Em um artigo recente, o historiador Tony Judt (pronuncia-se “jud”), 62, comentou a paixão do pai por exóticos carros franceses — ou que, ao menos, eram vistos assim no Reino Unido da década de 1960.
O Citroën DS 19 branco em que a famÃlia cruzava a Londres da época podia ser incomum, mas a relação que o motorista mantinha com a máquina já se popularizava.
Não à toa, defende Judt, a geração que chegou à maturidade no pós-Guerra, à qual pertencia seu pai, amava o automóvel.
Finalmente acessÃveis à classe média, mas ainda não hegemônicos na vida urbana, os carros deram corpo e mecânica a anseios de liberdade e à prosperidade econômica recém-alcançada.
Décadas depois, boa parte do encanto desapareceu em meio a congestionamentos. Judt, como muitos de sua geração em paÃses ricos, não nutre simpatia por carros –representantes, em sua opinião, de “separação e egoÃsmo nas formas mais socialmente disfuncionais”.
A crÃtica ao “egoÃsmo”, registrada no relato do historiador, é hoje algo tão raro quanto Citroëns DS 19 em Londres há cinco décadas.
Formado em instituições-sÃmbolo da academia europeia –a Universidade de Cambridge e a Escola Normal Superior, em Paris–, Judt é provavelmente o principal intelectual social-democrata em atividade.
VÃtima desde 2008 de uma doença neuromuscular que paralisa seu corpo, ele continua a publicar artigos e livros em que ataca o pensamento conservador e a crescente desigualdade econômica na Europa e nos EUA.
Ao mesmo tempo, defende as conquistas do Estado de Bem-Estar Social.
Muitos desses artigos, escritos antes do diagnóstico, estão em “Reflexões Sobre um Século Esquecido”, lançada esta semana no Brasil.
Ali se pode constatar que, assim como o carro do pai, Judt não se encaixa bem na paisagem _no caso dele, a hegemonia intelectual das últimas décadas.
LÓGICA CONTÃBIL
De famÃlia judaica, o historiador é um dos mais ferozes crÃticos de Israel, segundo ele, um paÃs “imaturo”, “adolescente”. Mas os nacionalismos não o incomodam mais do que o modelo americano de divisão identitária étnica da população.
Em contraste com arautos de uma nova ordem mundial, pós-Guerra Fria e 11 de Setembro, Judt vê mais continuidade do que ruptura entre a época atual e os dilemas do século 20.
Sobretudo, é um crÃtico do crescente esvaziamento das perspectivas éticas e sociais nos debates polÃticos de décadas recentes, marcados pelo que acredita ser uma vazia lógica contábil, economicista. “Esquecemos como pensar politicamente”, escreve.
Muitos de seus textos se dedicam a desvendar os processos históricos que desaguaram na atual hegemonia conservadora, crÃtica do Estado-providência.
E ela é filha do “esquecimento”, defende Judt.
A geração que construiu os mecanismos distributivos das atuais sociedades europeias, que edificou eficientes sistemas de proteção social, educação e saúde públicas, havia vivido a experiência comum da Grande Depressão e da Segunda Guerra.
Seus lÃderes temiam as possÃveis consequências de polÃticas que disseminassem injustiças sociais ou desigualdades econômicas.
A prosperidade que legaram aos filhos, nos paÃses ricos, diminuiu o significado coletivo daquelas experiências traumáticas e dos temores a elas associados.
Os benefÃcios do Estado de Bem-Estar Social pareciam garantidos, defende Judt, ao mesmo tempo em que se abria espaço para a crÃtica aos seus excessos –na arrecadação de impostos e nos gastos públicos.
CICLO NATURAL
Mas a história não termina aÃ. “Creio que existe um ciclo natural de entusiasmo e desilusão, que se cruza com um ciclo parecido, de esquecimento e reaprendizado”, diz.
O mais recente ciclo de hegemonia ideológica, que diminuiu o papel do debate polÃtico e social, pode estar próximo do fim, afirma.
Os valores estritamente contábeis das últimas décadas já fazem sentir seus efeitos perniciosos na atual crise econômica e na crescente desigualdade das sociedades americana e britânica.
Há espaço, aposta, para um renovado apelo dos valores que ajudaram a edificar o Estado de Bem-Estar Social.
Fonte: Folha Online, 25 maio 2010