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“Teologia da Libertação é traidora dos pobres e de sua real dignidade”, diz arcebispo emérito do RJ

Do Gaudium Press, 15 fev 10

O arcebispo emérito da arquidiocese do Rio de Janeiro, Cardeal Eugenio de Araujo Sales, em artigo publicado esta semana no site da arquidiocese, assinala o “apelo urgente” que o Papa Bento XVI endereçou ao episcopado brasileiro que esteve em visita ad limina ao pontífice no ano passado.

Embora esse apelo feito pelo Papa tenha sido dirigido aos bispos dos Regionais 3 e 4 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) durante a visita, o arcebispo emérito avalia que o apelo “não se limitou aos bispos que estavam presentes”, mas, como sempre nessas visitas, o recado do Papa se dirige ao “episcopado inteiro e a toda a Igreja no Brasil”.

De acordo o texto do cardeal, na visita dos bispos brasileiros, o pontífice recordou as circunstâncias prementes que 25 anos atrás exigiam uma clara orientação da Santa Sé no documento “Libertatis Nuntius” que, em sua primeira linha, afirma que o “Evangelho é a mensagem da liberdade e a força da libertação”.

Para Dom Eugenio Salles, daquele documento a Igreja recebia “grande luz”, mas não faltava “a animosidade dos que queriam receber e obscurecer e difamar essa doutrina”.

Bento XVI afirmou, continua Dom Eugenio Sales, com “palavras claras e sempre muito mais convidativas para uma reflexão serena do que repreensivas”, a gravidade da crise provocada por uma teologia que tinha, inicialmente, “motivos ideais, mas que se entregou a princípios enganadores”, a doutrina chamada de Teologia da Libertação.

“O Papa lembrou a gravidade da crise, provocada, também e essencialmente na Igreja no Brasil, por uma teologia que tinha, em seu início, motivos ideais, mas que se entregou a princípios enganadores. Tais rumos doutrinários da Teologia chamavam-se Teologia da Libertação”, observa Dom Eugenio.

Dessa forma, é tarefa de todos os pastores do episcopado brasileiro de acolher a palavra do Papa e se lembrarem da crise provocada na época que tornou quase “impossível o diálogo e a discussão serena”. Por causa disso, recorda Dom Eugenio Sales, a Igreja no Brasil, em alguns lugares, “sofre consequências dolorosas daqueles desvios”.

Dom Eugenio Sales reforça ainda mais as palavras de Bento XVI [que, por sua vez, citou as palavras de João Paulo II] quando recorda sua observação sobre a Teologia da Libertação. Para Bento XVI, a Teologia da Libertação “negligenciava a regra da Fé da Igreja que provém da unidade que o Espírito Santo estabeleceu entre a tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério vivo”.

“Os três não podem subsistir independentes entre si. Por isso, hoje ainda, as sequelas da Teologia da Libertação se mostram essencialmente ao nível da Eclesiologia, ao nível da vida e da união da Igreja. A Igreja continua enfraquecida, em algumas partes, pela rebelião, divisão, dissenso, ofensa e anarquia. Cria-se assim nas vossas comunidades diocesanas grande sofrimento e grave perda de forças vivas”, diz a mensagem de Bento XVI destacada pelo cardeal em seu artigo.

Infelizmente, ressalta o cardeal, certas Teologias da Libertação caíram em um grave unilateralismo. “Para o Evangelho da libertação, é fundamental a libertação do pecado”, assinala. Muitas Teologias da Libertação se distanciaram do “verdadeiro Evangelho libertador”, diz. “Foram identificadas coisas muito boas com as graves questões sociais, culturais, econômicas e políticas, mas já não mostravam seu real enraizamento no Evangelho, embora vagamente citado, e chegaram até a apelar explicitamente à ‘análise marxista'”.

“Devem-se exigir não só palavras retóricas, mas ações que na prática se comprometem com cada pessoa, com cada comunidade e com a história”, afirmou o cardeal.

Tal compromisso não se enraíza na dignidade que Deus dá ao homem e se apresenta Libertadora e, dessa forma, a tal Teologia é, na realidade, “traidora dos pobres e de sua real dignidade”.

