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Cindindo a cruz ~ Hélio Schwartsman

O povo de Deus ficou bravo comigo por causa da coluna “Cristo despejado”, publicada na edição impressa da Folha no último domingo, na qual defendi a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de mandar tirar os crucifixos das dependências da Justiça gaúcha.

Tecnicamente, era um texto pró-religião. Eu tentava mostrar que o Estado laico, isto é, que se mantém numa posição de total neutralidade em relação a todos os credos, interessa muito mais a religiosos do que a ateus e agnósticos.

Para os que não cremos em Deus ou que julgam sua existência uma questão indecidível, o crucifixo não passa de dois pedaços de pau entrelaçados, uma manifestação supersticiosa, no máximo. Já para alguém que de fato abraça uma fé, pode ser bastante incômodo ver o Estado chancelando o símbolo de um credo que não o seu.

Judeus e muçulmanos, por exemplo, têm boas razões históricas para interpretar a cruz como um emblema de opressão e morte. Há mesmo algumas denominações protestantes que, levando a sério o segundo mandamento, consideram o crucifixo um caso de imperdoável idolatria. Continue lendo

Vírus divinos ~ por Hélio Schwartsman

A cross

Na semana passada a Itália entrou com um recurso no Tribunal Europeu de Direitos Humanos para que esta corte reveja sua decisão de novembro passado de mandar retirar os crucifixos de todas as salas de aula de escolas públicas. Como o acórdão tem grandes chances de virar jurisprudência para toda a Europa, dez outros países (a maioria católicos e ortodoxos) manifestaram apoio a Roma.

Com o arrefecimento do comunismo, o embate ideológico se deslocou da economia para temas culturais. Frequentemente, questões de pouca ou nenhuma consequência prática provocam debates acalorados. A controvérsia em torno de crucifixos em tribunais e escolas é um caso paradigmático.

Para os novos iconoclastas, espaços públicos não devem ostentar nenhuma espécie de adorno religioso, sob pena de violar o princípio da laicidade do Estado, em maior ou menor grau consagrado nos países democráticos contemporâneos.

O raciocínio central é o de que membros de religiões não cristãs –e vale lembrar que mesmo algumas denominações protestantes denunciam o crucifixo como idolatria–, agnósticos e ateus podem sentir-se constrangidos com a exibição ostensiva de cruzes em espaços tão caracteristicamente republicanos nos quais sua presença é exigida por lei. Ninguém, afinal, pode alegar divergências religiosas para ausentar-se da escola ou de prestar um testemunho.

Já os tradicionalistas contra-atacam dizendo que a exposição dos crucifixos faz parte da identidade nacional de muitos países europeus e não corresponde em absoluto a uma tentativa de conversão. Ignorar o papel que o catolicismo desempenhou na formação da Itália, por exemplo, constituiria uma falsificação da história.

No mais, vários países têm cruzes incorporadas a suas bandeiras e possuem hinos nacionais que evocam Deus. Não cabe à Justiça, mas aos Parlamentos, e apenas se acharem que é o caso, modificá-los. Católicos pragmáticos sugeriram a realização de um plebiscito na Itália para decidir o futuro dos crucifixos. Escoram-se em pesquisas que apontam que 60% da população quer manter o Cristo agonizante nas salas de aula de seus filhos.

Ambos os argumentos encerram algumas verdades, mas também apresentam uma série de limites. Para começar, o princípio do laicismo nos espaços públicos é menos absoluto do que apregoam seus entusiastas. Nem mesmo a França, que sempre esteve na vanguarda do anticlericalismo, cogita de desfazer o Louvre (um museu estatal) das peças que de algum modo se relacionam com uma religião –o que deve corresponder a uns 90% do acervo. Qual juiz teria a coragem de mandar a Vênus de Milo a hasta pública para manter a “neutralidade” de um Estado que não pode sancionar os deuses pagãos?

