos principais, deve esconder o desconhecimento, pois seu autor tornou-se um clássico ainda em vida e tão famoso, quanto pode ser um professor de Filosofia. Isto não é um bom sinal, pois para um clássico vale a regra: suas fórmulas são con­hecidas. Mas seu motivo filosófico, no qual pulsa o coração do pensamento – isto, a gente esquece.

A motivação básica do pensamento de Jürgen Habermas está às claras e, ainda assim, é difícil de ser encontrada pelos leitores. Às vezes se oculta por trás do terno cinzento da objetividade acadêmica, outras vezes desaparece sob um monte de justificações. Mas desde o início, já nos primeiros trabalhos de estudante, ela não pode passar despercebida. De forma muito simplificada, a motivação é a seguinte: quem faz uma retrospectiva da história da humanidade, descobre uma ladainha de terror, uma história chocante de violência atrás de violência. E, no entanto, há um progresso que não se pode negar, apesar de todos os reveses, uma “evolução” social e, com isto, a possibilidade de civilizar o poder e a violência ou talvez de eliminá-la inteiramente um dia. O instrumento da autocivilização é a língua humana, pois cada fala encerra um objetivo, o “télos da compreensão”. A comunicação interrompe o estado de guerra no mundo.

Quem pressupõe uma vigorosa herança idealista neste pensamento, tem razão inicialmente. Habermas, na época um estudante com pouco mais de vinte anos, confrontou-se com pensamentos grandiosos, mas extremamente especulativos, ao ler o filósofo idealista Schelling, que o fascina ainda hoje. “Deus Pai”, escreveu Schelling, retirou-se da criação, deixando o campo para o ser humano. No entanto, as criaturas beneficiadas com a liberdade têm a obrigação de fazer o uso correto da sua liberdade. Com a ajuda de sua língua, elas têm que estabelecer entre si a mesma relação de reconhecimento, que Deus teve em relação a elas, quando lhes concedeu a autonomia. Quem viola este pacto com Deus, comete novamente um “pecado original”.

Habermas, que veio do mundo de pensamento do filósofo existencial Heidegger e do antropólogo Gehlen, escreveu sua tese de doutoramento sobre Schelling e deu um rumo surpreendente à sua interpretação. Ele estabeleceu uma ligação com os primeiros escritos de Marx, cuja crítica social lhe deu a possibilidade de compreender o discurso de Schelling sobre o pecado original, de forma bem concreta, bem materialista. Um pecado original é quando as relações de poder vencem as relações da língua – quando os “libertados da criação” não escolhem a compreensão, mas sim a violência, como frequentemente na história.

Mas os filósofos não são literatos, isto é, eles têm de dar uma austeridade básica aos temas, com os quais estão “infectados”, expurgando os detritos especulativos e tornando-os compreensível ao público esclarecido, através de conceitos claros. Exatamente isto é o que Jürgen Habermas tomou como programa. Com o frio instrumento da ciência, ele quis provar que a língua não é apenas uma arma na guerra civil babilônica da sociedade, uma máscara do poder. Sua antifórmula é a seguinte: que observa bastante o tecido da língua contra a luz, quem examina o bastante as suas leis, ele reconhecerá que nela está incluída uma normatividade, uma aspiração à verdade, que podemos transgredir, mas não podemos eliminar basicamente. Com palavras, pode-se mentir e exercer o poder, mas não pode existir uma língua que esteja intei­ramente baseada em mentira e engodo. “Mesmo nas comunicações patologicamente deturpadas está fin­cado o ferrão da aspiração pela verdade”.

Não é preciso pensar muito para ver que poder explosivo uma filosofia da comunicação, derivada de Schelling, enriquecida com Marx e temperada com os recursos da linguística, desenvolveu entre os intelectuais famintos de teoria dos anos sessenta. Eles interpretaram Habermas exatamente como ele pensava: como conclamação a uma democracia radical e à crítica radical. A democracia está danificada, onde a “opinião pública” é dominada por monopólios de opinião, manipulada por lobistas e malversada por políticos. E defeituosas são as democracias que se entregam cegamente ao curso do progresso, sem livre arbítrio, que têm “ciência e técnica como ideologia” (segundo um estudo do ano de 1968).

Na época, falou-se muito de “liberdade do poder”. Em seus escritos, Habermas quis reconhecer até mesmo um “interesse objetivo” de emancipação. Hoje, ao contrário, chama a atenção um outro caráter desses livros, um conservadorismo cultural, dito com cuidado, uma profunda ambiva­lência. De um lado, Habermas admira as sociedades modernas, pois elas – fato histórico singular – impuseram processos democráticos e ampliaram a “área de ação” discursiva da razão comunicativa. Mas, por outro lado, as sociedades modernas têm de ser temidas, pois seus sistemas funcionais desenvolvem um excesso de poder. As pressões capitalistas do mercado chocam com a autodeterminação democrática.

Os fios desses pensamentos juntam-se num nó monumental, nos dois tomos da “Teoria da Ação Comunicativa” (1981). Esta obra central foi celebrada, com razão, como despedida do pensamento pessimista da “velha” Escola de Frankfurt, mas nela encontra-se a mesma contradição. O dinamismo sufocante do capitalismo e também a técnica e a ciência empurram a sociedade para frente. Mas, ao mesmo tempo, parte destes “sistemas” complexos uma ameaça invisível. Eles assediam o “mundo da vida” – necessitado de zelo – dos cidadãos. Seus cálculos de proveito infiltram as velhas “tradições inconscientes-cientes” e fixam-se na esfera pré- polí­tica, na vida privada e na família. Em re­sumo: a vida moderna encerra uma contradição. Seus sistemas aliviam da miséria material, mas ao mesmo tempo, quase não podem ser conciliados com o dia-a-dia ou invadem como “senhores coloniais” os “poros” de formas consagradas de vida, infiltrando-as através da comercialização, da burocratização e do cientificismo.