Bento XVI sabe, pondera o prelado, que muitos pontos da Teologia da Libertação estão ultrapassados e sabe também que a Igreja no Brasil sobre ainda “devastadoras sequelas nesse desvio doutrinário”.

Ao final, Dom Eugenio de Araujo Sales afirma ser “quase” um juramento a observação feita por Bento XVI ao conclamar os bispos e agentes de Pastoral de todo o Brasil que, “no âmbito dos entes e comunidades eclesiais, o perdão oferecido e acolhido em nome e por amor da Santíssima Trindade, que adoramos em nossos corações, ponha fim à tribulação da querida Igreja que peregrina nas Terras da Santa Cruz”.

Os ‘Padres da Igreja Na América Latina’ segundo Concilium: Mestres na Fé, Profetas e Mártires

Por Claudia Fant, no Portal Adital

Não é nada exagerado comparar vários bispos latinoamericanos da geração do Concílio, de Medellín e de Puebla aos “Padres da Igreja” orientais e ocidentais do IV e V século. Esta comparação é assumida pela prestigiosa revista internacional de teologia Concilium (Editora Queriniana, Itália), que dedica o último número de 2009 ao tema dos “Padres da Igreja na América Latina”, com a convicção de que o ensinamento e o testemunho desses “mestres na fé” não pertençam a um período cronologicamente encerrado”, mas sejam “fontes de inspiração de novos caminhos de seguimento evangélico não somente na América Latina”. Estes novos Padres da Igreja se tornaram elementos fundamentais de referência “pelo ambiente de fé que criaram; pelos estilos e práticas que suscitaram; pela solidariedade que criaram; pelas heranças que deixaram para a sucessiva estação eclesial e teológica”.

Entre as muitas personalidades de bispos que podemos considerar como “Padres” de uma nova Igreja latinoamericana, a escolha dos autores do citado texto de Concilium, Sílvia Scatena, Jon Sobrino e Luiz Carlos Susin – escolha nada fácil como eles mesmos admitem no editorial- caiu em cinco deles:
Helder Camara, cujo centenário de nascimento foi celebrado em 2009 e de cujo exemplo relata, no seu artigo, Luiz Carlos Luz Marques;
Leónidas Proaño, “bispo dos índios”, que, como lembra Giancarlo Collet, “no lugar do hábito eclesiástico vestia o poncho, o vestido dos pobres; e, desta forma, dava um sinal, mostrando com que pessoas ele se identificava;
Sérgio Méndes Arceo, bispo de Cuernavaca, de quem Alícia Puente Lutteroth lembra o caminho episcopal de “conversão permanente”, às fronteiras do pensamento e das práxis sócio religiosas” e sempre do lado dos excluídos (“Me dá medo -dizia- ser cachorro mudo, me toca profundamente a impotência, a frustração, a rebelião diante as estruturas injustas”);
Aloísio Lorscheider, secretário e depois presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e presidente do CELAM (Conselho Episcopal Latinoamericano) de ’76 a ’79, firme adversário da ditadura, mais de uma vez ameaçado de morte e chamado de “bispo vermelho” mas, na verdade, “homem do diálogo”, considerando o diálogo, frisa Tânia Maria Couto Maia, “o aspecto mais importante na construção da comunhão”; e, por último,
Oscar Arnulfo Romero, de quem Jon Sobrino lembra a contribuição à teologia (“ver Deus a partir do pobre e o pobre a partir de Deus”), à cristologia (olhar os lavradores e lavradoras perseguidos e assassinados como o Corpus Christi, e ao povo como “servo sofredor de Jahvé), à eclesiologia (“ser bispo como pastor, não como rei, e muito menos como mercenário”) e o seu jeito específico de traduzir na vida as famosas palavras de Pedro Casaldáliga: “Tudo é relativo menos Deus e a fome”.

