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Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos? ~ Eduardo Galeano

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“Este texto do Galeano foi publicado originalmente em Espanhol, em Jan 2009. Infelizmente, continua atual e, pior, a situação só se agrava. Que sirva para reflexão e ação”. JRMP

Para justificar-se, o terrorismo de estado fabrica terroristas: semeia ódio e colhe pretextos. Tudo indica que esta carnificina de Gaza, que segundo seus autores quer acabar com os terroristas, acabará por multiplicá-los.

Desde 1948, os palestinos vivem condenados à humilhação perpétua. Não podem nem respirar sem permissão. Perderam sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Nem sequer têm direito a eleger seus governantes. Quando votam em quem não devem votar são castigados. Gaza está sendo castigada. Converteu-se em uma armadilha sem saída, desde que o Hamas ganhou limpamente as eleições em 2006. Algo parecido havia ocorrido em 1932, quando o Partido Comunista triunfou nas eleições de El Salvador. Banhados em sangue, os salvadorenhos expiaram sua má conduta e, desde então, viveram submetidos a ditaduras militares. A democracia é um luxo que nem todos merecem.

São filhos da impotência os foguetes caseiros que os militantes do Hamas, encurralados em Gaza, disparam com desajeitada pontaria sobre as terras que foram palestinas e que a ocupação israelense usurpou. E o desespero, à margem da loucura suicida, é a mãe das bravatas que negam o direito à existência de Israel, gritos sem nenhuma eficácia, enquanto a muito eficaz guerra de extermínio está negando, há muitos anos, o direito à existência da Palestina.

Já resta pouca Palestina. Passo a passo, Israel está apagando-a do mapa. Os colonos invadem, e atrás deles os soldados vão corrigindo a fronteira. As balas sacralizam a pilhagem, em legítima defesa.

Não há guerra agressiva que não diga ser guerra defensiva. Hitler invadiu a Polônia para evitar que a Polônia invadisse a Alemanha. Bush invadiu o Iraque para evitar que o Iraque invadisse o mundo. Em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina, e os almoços seguem. O apetite devorador se justifica pelos títulos de propriedade que a Bíblia outorgou, pelos dois mil anos de perseguição que o povo judeu sofreu, e pelo pânico que geram os palestinos à espreita.

Israel é o país que jamais cumpre as recomendações nem as resoluções das Nações Unidas, que nunca acata as sentenças dos tribunais internacionais, que burla as leis internacionais, e é também o único país que legalizou a tortura de prisioneiros.

Quem lhe deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza? O governo espanhol não conseguiu bombardear impunemente ao País Basco para acabar com o ETA, nem o governo britânico pôde arrasar a Irlanda para liquidar o IRA. Por acaso a tragédia do Holocausto implica uma apólice de eterna impunidade? Ou essa luz verde provém da potência manda chuva que tem em Israel o mais incondicional de seus vassalos?

O exército israelense, o mais moderno e sofisticado mundo, sabe a quem mata. Não mata por engano. Mata por horror. As vítimas civis são chamadas de “danos colaterais”, segundo o dicionário de outras guerras imperiais. Em Gaza, de cada dez “danos colaterais”, três são crianças. E somam aos milhares os mutilados, vítimas da tecnologia do esquartejamento humano, que a indústria militar está ensaiando com êxito nesta operação de limpeza étnica.

E como sempre, sempre o mesmo: em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte outro bombardeio, a cargo dos meios massivos de manipulação, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto quanto cem vidas palestinas. E esses meios também nos convidam a acreditar que são humanitárias as duzentas bombas atômicas de Israel, e que uma potência nuclear chamada Irã foi a que aniquilou Hiroshima e Nagasaki.

A chamada “comunidade internacional” existe? É algo mais que um clube de mercadores, banqueiros e guerreiros? É algo mais que o nome artístico que os Estados Unidos adotam quando fazem teatro?

Diante da tragédia de Gaza, a hipocrisia mundial se ilumina uma vez mais. Como sempre, a indiferença, os discursos vazios, as declarações ocas, as declamações altissonantes, as posturas ambíguas, rendem tributo à sagrada impunidade.

