Ao unirem três etnias da ex-Iugoslávia, protestos retomam projeto emancipatória e revelam: é possÃvel enfrentar onda de fundamentalismo que atravessa o planeta.
Semana passada, cidades queimavam,[1] na Bósnia-Herzegovina. Tudo começou em Tuzla, cidade de maioria muçulmana. Os protestos então se espalharam até a capital, Sarajevo, e Zenica, mas também até Mostar, onde vive largo segmento da população croata, e Banja Luka, capital da parte sérvia da Bósnia. Milhares de manifestantes furiosos ocuparam e incendiaram prédios públicos. Embora a situação já tenha se acalmado, persiste no ar uma atmosfera de alta tensão.
[Guardian, tradução Vila Vudu, no Outras Palavras, 18 fev 14] Os eventos fizeram surgir teorias da conspiração (por exemplo, que o governo sérvio teria organizado os protestos para derrubar o governo bósnio), mas é preciso ignorá-las firmemente, porque, haja o que houver por trás das manifestações, o desespero dos manifestantes é autêntico. Fica-se tentado a parafrasear aqui a famosa frase de Mao Tse Tung: há caos na Bósnia, a situação é excelente![2]
Por quê? Porque as exigências dos manifestantes são as mais simples que há – emprego, uma chance de vida decente e o fim da corrupção – mas mobilizaram pessoas na Bósnia, paÃs que, nas últimas décadas, tornou-se sinônimo de feroz limpeza étnica.
Antes disso, os únicos protestos de massa na Bósnia e em outros estados pós-Iugoslávia tinham a ver com paixões étnicas ou religiosas. Em meados de 2013, dois protestos públicos foram organizados na Croácia, paÃs mergulhado em profunda crise econômica, com desemprego alto e profundo sentimento de desespero: os sindicatos uniram-se para organizar uma manifestação em apoio aos direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que nacionalistas de direita[3] iniciavam um movimento de protesto contra o uso do alfabeto cirÃlico em prédios públicos em cidades de minoria sérvia. A primeira iniciativa levou umas duas centenas de pessoas para uma praça em Zagreb; a segunda mobilizou centenas de milhares, como, antes, acontecera num movimento fundamentalista contra o casamento de homossexuais.[4]
A Croácia está longe de ser exceção: dos Bálcãs à Escandinávia, dos EUA a Israel, da Ãfrica Central à Ãndia, está começando uma nova Idade das Trevas, com paixões étnicas e religiosas explodindo, e com os valores das Luzes retrocedendo. Essas paixões sempre arderam por trás de tudo, mas a novidade é que, hoje, aparecem desavergonhadamente expostas.
Assim sendo, o que fazer? Liberais dominantes nos dizem que, quando os valores básicos da democracia são ameaçados por fundamentalistas étnicos ou religiosos, temos todos de nos unir numa agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que possa ser salvo e deixar de lado todos os sonhos de transformação social mais radical. Nossa tarefa, dizem eles, é clara: temos de escolher entre a liberdade liberal e a opressão fundamentalista.
Porém, quando nos fazem, em tom triunfalista, perguntas (exclusivamente retóricas!) como “Você deseja que as mulheres sejam excluÃdas da vida pública?†ou “Você deseja que todos os que critiquem a religião sejam condenados à morte?â€, o que mais nos deve fazer desconfiar da pergunta é a obviedade da resposta.
O problema aà é que esse universalismo liberal simplório já perdeu a inocência, há muito tempo. O conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é, na verdade, um falso conflito – um cÃrculo vicioso e viciado no qual os dois polos pressupõem-se e geram-se mutuamente, um o outro.
O que Max Horkheimer[5] disse sobre o fascismo e o capitalismo lá nos anos 1930s (que os que não querem falar criticamente sobre o capitalismo devem também calar sobre o fascismo) pode aplicar-se ao fundamentalismo de hoje: os que não querem falar criticamente sobre a democracia liberal devem também calar a boca sobre o fundamentalismo religioso.
Reagindo contra caracterizar-se o marxismo como “o Islã do século 20â€, Jean-Pierre Taguieff escreveu que o Islã está em vias de mostrar-se como o “marxismo do século 20†para prolongar o violento anticapitalismo do comunismo, depois do declÃnio do comunismo.
