Um monumento de ficção e história

Com 2.536 páginas, em 2 volumes, sai enfim no País, pela 1ª vez em tradução direta do russo, ‘Guerra e Paz’, a obra máxima de Tolstoi

[Aurora F. Bernardini, Estadão, 19 nov 11] Apesar de o próprio Liev Tolstói (1828- 1910) ter colocado Anna Kariênina (1875) em primeiro lugar entre seus favoritos, é a narrativa épica de Guerra e Paz (1863-69) seu romance indiscutivelmente mais completo e mais representativo. Não apenas pela extensão – são mais de 2 mil páginas nas quais se alternam os episódios que dão nome ao romance propriamente dito e que se desdobram num espaço de tempo que vai de 1805 (batalha de Austerlitz, entre os Exércitos de Napoleão e os da Rússia e da Áustria) até 1820 (consolidação da paz na Rússia e da vida das famílias envolvidas no romance), além de um adendo que constitui a parte 2 do epílogo, com reflexos histórico-filosóficas, muitas das quais Tolstói haveria de modificar na velhice -, mas também pelo uso admirável dos procedimentos literários que caracterizam sua peculiar arte narrativa. Mais: pelo desenvolvimento das principais teses de seu legado.

Em 1863, quando Tolstói começou a redigir o romance, ele já era um escritor famoso e um homem marcado pelas experiências mais profundas de sua vida e de sua época, ambas conturbadas. Vejamos, rapidamente, o porquê das atribulações.

Nascido em Iásnaia Poliana, a propriedade da família na região de Tula, não longe de Moscou e hoje transformada em museu, o escritor perdeu a mãe aos 2 anos e, aos 7, o pai a quem amava, um homem jovial e de boa índole, de acordo com suas recordações, cuja morte ficou pouco esclarecida. Oficialmente provocada por infarto, poderia ter sido obra de servos (segundo a biografia Liev Tolstói de V. Chkóvski), pois uma vultosa quantia de dinheiro levada pelo pai a Tula jamais foi encontrada.

Durante seus primeiros anos, Tolstói passou a ser cuidado consecutivamente por duas tias até 1844, quando, deixando para trás sua “infância” – título de sua primeira grande novela, logo seguida por Adolescência e Juventude – se inscreveu na Universidade de Kazan, na Faculdade de Línguas Orientais, curso que não concluiu – embora, graças a suas famosas técnicas de autodidatismo, tenha aprendido várias línguas. Não terminou também a Faculdade de Direito, para a qual se transferiu no ano de 1847, em plena fase de desregramento juvenil: dívidas pesadas de jogo, bebida, bordéis e, em São Petersburgo, intensa e inconsistente vida social.

Confuso, sem saber que rumo tomar, Tolstói acabaria voltando para Iásnaia Poliana, de cujo funcionamento precário pretendia se incumbir. No entanto, as frequentes viagens a Moscou e São Petersburgo e o contato com amigos de péssima reputação o desviaram do propósito. Finalmente, em 1851, seguindo o exemplo do irmão mais velho, Nikolai, que era oficial e que fora visitá-lo em Iásnaia Poliana, alistou-se no Exército e partiu com ele para as montanhas do Cáucaso e, mais tarde, para a Crimeia. Foram cinco anos de impressões indeléveis e de experiências fundamentais, como a da guerra da Crimeia, em que Liev, afiado pela vasta correspondência que mantinha e pela escritura de seus diários, decidiu experimentar-se como escritor. Ao seu primeiro livro Infância (1851-52) de imediato sucesso, seguiram outros de grande valor literário, como os Contos de Sebastópol (1855-56), Três Mortes (1858), Felicidade Conjugal (1859), Kholstomer (1860-63). Em 1860 seu irmão Nikolai morreu de tuberculose e Tolstói, que já abandonara a carreira militar em 1856; que já tentara em vão emancipar três centenas de mujiques – e devido aos altos encargos previstos pela lei czarista para os servos nessa condição, estes lhe devolveram a alforria -; que já viajara pela Europa, sempre vítima de recaídas nos vícios que o assolam, encontrava-se novamente confuso e desnorteado. Assim ele escreve esta fase em um de seus diários:

“Eu provoquei a morte de homens na guerra, duelei e sacrifiquei adversários, desperdicei no jogo a substância extorquida do suor dos mujiques, puni-os cruelmente, farreei com mulheres e enganei a outros (…) no entanto, era tido por meus pares como um homem relativamente moral. Esta foi minha vida, por dez anos”.