Também não é muito exato afirmar que o crucifixo possui significações que transcendem a religião. Em termos objetivos a cruz é um método de execução bastante popular entre os séculos 6 a.C. e 4 d.C. Era utilizada por romanos, persas e egípcios.

Se alguém ousasse propor que as paredes de nossos tribunais fossem enfeitadas por forcas ou cadeiras elétricas provocaria indignados e justos protestos. Não é preciso recorrer a manuais de estética para constatar o mau gosto de uma iniciativa como essa. Se nós deixamos de ver a cruz como um instrumento de tortura, é apenas e justamente porque ela se tornou o símbolo maior do cristianismo, caráter que lhe é indissociável.

Acho importante destacar mais uma vez a desimportância dessa discussão. Para falar um português bem claro, tudo não passa de uma tremenda de uma bobagem. Eu, que sou ateu de carteirinha, jamais me senti constrangido por ter de entrar numa sala que dependure os pedaços de pau entrelaçados. Na verdade, não conheço ninguém que fique, mas admito, é claro, essa possibilidade.

Também a reação dos religiosos me parece despropositada. Se a Corte mantiver sua posição de que as cruzes ferem os direitos das minorias não cristãs e mandar retirá-las das escolas e tribunais, isso em nada diminuirá o papel da religião para os fiéis. É preciso muita paranoia para ver aí uma golpe contra Deus, o qual, de resto, se tem apenas uma fração poderes que os crentes lhe atribuem, seria plenamente capaz de defender-se sozinho.

A insistência na manutenção me remete a um livro que acabo de ler. Trata-se de “The God Virus”, de Darrel Rey, psicólogo e estudioso das religiões, que percorreu uma trajetória suave até o ateísmo. Criado num ambiente fundamentalista, ele se tornou mestre em estudos religiosos por um seminário metodista. Foi aos poucos se afastando da igreja. Com 30 anos, havia se tornado agnóstico e, aos 40, já era ateu.

“The God Virus” não é uma obra excepcional, mas traz alguns “insights” interessantes. A estrutura é até bem simples. Rey abraça a tese de Richard Dawkins de que existem complexos de unidades culturais (os memes) que são capazes de reproduzir-se, mutar, evoluir e morrer exatamente como seres vivos e a aplica à religião, com especial cuidado com as relações interpessoais sob a batuta divina.

Num resumo grosseiro, como diz o título, o autor equipara deuses a vírus. E é o próprio Rey quem lembra que nem todos os vírus são patológicos. Nós podemos viver relativamente bem com vários deles, embora existam alguns tipos extremamente parasitários.

Há vários pontos do livro que seria interessante destacar, mas me limito ao papel dos vetores. Religiões precisam de um veículo para infectar as mentes dos humanos que reproduzem e executam suas ideias. E eles existem aos borbotões. São os próprios pais que introduzem seus filhos nos mistérios de sua crença. Os mais eficientes desses vetores, entretanto, são os sacerdotes, pastores, padres, rabinos imãs etc. Eles, mais do que os fiéis ordinários, se dedicam a converter pessoas e preservar a “pureza” do DNA religioso, para que não seja conspurcado por mutações que possam descaracterizá-la.

Vale lembrar que isso já ocorreu. O cristianismo, por exemplo, se apropriou de genes de outros credos e teve tanto sucesso que acabou por matar muitas das fés das quais emprestou elementos. Um exemplo simples é o mitraísmo, do qual foi retirado o mito do nascimento virginal. O culto a Mitra, que era tão popular entre os legionários romanos, pereceu esmagado pela conversão do império àquela forma exótica e não tribal de judaísmo que ficou conhecida como cristianismo.

Uma observação curiosa (e de alto poder explicativo) do autor diz respeito aos escândalos de abusos sexuais por padres católicos. Vetores exigem um alto investimento do vírus para ser criados. Eles precisam ser treinados, o que exige tempo e consome recursos. Uma vez formados, devem ser mantidos e protegidos, exceto em algumas poucas situações em que o vetor se torna mais poderoso morto do que vivo, hipótese em que os chamamos de santos e mártires.