Transposto às relações de hoje, isto significa: uma forma de “colonização” econômica está inerente à reivindicação de que a sociedade tem de ser organizada como um centro de lucro, do berço ao túmulo. O mesmo é válido para a brutal transformação das universidades, visando “eficiência”. E se as ciências biológicas lograrem manipular geneticamente os “antigos sujeitos” e fizer com que perfilem como bonequinhos de Lego no parque humano, então isto seria uma vitória da lógica cien­tífica sobre o mundo da vida.

Sua obra contém uma promessa luminosa de liberdade

Talvez seja esta visão rota da atualidade, turvada pelo ceticismo, o que esclarece a carreira acadêmica e o alcance mundial de Jürgen Habermas. Sem reservas, ele adere ao espírito do modernismo, sua obra contém uma promessa luminosa de liberdade e defende o Estado de direito e a demo­cracia com eloquência patética. Ao mesmo tempo, nutre-se de uma motivação romântica, composta pela reconciliação e a compreensão. Assim, a obra permanece sensível às coações de uma salvação mundial voltada para o mercado, a uma racionalidade sem fortúnio, ao desalento da liberdade vazia e do progresso insensato.

A fórmula salvadora de Habermas nos anos oitenta era: “reconciliação com o modernismo em autodestruição”, pelo que o capitalismo e a democracia, a ciência e a arte deveriam ser reequilibrados, como um móbile. Para a esquerda radical, o projeto era muito carola, os conservadores perseguiam o convicto intelectual de esquerda com franco ódio e denunciavam Habermas como mentor intelectual do terrorismo. Estas foram as batalhas do passado. Quem lê hoje, com que arrojo argumentativo um conservador como Ernst-Wolfgang Böckenförde ajusta as contas com neoliberalismo, com a hegemonia do mercado sobre a democracia legal, não sabe mais exatamente sobre o que se polemizou durante anos, de maneira passional e ofensiva. É como se Habermas tivesse unido a república através da discussão que ele gerou, sendo que tanto seus próprios argumentos, como os dos seus adversários, transformaram-se com o tempo. Ele marcou época na consciência coletiva, nenhum outro marcou a fisionomia intelectual da Alemanha Federal como ele. E ela lhe deve de maneira decisiva a sua recriação moral.

Jürgen Habermas: Biografia

Jürgen Habermas nasceu em Düsseldorf em 18 de junho de 1929, estudou Filosofia, Psicologia, Germanística e Eco­nomia em Göttingen, Zurique e Bonn. Em 1956, Habermas tornou-se assistente de pesquisa no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt do Meno. Após sua habilitação como professor universitário, feita com Wolfgang Abendroth em Marburg, ele foi levado para Heidelberg por Hans-Georg Gadamer. Em 1964, Habermas tornou-se professor de Filosofia e de Sociologia em Frankfurt do Meno. Logo, os estudantes de esquerda passaram a celebrar o astro acadê­mico como seu mentor intelectual. Entre 1971 e 1980, ele foi diretor do Instituto Max Planck de Pesquisa das Condições de Vida no Mundo Científico-Técnico, em Starnberg. Em 1980, seu discurso ao receber o Prêmio Theodor W. Adorno, sobre “O Projeto Inacabado do Modernismo”, Habermas provocou um debate sobre o pós-modernismo e o pós-estruturalismo, que durou muito tempo. Sua intervenção contra o revisionismo histórico do historiador Ernst Nolte, em 1985, deflagrou a polêmica dos historiadores, uma controvérsia sobre a forma de tratar o passado alemão.

El filósofo alemán Jürgen Habermas vuelve locos a los usuarios de Twitter

Do portal 20minutos

Ya hace tres décadas, el filósofo y sociólogo alemán Jürgen Habermas entendía que el cambio social debía darse en el ámbito de la comunicación y del entendimiento entre los sujetos.  Tal vez por esa razón los usuarios de Twitter no se sorprendieran demasiado al descubrir que el pasado 6 de noviembre el pensador, de 81 años, se había dado de alta en esa red social.

“Estados Unidos y China deberían sentir vergüenza de su acuerdo en Copenhague”, “Internet ha reactivado las bases de una esfera pública igualitaria de escritores y lectores”, “la Red introduce nuevos elementos en la comunicación. Además, puede menoscabar la censura de los regímenes autoritarios”, escribió en su Twitter @jhabermas.

El anuncio en The Guardian de que Habermas era usuario de una red social provocó que su página obtuviera en poco tiempo más de 6.000 seguidores. Sin embargo, las teorías que el filósofo despachaba online pusieron en aviso a algunos seguidores. ¿Por qué razón casi todos los tweets eran textos copiados de su trabajo de 2006 Comunicación política en la sociedad de los medios de masas? ¿Por qué se limitaba a copiar y pegar sus teorías ya ampliamente divulgadas?

Fue el propio autor del perfil firmado como jhabermas, Jonathan Stray, quien el pasado 1 de febrero reveló que él había sido el usuario que se escondía detrás de ese nombre.

“Por favor, disculpadme por haceros creer  (al menos, a algunos de vosotros), que yo era Habermas”, escribió en la red social.

El asunto ha hecho que The Guardian haya tenido que reconocer su error, mientras varias personas se cuestionaban la capacidad de Twitter para garantizar la autenticidad de la información que un usuario proporciona sobre él mismo.

El asunto también ha demostrado, sin embargo, que los usuarios también están interesados en los planteamientos teóricos de ciertos filósofos, y no sólo en banalidades, como indica el diario, que invita a otros filósofos a sumergirse en el mundo de las redes sociales.