Em 1861 refugiou-se novamente em Iásnaia Poliana, onde havia aberto uma escola para os filhos dos camponeses, para os quais escreveria as famosas Cartilhas e, em 1862, casou-se com Sófia Andréievna Behrs, de 19 anos, a quem, num gesto de alta confiança e risco, havia dado para ler seus diários íntimos, e com quem teve 13 filhos, durante uma relação de colaboração intensa, apesar dos altos e baixos, que durou até a morte do escritor.

O que importa assinalar a esta altura é que, na redação de Guerra e Paz, que começou um ano após o casamento e concluiu-se seis anos depois, o papel de Sófia foi fundamental. Não apenas pelo fato notório de ela ter recopiado as provas do livro sete vezes, ter organizado os capítulos. É a Sófia que se deve o fato de o ficcionista ter relegado a parte não literária do romance à II seção do epílogo, exemplo de como, segundo as reminiscências de Górki, descritas em 3 Russos e Como me Tornei um Escritor (Martins Fontes), o gênio sucumbia “a essa sua obstinada e despótica obsessão de transformar a vida do conde Liev Nikoláievitch Tolstói na vida do Santo Padre, nosso beatífico boiardo Liev”.

À Sófia se atribui ainda a influência na caracterização das muitas personagens femininas do romance, mormente no que se refere à sua psicologia – conforme testemunho de vários autores, entre os quais, de novo, Maksim Górki. Ela inclusive serviu de modelo, em muitos aspectos, para a criação de Natacha Rostova, a heroína do romance, o tipo de mulher quase infantil, cheia de vida e anti-intelectual que Tolstói mais apreciava e que repetiu na Kitty de Anna Kariênina. A esta última, que dá nome ao romance, como às mulheres mais sofisticadas de seus escritos, ele hostilizava. No dizer de Górki: “Será essa a hostilidade do homem que não soube haurir tanta felicidade quanta poderia, ou a hostilidade do espírito contra ‘os humilhantes ímpetos da carne’?” Ímpetos esses, diga-se de passagem, que o conde, que se considerava um libertino por natureza, haveria de fustigar em muitos de seus livros, como em Padre Sérgio (1890-1898) e em Sonata a Kreutzer (1889-90), nos quais acabava propondo a castidade como estado ao qual o ser humano deve aspirar.

Quanto aos personagens masculinos de Guerra e Paz – todos actantes ou testemunhas da ação -, a trama, sempre dinâmica, constrói-se em volta de dois deles, históricos: Napoleão Bonaparte, comandante do Exército francês, quando de sua invasão da Rússia em 1812, durante o reinado do czar Alexandre I, e Mikhail Illárionovitch Kutúzov, líder do Exército russo, o vencedor, que, em suas retiradas, se valeu do proverbial “general Inverno”, e de sua estratégia paciente e sub-reptícia, também chamada “oriental”.

Mas há uma série de outras figuras “reais” em Guerra e Paz, baseadas em pessoas da família ou das relações de Tolstói. Os condes Natália e Iliá Rostov, pais de Natacha, retratariam seus próprios avós; o conde Pierre Bezúkhov, personagem central, seria muitas vezes portador das crenças e contradições do próprio autor. Outros seriam inspirados por figuras de conhecidos: o príncipe Andrei Bolkónski, cínico e filosófico mas devotado aide de camp do general Kutúzov, traído em seu amor de viúvo pela adolescente Natacha, que se deixou seduzir pelo belo e amoral Anatol Karáguin, irmão de Hélène, a igualmente devassa primeira mulher de Pierre; Nikolai Rostov, irmão de Natacha, que acaba casando com a rica e ascética Maria Bolkónskaia, irmã de André, e reconstituindo as posses da família, uma vez finda a guerra. Entre os não nobres destaca-se Platon Karatáiev, o protótipo do mujique russo, segundo Tolstói, íntegro, leal e inspirador, a quem Pierre encontra entre os prisioneiros dos franceses, quando ele mesmo é capturado durante a sua tentativa de assassinar Napoleão.