De um modo geral, porém, vetores são mais valiosos do que fiéis comuns. E isso explica o fato de a igreja não ter pensado duas vezes antes de criar toda uma rede de proteção e acobertamento para os padres que abusavam da garotada, ainda que, nominalmente, a religião exista para garantir a salvação do praticante.

E é justamente aí que reside o que, a meu ver, é o ponto central da obra de Rey. As religiões, como prevê o modelo dos memes, existem apenas para manter vivo, ativo e tão puro quanto possível o DNA de seu Deus. Todo o resto é adorno. E cada milímetro de espaço religioso (no qual o vírus possa reproduzir-se) vale a pena. Daí a insistência na manutenção dos crucifixos.

E, já que voltamos a esses aparelhos de tortura que tanto mobilizam as almas das pessoas, creio que precisamos buscar a solução para o problema fora da lógica da propagação viral. Diante da aporia entre religiosos e secularistas, deveria prevalecer a regra da boa educação: se nem todos que estão obrigados a comparecer às escolas públicas e aos tribunais são cristãos, é impolido impor-lhes essa imagem. Paredes nuas não são, afinal, tão feias assim.

Fonte: Folha SP, 08 jul 10

Teologia Selvagem ~ Hélio Schwartsman

penguin

Deu no Datafolha: 25% dos brasileiros acreditam em algo parecido com Adão e Eva; 59% tentam conciliar Deus e alguns fundamentos da seleção natural, mais ou menos como foi proposto por Charles Darwin 150 anos atrás; e apenas 8% se atêm a fatos biológicos e apostam no darwinismo sem a interferência divina. A reportagem completa que escrevi para a versão impressa da Folha pode ser lida aqui.

Ao contrário dos mais otimistas, que celebraram o fato de termos menos criacionistas da Terra jovem do que os EUA (onde eles são 44%) e estarmos em linha com várias nações da Europa (onde a maioria dos países tem taxas na casa dos 20 e poucos por cento), não vejo motivos para nos regozijarmos. Afinal, um de cada quatro brasileiros acha que a Terra tem menos de dez mil anos e que o homem surgiu a partir de um passe de mágica de Deus, que depois teria arrancado a costela do pobre Adão para fazer brotar-lhe uma fêmea.

Que as pessoas acreditassem nessas balelas na Idade do Bronze, quando não havia explicações alternativas, vá lá. Que continuem a sustentar esses mitos numa era em que a ciência fornece modelos muito mais verossímeis, razoáveis e fortemente embasados na empiria é prova de nem mesmo milhões de anos de seleção natural bastaram para produzir uma espécie uniformemente inteligente.

Não é, contudo, o criacionismo da Terra jovem que eu pretendo combater hoje. Essa é uma posição que se autodestrói sozinha: se a Bíblia de fato não contém erros e traz toda a ciência e a ética de que precisamos, como afirma essa gente, então estamos autorizados a manter haréns, escravizar argentinos para ajudar no trabalho doméstico, apedrejar hereges e, em caso de aperto financeiro, vender nossas filhas no mercado de escravos. Não sou um especialista, mas acho que até as obras do Marquês de Sade trazem uma moral mais elevada do que a do “bom livro”.

O que me interessa aqui é perscrutar um pouco mais fundo a posição dos 59% que tentam juntar Deus e Darwin. Hoje, excepcionalmente, não vou ficar advogando pelo ateísmo. Mesmo que Deus exista (do que duvido), não há a menor necessidade de inseri-Lo no modelo explicativo da evolução das espécies, o qual apesar de ser “apenas” uma teoria (a lei da gravidade, assim como todas as proposições científicas, são necessariamente “apenas” teorias) conta com todas as corroborações necessárias para que o consideremos tão comprovado quanto dezenas de outras teorias das quais nos utilizamos diariamente sem tentar contrabandear nenhum elemento divino. Assim como ninguém diz que a Terra descreve sua órbita ao redor do Sol “guiada por Deus” ou que os objetos caem com um empurrãozinho celeste, não há razão para colocar um ente supremo projetando cada animal ou cuidando diuturnamente da criação para que o bolo não desande.

