O Estado de São Paulo nunca deixou de receber contingentes de trabalhadores vindos de fora do paÃs, mesmo nas décadas do século 20 em que tanto a população quanto a academia pareciam enxergar apenas a migração interna para o Estado, principalmente a originada no Nordeste, mostra o Atlas Temático do Observatório das Migrações em São Paulo, que está sendo lançado neste mês pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, em parceria com a Fapesp. Essa imigração internacional voltou a ter visibilidade a partir dos anos 90 do século passado, reavivando tensões e preconceitos.
[Carlos Orsi, Jornal da Unicamp, 9 dez 13] “O capital internacional precisa desses imigrantes, sejam eles qualificados ou não, mas a população não está preparada para enfrentar esses novos fluxos migratórios, particularmente porque são migrantes voltados para o mercado de trabalhoâ€, disse a coordenadora do Atlas, Rosana Baeninger, socióloga e pesquisadora do Nepo, ao Jornal da Unicamp.
Além do Atlas, que em mapas e gráficos cobre a entrada de estrangeiros – incluindo escravos – no território que hoje corresponde ao Estado de São Paulo de 1794 a 2010, também estão sendo lançados os oito volumes finais, de um total de 12, da coleção “Por Dentro do Estado de São Pauloâ€, também produzida pelo Nepo e pelo Observatório das Migrações. A coleção cobre, em detalhe, as dinâmicas sociais e econômicas dos processos migratórios. Alguns volumes da “Por Dentro do Estado de São Paulo†tratam de regiões especÃficas, como Campinas e Limeira, e outros debruçam-se sobre processos mais amplos, como as imigrações internacionais ocorridas após a Segunda Guerra Mundial e as migrações indÃgenas.
Na produção do Atlas, foram consideradas imigrantes as pessoas nascidas fora do Brasil que se encontram no Estado – assim, por exemplo, as segundas e terceiras gerações de imigrantes, nascidas no Brasil, não são captadas pelos censos demográficos, pois se utiliza o quesito referente ao paÃs de nascimento.
Fluxo invisÃvel
“Um ponto importante que um projeto dessa envergadura, com olhar para mais de 100 anos, ajuda a ver é que, embora a partir de 1927 tenha acabado o subsÃdio à imigração no Estado de São Paulo, nós continuamos recebendo os imigrantes internacionaisâ€, disse a pesquisadora. “Ocorre que, como a migração interna passou a ser mais volumosa que a migração internacional, nós deixamos de estudar a migração internacionalâ€.
A imigração internacional para São Paulo só volta a ser “visÃvel†na virada do século 20 para o 21, com a chegada dos bolivianos, chineses, coreanos e, depois, haitianos, e o risco de uma xenofobia renovada em parte da população. “Os fluxos de imigrantes para São Paulo nunca pararam, mas eram menos visÃveis, porque os estrangeiros estavam chegando junto de levas de migrantes internos que também sofreram com o preconceito: os baianos, os paraibanosâ€, explicou Rosana. “Esse foi também um objetivo do projeto, mostrar como a migração contribuiu para a formação social paulista. A metrópole de São Paulo, hoje, ela se reinventa, se reconstrói, com a presença imigranteâ€.
As organizadoras do Atlas – além de Rosana, participaram as pesquisadoras do Nepo Roberta Guimarães Peres e Natália Belmonte Demétrio – explicaram ainda que a imigração, nos séculos 20 e 21, nem sempre está relacionada a uma crise no paÃs de origem.
“O imigrante estrangeiro que vem ao Brasil não está necessariamente fugindo de uma crise econômica. Isso muda muito depois dos anos 2000, particularmente, porque o Brasil vai entrar na rota do capital internacional. E as indústrias têm um forte componente nessa mobilidade internacional, os grandes centros financeiros, tambémâ€, disse Rosana. “Os bolivianos, por exemplo, começam a entrar no Brasil da década perdida, quando nós aqui estávamos em crise. As explicações para as migrações não estão nos destinos migratórios, ou na origem. Estão muito vinculadas à dinâmica da circulação do capital, à necessidade de mão de obra para essa circulação de capitalâ€.
Brancos e qualificadosÂ
O uso do imigrante europeu para “branquear†a raça brasileira pode não ser mais uma polÃtica governamental explÃcita, mas as organizadoras do Atlas relutam em afirmar que o problema racial vinculado à imigração ficou de vez no passado. “O próprio governo brasileiro hoje quer fazer polÃticas explÃcitas para atrair portugueses e espanhóis qualificados. Então, quem são os portugueses e espanhóis qualificados? Continuam sendo os brancos. Os europeusâ€, lembrou Rosana. “Na questão do haitiano, nós vamos precisar dar um visto humanitário. Então, assim, acho que essa questão ainda é muito presente, inclusive na visualização dos fluxos migratóriosâ€.