Pesquisas históricas, testemunhais, experiências da vida no Exército, na guerra, nos salões da aristocracia, no campo entre os mujiques, viagens ao estrangeiro, estudos e entrevistas com filósofos, sociólogos, pedagogos, sua própria prática como senhor de terras, agricultor, artesão (Tolstói gabava-se de fazer suas próprias botas), professor e autodidata – tudo isso se funde no enredo nunca estático, sempre interessante, do romance.

O processo de confrontação de pontos de vista ao qual Tolstói submete seus personagens principais é muito enriquecedor, embora interessado (há sempre um deles que o autor privilegia). Napoleão, para citar um exemplo – cuja “genialidade” é enaltecida por tantos entusiastas, entre os quais Pierre, quando ainda jovem e imaturo, no embate que inicia o livro no salão de Anna Pávlovna -, é submetido, conforme lembra o tradutor no prefácio, à análise que dele faz um servo, capturado pelos franceses. Nem o general Kutúzov escapa disso, apesar de vitorioso no fim: seus discutidos retrocessos e seu desconhecimento do desenrolar dos combates desiludem muito rapidamente seu ardoroso aide de camp, o príncipe Andrei.

Escrito numa linguagem à qual o tradutor soube ser fiel, ora requintada e entremeada por frases em francês como a da nobreza, ora simples e direta como a do povo, dos servos, dos soldados, mas sempre clara – ” assassina” , como a definirá Górki, que conheceu Tolstói em 1900 -, o livro é um manancial de recursos de estilo. Alguns, como foi assinalado, por exemplo, por Boris Schnaiderman, até mesmo cinematográficos: “De repente, nos grandes músculos e rugas do rosto do conde, surgiu um tremor. O tremor ficou mais forte, a boca bonita se encolheu (só então Pierre entendeu a que ponto o pai estava perto da morte), ouviu-se da boca encolhida um som obscuro e rouco”. E aí comparecem um braço desobediente, uma cabeça moribunda, um sorriso frouxo, etc. a comandarem a ação do turno da vigília. É o famoso uso da metonímia, fator integrante do tão estudado estranhamento em Liev Tolstói.

Quanto às teses, algumas podem ser discutíveis (como a de Sonata a Kreutzer, por exemplo), mas são sempre atuais e magistralmente defendidas. Entre elas, uma vez a paz restabelecida, está justamente a tese ligada à questão agrária que, como senhor de terras, tanto interessava a Tolstói. Os propósitos e as práticas que animam Nikolai Rostov e a princesa Mária Bolskónskaia, no campo onde residem, são os mesmos, comprovadamente eficientes, que animarão Levin e Kitty, dez anos mais, em Anna Kariênina; apesar das leituras dos mais variados métodos e opúsculos importados, só há um jeito que funciona para tratar das terras e dos mujiques por lá: o cuidado e a tradição que caracterizam o jeito russo. Afinal, como diz a bondosa e feia princesa Mária ao irmão Andrei, repetindo as palavras de Sterne: “Amamos as pessoas menos pelo bem que elas nos fazem do que pelo bem que fazemos a elas”.

AURORA F. BERNARDINI É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, TRADUTORA E ENSAÍSTA

Edição traz verbetes sobre personagens e téra debate em SP
A primeira tradução de Guerra e Paz no País feita diretamente do russo sai numa edição de 7 mil exemplares, em dois volumes, capa de tecido, miolo em papel-bíblia e projeto gráfico especial. Mapas, verbetes sobres personagens e fatos históricos que aparecem na obra e sugestões de leituras completam a edição. Para marcar o lançamento do romance, a editora Cosac Naify realizará, no dia 1º de dezembro, das 19h30 às 22h, no Itaú Cultural (Av. Paulista 149, São Paulo, tel. 2168-1777), um debate em torno da obra e de seu autor. Na mesa estarão o tradutor Rubens Figueiredo – que dedicou três anos ao trabalho (leia texto na página ao lado) -, Laura de Mello e Souza, historiadora e professora de história moderna da Universidade de São Paulo, e Elena Vássina, professora de literatura russa também na USP. A mediação estará a cargo do jornalista Daniel Benevides, coordenador de comunicação da editora.

GUERRA E PAZ
Autor: Liev Tolstói
Tradução: Rubens Figueiredo
Editora: Cosac Naify
(2.536 págs., R$ 198)

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