Diante da tragédia de Gaza, os países árabes lavam as mãos. Como sempre. E como sempre, os países europeus esfregam as mãos. A velha Europa, tão capaz de beleza e de perversidade, derrama alguma que outra lágrima, enquanto secretamente celebra esta jogada de mestre. Porque a caçada de judeus foi sempre um costume europeu, mas há meio século essa dívida histórica está sendo cobrada dos palestinos, que também são semitas e que nunca foram, nem são, antissemitas. Eles estão pagando, com sangue constante e sonoro, uma conta alheia.

“Este artigo é dedicado a meus amigos judeus assassinados pelas ditaduras latino americanas que Israel assessorou”. Eduardo Galeano

Crianças sírias passam por sofrimento ‘indescritível’, diz ONU

siria criancasUm novo relatório mostra que crianças têm passado por sofrimentos “indescritíveis e inaceitáveis” durante a guerra civil na Síria, informou nesta quarta-feira o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

[BBC Brasil, 5 fev 2014] Há relatos de crianças vítimas de abusos sexuais e tortura após serem detidas pelo governo; e os rebeldes – inclusive o Exército pela Libertação da Síria, apoiado pelo Ocidente – são acusados de recrutar crianças para combater o regime.

O relatório da ONU estima que mais de 10 mil crianças tenham sido mortas nos três anos de conflito. Outras milhares foram feridas ou estão desaparecidas.

Não é a primeira vez que a ONU acusa governo e rebeldes sírios de violações contra direitos infantis, mas este é o primeiro relatório a ser apresentado ao Conselho de Segurança da entidade.

A representante especial da ONU para crianças em conflitos armados, Leila Zerrougui, deve apresentar o relatório a diplomatas na semana que vem.

Estupros

O relatório, que abrange período de 1º de março de 2011 a 15 de novembro de 2013, aponta que no início do levante contra o presidente Bashar al-Assad as violações eram cometidas sobretudo pelo Exército sírio, pelos serviços de inteligência e por milícias pró-governo.

Depois, à medida que o conflito se intensificou, a oposição armada se tornou mais organizada e cresceram as provas de que crimes contra crianças foram cometidos também pelos rebeldes.

Segundo o relatório, muitas delas foram detidas como adultos, maltratadas e torturadas pelo regime, sobretudo entre 2011 e 2012.

Testemunhas disseram que os abusos, contra meninos e meninas, incluíam “espancamentos com cabos de metal, chicotes e bastões; choques elétricos, inclusive nos órgãos genitais; unhas sendo arrancadas; estupros ou ameaças de estupro; fingir que vai matar a criança (como forma de tortura psicológica); queimaduras de cigarro; confinamento em solitárias; e exposição à tortura de parentes”.

Investigadores documentaram relatos de violência sexual perpetrada por soldados e oficiais de inteligência contra crianças suspeitas de serem ligadas à oposição.

Segundo testemunhas, a violência sexual foi usada para humilhar, forçar confissões ou pressionar um parente a se render.

Também houve relatos de estupros que teriam sido cometidos por rebeldes, mas os investigadores não conseguiram ir à fundo nas acusações.

Na semana passada, o vice-chanceler sírio, Faisal Mekdad, negou que o governo tivesse detido crianças e acusou rebeldes de sequestrar e matar menores.

Soldados mirins

O relatório da ONU também destaca o recrutamento de meninos de 12 a 17 anos, que aprenderam a usar armas para combater no conflito ou trabalhar em postos de checagem.

“Entrevistas com crianças e seus parentes indicam que a perda de familiares, a mobilização política e a pressão de amigos, familiares e comunidades contribuíram para o envolvimento de crianças com grupos associados ao Exército pela Libertação da Síria”, diz o texto. “Muitos meninos sentiram que era seu dever se unir à oposição.”

Um porta-voz dos rebeldes disse ao New York Times que seus integrantes têm de ter ao menos 18 anos, mas admitiu a possibilidade de alguns grupos recrutarem menores de idade.

O relatório afirma também que crianças foram usadas como escudos humanos e alvejadas durante protestos, em ataques aéreos, terrestres e de armas químicas.

Além disso, há suspeitas de que as forças rebeldes tenham promovido execuções primárias.

Ban instou os dois lados do conflito a proteger e preservar os direitos das crianças.

