Somali Waris Dirie escreveu livro que inspirou filme em cartaz esta semana. Em todo o mundo, até 140 milhões de mulheres sofrem com mutilação.
As histórias são parecidas: sem aviso, as meninas são levadas pelas mães a um local ermo, onde encontram uma espécie de parteira que as espera com uma navalha. Sem qualquer anestesia ou assepsia, a mulher abre as pernas das garotas – muitas vezes, crianças de menos de dez anos – e corta a região genital, num procedimento que varia da retirada do clitóris ao corte dos grandes lábios e à infibulação (fechamento parcial do orifÃcio genital).
Com Waris Dirie não foi diferente. “Desmaiei muitas vezes. É impossÃvel descrever a dor que se sente”, disse em entrevista ao G1 a hoje modelo e ativista contra a mutilação genital feminina. Dirie nasceu num vilarejo da Somália e foi circuncisada aos cinco anos.
Após conseguir fugir de um casamento arranjado por seu pai aos 13 anos, ela foi parar em Londres, onde chamou a atenção de um fotógrafo. Dirie se tornou modelo internacional e uma ferrenha ativista contra a circuncisão feminina. Sua história, contada no livro “Flor do deserto”, virou filme com o mesmo nome – em cartaz em São Paulo.
“É uma vergonha que uma tortura bárbara, cruel e inútil continue a existir no século XXI”. Dirie diz que sempre sentiu que aquilo não estava certo e quando se tornou uma ‘supermodelo’ pode começar a luta contra a prática. Aos 45 anos, ela é fundadora de uma organização que leva seu nome e embaixadora da ONU contra a mutilação feminina.
Ela mora com a famÃlia em uma casa alugada na Etiópia e disse que está tentando convencer a cunhada a não circuncisar as filhas. “Estou confrontando a mutilação na minha própria famÃlia. Meu irmão tem seis meninas, todas menores de idade e que vivem no deserto. Minha cunhada quer mutilá-las. Por causa disso eu estou tentando trazer as meninas para um lugar seguro. Isso tira meu sono todas as noites.”
- mapa mutilição genital feminia
Ocorrências
Estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que entre 100 e 140 milhões de meninas e mulheres vivem hoje sob consequências da mutilação – a maioria na Ãfrica. A organização tem uma campanha contra a prática, que considera prejudicial à saúde da mulher e uma violação dos direitos humanos.
A mutilação ocorre em várias partes do mundo, mas tem registro mais frequente no leste, no oeste e no nordeste da Ãfrica e em comunidades de imigrantes nos EUA e Europa. Em sete paÃses africanos – entre eles Somália, Etiópia e Mali – a prevalência da mutilação é em 85% das mulheres.
Um estudo da ONG Humans Rights Watch de junho deste ano (clique para ler a pesquisa, em inglês) mostra que, no Curdistão iraquiano, 40,7% das meninas e mulheres de 11 a 24 anos passaram por mutilação.
Uma declaração da OMS de 2008 contra a prática diz que a mutilação “é uma manifestação de desigualdade de gênero, […] uma forma de controle social sobre a mulher” e que é geralmente apoiada tanto por homens quanto por mulheres. Segundo o texto, algumas comunidades entendem a circuncisão como artifÃcio para reprimir o desejo sexual, garantir a fidelidade conjugal e manter as jovens “limpas” e “belas”.
“Não tem nada a ver com religião. Todas as meninas que são vÃtimas de FGM [mutilação genital feminina, na sigla em inglês] também são vÃtimas do casamento forçado. A maioria é vendida quando criança a homens mais velhos. Eles não pagariam por uma noiva que não é mutilada. É uma vergonha para nossas comunidades, para os paÃses que permitem a prática. Os homens temem a sexualidade feminina, essa é a verdade”, explica Dirie.
E ela não é a única a falar abertamente sobre o assunto. A médica egÃpcia Nawal El Saadawi, também circuncidada, chegou a ser presa em seu Egito natal após falar do tema e fazer campanha contra a prática. Sua história foi contada no livro “A daughter of Isis” (‘Filha de Isis’), e em outros em que aborda a questão feminina nos paÃses do Oriente Médio.
Danos à saúde
A OMS divide a prática em quatro tipos: o tipo 1 é a remoção total ou parcial do clitóris; o tipo 2 é a retirada do clitóris e dos pequenos lábios; o terceiro tipo envolve o estreitamento do orifÃcio vaginal pela criação de uma membrana selante, corte ou aposição dos pequenos lábios e/ou dos grandes lábios (a chamada infibulação); o tipo 4 é qualquer outra forma de intervenção por razão não médica. Os primeiros dois tipos correspondem a 90% das ocorrências de mutilação, segundo a OMS.
De acordo com a ginecologista da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) Carolina Ambrogini, a circuncisão traz riscos imediatos, como hemorragia e infecção. “Não temos registros dessa prática no Brasil. A vagina é uma região muito vascularizada, e há perigo de sangramento intenso, infecção e até de morte. As consequências a longo prazo são um possÃvel trauma psicológico e a perda do prazer na relação sexual.”
Os casos de infibulação também trazem riscos durante o parto: segundo um estudo da OMS, a mortalidade de bebês é 55% maior em mulheres que sofreram procedimentos para redução do orifÃcio vaginal.
Polêmica nos EUA
No começo do mês de junho, a Academia Americana de Pediatria (AAP) dos EUA emitiu uma declaração indicando que talvez fosse melhor que os médicos fossem autorizados a realizar uma forma leve de circuncisão feminina nas clÃnicas americanas do que deixar as famÃlias enviarem as filhas para os paÃses de origem que realizam o procedimento de maneira rudimentar e sem segurança. O texto gerou polêmica e muitas crÃticas de organizações de direitos humanos – a mutilação genital feminina é proibida por lei nos EUA – e foi retirado pela AAP.
Em entrevista ao G1 por e-mail, a presidente da AAP, Judith Palfrey, disse que a AAP “é contra todas as formas de mutilação e nunca recomendou a prática. Uma confusão foi gerada a partir de uma discussão acadêmica”. A relatora da declaração, Dena Davis, disse que médicos acreditam que algumas meninas estão sendo levadas a paÃses africanos para a realização da prática, embora não haja dados sobre isso. “O objetivo do texto era educar os médicos para tentar orientar as famÃlias que pedem pelo procedimento.”
A última declaração da OMS contra a prática afirma que o trabalho junto às comunidades está tentando reverter o costume e tem obtido sucesso em algumas regiões, apesar da lenta taxa de redução.
“A prática continua porque o mundo não toma nenhuma atitude séria contra isso. nem a ONU nem nenhum outro paÃs do mundo. Encontrei muitos polÃticos. E ouvi muito blábláblá. Mas não vejo nenhuma atitude séria para acabar com esse crime”, protesta Dirie.
Fonte: Portal G1, 3 jul 2010