Dados oficiais podem sugerir que o Brasil passa por um “boom†de atração de mão de obra estrangeira qualificada, mas Rosana lembra que o trabalhador pouco qualificado e sem documentação tem tido importante participação em diferentes nichos econômicos no paÃs. Contudo, passam pelo Ministério do Trabalho e se regularizam empresários, engenheiros, executivos. “Essas grandes empresas se articulam à mobilidade do capital e da força de trabalho,  sendo que diferentes contingentes imigrantes passam a compor uma mão de obra não qualificada, de baixo custo neste novo cenário brasileiroâ€, disse a pesquisadora.
As questões étnica e social interferem na percepção do imigrante, e na xenofobia. “O boliviano que vem tem outra etnia, tem suas raÃzes indÃgenas. E nós ainda estamos muito presos na questão de que, para a nação, o imigrante é o europeu. Hoje nós temos muitos coreanos, chineses aqui, mas o japonês, quando chegou, enfrentou um preconceito muito grande, porque ele era uma outra raçaâ€.
Diferentemente da imigração do século 19, para as lavouras, a imigração atual é urbana, mostra o Atlas. “É nas cidades que as pessoas vão se defrontando, hoje, com a migração muito mais visÃvel: ela é latino-americana, é chinesa, é coreana– então o estranhamento é muito mais frequente hoje, porque somos de segunda, de terceira geração dos imigrantes do século 19. O mito da miscigenação ficou lá atrásâ€.
O combate ao preconceito, disse Rosana, requer polÃticas públicas para melhorar a qualidade de vida dos imigrantes pouco qualificados, que chegam como mão de obra barata. “Tem de haver polÃticas públicas pensadas para as imigrações internacionais, para que essas pessoas não fiquem em condições de vida tão precárias que façam com que a população pense que a migração está trazendo problemas, quando é o contrário: ela está trazendo um excedente populacional que vai gerar riqueza naquele lugar. Riqueza para o capital, claroâ€.
Ela acredita que é preciso reconhecer que o Brasil entrou de vez na rota das migrações internacionais. “Não podemos querer só o migrante qualificado, o português, o espanhol, o médico, o engenheiro que vem para cá e vai ter todas as condições de permanecer no Brasil. Temos de ter polÃticas migratórias que contemplem a diversidade de situações que o paÃs está vivenciando, garantindo a governança das migrações internacionais e os direitos humanosâ€.
Guaranis
Um dos livros da coleção “Por Dentro do Estado de São Paulo†trata das migrações de Ãndios guaranis no Estado de São Paulo. O volume, intitulado “Povos IndÃgenas; mobilidade espacialâ€, organizado por Rosana Baeninger e pela ex-presidente da Funai Marta Maria do Amaral Azevedo, descreve como, desde meados do século 19, Ãndios guarani vêm migrando da Argentina e do Paraguai para o litoral paulista, em busca de uma “Terra Sem Malesâ€.
Além disso, o trabalho constata um aumento da população guarani no Brasil, saltando de 20 mil no perÃodo 1981-1985 e chegando a 51 mil em 2007-2008, de acordo com estimativas. “Para eles, toda essa área, Paraguai, centro-sul do Brasil, é um território sóâ€, explicou Rosana. “O que mostra para nós, na questão dos povos indÃgenas, que não podemos delimitar os processos migratórios no território com o nosso olhar. Tem que ser com o olhar dos sujeitos, dos sujeitos migrantes. Eles nem se consideram migrantesâ€.
A primeira fase do Observatório das Migrações em São Paulo, que se fecha com a publicação dos oito volumes finais da coleção e do Atlas, envolveu 16 estudos temáticos, que além dos 16 pesquisadores responsáveis contaram com a participação de 36 estudantes de graduação e pós. Além da Unicamp, estiveram envolvidas também Unesp, UFSCar, Unifesp e Faculdade Anhembi-Morumbi. O Observatório agora deve entrar numa segunda fase, mais voltada para as migrações contemporâneas no Estado. A primeira fase deu origem a 192 trabalhos apresentados em congressos nacionais, 102 em congressos internacionais, a 15 defesas de mestrado e a nove doutorados, envolvendo um total de 87 autores, e se estendeu de 2009 a 2013.