Mas as recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam, pode-se dizer, o antigo insight de Walter Benjamin, de que “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassadaâ€. O crescimento do fascismo é, em outras palavras, o fracasso da esquerda e, simultaneamente, prova de que subsiste um potencial revolucionário, uma insatisfação, que a esquerda não é capaz de mobilizar. E não se pode dizer exatamente a mesma coisa do hoje chamado “islamo-fascismoâ€? O surgimento do islamismo radical não é perfeito correlato do desaparecimento da esquerda secular nos paÃses muçulmanos?
Quando o Afeganistão é apresentado como paÃs fundamentalista islamista “tÃpicoâ€, quem ainda lembra que, há 40 anos, foi o paÃs de mais forte tradição secular, incluindo um poderoso Partido Comunista que chegou ao poder no Afeganistão, independente da União Soviética?
Esse é o contexto no qual se tem de compreender os recentes eventos na Bósnia. Numa das fotos dos protestos, veem-se os manifestantes exibindo três bandeiras lado a lado: da Bósnia, da Sérvia e da Croácia, mostrando o desejo de ignorar todas as diferenças étnicas. Para resumir, temos aqui uma rebelião contra elites nacionalistas: o povo da Bósnia afinal compreendeu quem é o seu verdadeiro inimigo: não outros grupos étnicos, mas os seus próprios “representantes†polÃticos que fingem protegê-los contra os demais. É como se o velho e tantas vezes mal usado lema titoÃsta[6] da “fraternidade e unidade†das nações iugoslavas ganhasse nova atualidade.
Um dos alvos dos manifestantes era o governo da União Europeia que supervisiona o estado bósnio, forçando a paz entre as três nações e oferecendo considerável ajuda financeira para ajudar no funcionamento do Estado. Pode parecer estranho, porque os objetivos dos manifestantes são, nominalmente, os mesmos objetivos de Bruxelas: prosperidade e o fim das tensões étnicas e da corrupção.
Contudo, o modo como a União Europeia realmente governa a Bósnia cria divisões: a União Europeia só vê, como suas parceiras privilegiadas, as elites nacionalistas, entre as quais faz uma mediação.
O que as explosões na Bósnia confirmam é que ninguém jamais conseguirá superar paixões étnicas impondo a elas uma agenda liberal: o que uniu os manifestantes foi uma mesma radical exigência de justiça.
O passo seguinte e mais difÃcil será organizar os protestos num novo movimento social que ignore as divisões étnicas; e organizar novos protestos – já imaginaram uma cena, com bósnios e sérvios furiosos, reunidos num comÃcio conjunto, em Sarajevo?
Ainda que os protestos percam gradualmente a força, ainda assim permanecerão como uma fagulha de esperança, como soldados inimigos que se abraçavam nas trincheiras, na primeira guerra mundial. Eventos autenticamente emancipatórios sempre incluem ignorar identidades.
E vale o mesmo para a recente visita de duas representantes do movimento Pussy Riot a New York: num grande show de gala foram apresentadas por Madonna, na presença de Bob Geldof, Richard Gere, etc., toda a gangue dos direitos humanos de sempre. Deveriam ali, isso sim, manifestar solidariedade a Snowden, para mostrar que o Pussy Riot e Snowden são parte do mesmo movimento global. Sem esses gestos que aproximem o que, na nossa experiência ideológica diária, parecem ser coisas incompatÃveis (muçulmanos, sérvios e croatas na Bósnia; secularistas turcos e muçulmanos anticapitalistas na Turquia, etc.), os movimentos de protesto sempre serão manipulados por alguma superpotência, em sua luta contra outra.
[1]Â http://www.theguardian.com/
[2] A citação, atribuÃda a Mao, é “Há grande caos sob os céus – a situação é excelente†(de http://beijingcream.com/week-
[3]Â http://m.aljazeera.com/story/
[4]Â http://www.theguardian.com/
[5]Â http://www.theguardian.com/
[6] Referência a Josip Broz Tito (sobre ele, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/