Como católicos e alguns protestantes já perceberam, em termos puramente lógicos Darwin e Deus não estão em campos opostos. Não é preciso mais do que uma teologia só um pouco mais sofisticada do que a dos fundamentalistas bíblicos para conceber um Deus compatível com a seleção natural. Afinal de contas, Ele é que seria o criador de todas as leis naturais, incluindo a capacidade de pais transmitirem certas características genéticas a seus filhos e a ocorrência de um certo nível de “crueldade” no mundo, pelo qual apenas alguns indivíduos sobrevivem para reproduzir-se. E isso é tudo o que precisamos para instalar a seleção natural, seja na Terra ou qualquer outro ponto do Universo.

E não é difícil para qualquer religioso com um pouco de imaginação empurrar Deus um bocadinho para o lado e deixar a evolução fluir. Ele precisa apenas adquirir características um pouco mais deístas ou leibnizianas, o que não foi um problema nem mesmo para o um papa como Pio 12, o qual, na encíclica “Humani generis”, de 1950, classificou o darwinismo como “hipótese séria”. Quarenta e seis anos mais tarde, seria a vez de João Paulo 2º declarar que a evolução era “mais do que uma hipótese”.

Só que o mundo não vive apenas de lógica (às vezes até me pergunto se essa não é uma arte ameaçada de extinção). No plano psicológico, Deus e Darwin são, sim, adversários ferrenhos. Alguns católicos já perceberam isso e ensaiaram uma revisão no posicionamento da Santa Sé.

Em 2005, num artigo para o jornal “The New York Times”, o arcebispo de Viena, Cristoph cardeal Schönborn, lançou um inesperado ataque à teoria darwinista da evolução das espécies. O dignitário, que é visto como teologicamente próximo ao papa Bento 16, afirmou que a noção darwiniana de ancestralidade comum entre os seres vivos pode estar de acordo com a doutrina católica, mas que os conceitos de mutações aleatórias e seleção natural sem direção ou finalidade certamente não estão. Schönborn também aproveitou para qualificar declarações de João Paulo 2º simpáticas ao darwinismo como “vagas e desimportantes”.

Como o leitor já deve ter reparado, embora as noções de seleção natural e um Deus pessoal que realize um ou outro milagre de vez em quando possam coexistir, trata-se de uma convivência um pouco forçada (não natural, para empregar um termo em voga). Na esfera do simbólico, ou bem há um Deus atuante e com um propósito, ou bem somos o produto da inopinada mistura de carbono com mais dois ou três elementos químicos baratos.

E, se há uma ideia que as religiões abominam, é a de que estamos abandonados à própria sorte num mundo sem propósito. É a “Geworfenheit” heideggeriana. E, se esse conceito de abandono não está embutido no neodarwinismo, a teoria pelo menos torna explicável o surgimento da multiplicidade de seres vivos que habita o planeta. Com Darwin, Deus se torna mais irrelevante. E essa é uma ideia difícil de engolir para todos aqueles que acalentam a hipótese de um ente supremo.

Assim, eu não me surpreenderia se os religiosos que flertaram com o darwinismo comecem a dele afastar-se. Certamente não de volta para o criacionismo bíblico, mas para uma sistematização da teoria do design inteligente, a qual, embora seja epistemologicamente insustentável (não passa do velho criacionismo vestindo um jaleco de cientista), parece gozar de forte popularidade em todo o mundo. Ela é, por assim dizer, a consequência natural da teologia selvagem que procura reunir Deus e o bê-á-bá da ciência ensinada nas escolas.

Com o fim das disputas ideológicas em torno do modo de produção, é cada vez mais para temas como evolução, aborto, drogas que as guerras culturais tendem a migrar.

Hélio Schwartsman

Fonte: Folha Online, 8 abr 2010