Com Medellín ou contra Medellín

Muitos outros bispos, todavia, são lembrados no artigo introdutório de José Comblin, que destaca em todos eles as qualidades próprias dos Padres da Igreja: a “santidade explícita” (só para dar um exemplo, Helder Camara “vivia realmente pobre. Morava na sacristia de uma velha capela dos tempos da Colônia. Não tinha carro, não tinha empregada. Almoçava no bar da esquina, onde almoçam os operários que trabalham naquela área. Ele mesmo abria a porta e atendia a todos os mendigos que por ali passavam”); a fidelidade ao Evangelho com todo o rigor possível; a compreensão profunda aos sinais dos tempos; a veneração que gozavam por parte de todos que os conheceram; a perseguição por parte do poder civil e eclesiástico. “Muitas vezes”, escreve Comblin, “ouvi Dom Proaño, voltando da Conferência Episcopal onde tinha defendido a causa dos índios, dizer ‘Me deixaram sozinho’”.

A todos eles, continua Comblin, o Vaticano II ofereceu a oportunidade de se encontrar e de chegar a uma verdadeira sintonia ao redor da temática da pobreza da Igreja: o “Pacto das Catacumbas da Igreja servidora e pobre”, assinado em 16 de novembro de 1965, nas catacumbas de S. Domitila, por um grupo de 40 bispos (a quem depois se agregaram vários outros) constitui uma das expressões mais altas. “Aqui já se encontra -escreve Comblin- todo o espírito de Medellín. Como em Medellín, os bispos afirmam em primeiro lugar os compromissos que ‘eles mesmos’ irão assumir”.

E é Medellín (a segunda Conferência Geral do Espiscopado Latinoamericano e Caribenho, em 1968) que se constitui no verdadeiro “acontecimento fundador” da nova Igreja latino-americana, embora tenha suas origens, como explica José Oscar Beozzo, numa trajetória cujas raízes se encontram não só no Vaticano II (“quando se estabeleceu o vínculo entre colegialidade e magistério episcopal”), mas também na primeira evangelização no século XVI (“quando o anúncio do evangelho foi vinculado com o compromisso pela justiça”).

“Desde então -afirma Comblin- o mundo se divide em duas opções: com Medellín ou contra Medellín”. Embora, no final, parece que esta segunda opção prevaleceu: “Em Medellín -resume telegraficamente Jon Sobrino- a conversão eclesial aconteceu de maneira audaciosa. Em Puebla manteve-se suficientemente. Em Santo Domingo desapareceu. E em Aparecida só houve um pequeno freio ao retrocesso e se conseguiu alguma melhora”.

Continua Sobrino: “Na situação em que se encontra a Igreja, é importante voltar ao Vaticano II, e quem sabe com bons resultados. Frente à situação em que está o nosso mundo dos pobres, devemos voltar a João XXIII, Lercaro, Himmer e à Igreja dos pobres: só no Concílio encontramos tais sinais. Mas frente à situação de um mundo de vítimas, precisamos das referências de monsenhor Romero e da Igreja dos mártires”.

A patrística latinoamericana

Não existem, porém, somente os “Padres”: é preciso lembrar também as “Madres”, aquelas mulheres cristãs que tomaram sobre si, como fala o artigo de Ana Maria Bidegain e Maria Clara Bingemer, “a maior parte das tarefas no trabalho eclesial na América Latina”. E tanto mais é preciso lembrá-las em quanto a natureza mesma do pensamento teológico e do trabalho eclesial delas -“intersubjetivo, relacional, dialógico e comunitário”- favorece “uma certa tendência ao anonimato”, contribuindo (apesar da existência de grandes personalidades “com vozes claras, fortes e profundas”) à “grande disparidade entre o trabalho que desenvolveram e desenvolvem as mulheres na Igreja e a falta de reconhecimento dado a elas como construtoras da comunidade eclesial”.

Todavia, como esclarece o artigo, a contribuição das mulheres à teologia latinoamericana não é nada secundário: Se a Teologia da Libertação, como explicou Ivone Gebara, não chegou a provocar uma mudança de visão “da antropologia e da cosmologia patriarcais sobre as quais se baseia o cristianismo”, foi tarefa das teólogas colocar em discussão o conjunto da teologia dominante, patriarcal e machista. Recolocaram em discussão não só o modo de pensar, o dado da revelação e o texto das Escrituras, mas também o modo “de pensar o mundo, as relações das pessoas com a natureza e com a divindade”.

[Tradução: Lino Allegri]

* Agencia de Stampa (Agência de Imprensa)
Adista*