Em meio à violência, refugiados africanos tentam nova vida no Brasil

african refugeeCongoleses, senegaleses e guineenses fogem de guerras e conflitos nos seus países. Até encontrarem o apoio de organizações filantrópicas, passam fome, frio e ficam expostos a abusos nas ruas de São Paulo.

Maria (*) fecha os olhos e canta para lembrar de seu país. Ela está na recepção de uma instituição católica em São Paulo, aguardando cobertor e cesta básica, mas sente-se ao lado do marido e dos filhos em Bukavu, sua cidade-natal.

[Karina Gomes, DW, 10 jan 2013] A guerra a fez fugir da República Democrática do Congo para o Brasil. Sozinha e sem notícias da família, ela aguarda ser reconhecida como refugiada no país, assim como outros 5 mil solicitantes de 70 nacionalidades.

Ela não sabe onde está o marido nem os dois filhos, um de 2 e outro de 8 anos. “Eu fui para o trabalho e o meu marido ficou em nossa casa, no Congo. Começou a guerra e eu fugi por uma estrada. Meu marido e meus filhos fugiram em outra direção. Eu não sei se estão vivos. Não tenho qualquer informação.”

Amigos de Maria a ajudaram a tirar o visto brasileiro e pagaram a passagem de avião. Ao chegar ao país, no início de 2013, a congolesa perambulou pelas ruas de São Paulo durante oito dias. “Fazia muito frio e eu não tinha mais nada. Eu pedia aqui e ali para me arranjarem qualquer coisa para comer”, relembra.

Um africano que a viu tremendo de frio na rua lhe ofereceu ajuda e a levou até o Centro de Acolhida para Refugiados, na Praça da Sé, no centro da capital paulista. O local é gerenciado pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. O escritório parceiro do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) encaminha os pedidos de refúgio ao Comitê Nacional de Refugiados, providencia documentação na Polícia Federal do Brasil e direciona os estrangeiros a abrigos.

“A maioria dos africanos vêm sem norte, por isso nós damos um primeiro apoio. São poucos os abrigos disponibilizados por organizações não governamentais. Temos a possibilidade apenas de encaminhá-los para a rede pública de albergues, que não é adequada para estrangeiros. Eles ficam numa condição muito vulnerável”, afirma Maria do Céu, que há seis anos atende estrangeiros na Cáritas.

Falsa rede de proteção

Madeleine, de Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo, também aguarda ser reconhecida como refugiada no Brasil. O pai da jovem de 18 anos era secretário de um deputado da oposição. Em 2012, quando o presidente da República Democrática do Congo, Joseph Kabila, recebeu informações de que o parlamentar conspirava contra o governo, todas as pessoas ligadas a ele foram perseguidas.

“Eu estava na escola. Meu pai, minha mãe e meus irmãos tiveram de fugir. Uma amiga da minha mãe me buscou e me levou para a casa dela. Ela me acolheu por dois meses e, depois, para minha segurança, mandou-me para o Brasil”, conta.

Ao chegar ao aeroporto de Guarulhos, ainda sem saber português, Madeleine pediu ajuda a um nigeriano, que a levou para a casa onde ele morava. Após seis dias trancada no local, a jovem foi estuprada. “Lá na casa dele aconteceu uma coisa ruim, e ele me expulsou da casa. Fiquei andando na rua e daí encontrei outro africano. Foi ele que me levou até a Cáritas.”

Segundo Carmen Victor, do Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil, a falta de amparo institucional faz com que as africanas caiam numa falsa rede de proteção. “São mulheres cuja vida é atrelada à figura masculina do pai, do irmão ou do marido. No Brasil, elas terminam sendo usadas por imigrantes africanos para vários fins. Muitas são obrigadas a transportar drogas e a prestar favores sexuais. Encontra-se de tudo, desde o apoio verdadeiro ao total abandono”, relata.

“Não há como voltar”

Francisca também foi vítima de perseguição política em Kinshasa, no Congo. O pai trabalhava para um coronel que se opôs à reeleição do presidente Kabila. Os dois tiveram que fugir. Ela parou de estudar e foi morar na casa de um amigo do pai.

A mãe e os dois irmãos permaneceram na casa da família. Policiais foram lá e perguntaram pelo pai de Francisca. Os pequenos começaram a chorar. “Eles sequestraram minha mãe e meus dois irmãos. Foram embora com eles e queimaram a casa. Não sobrou nada”, relata.

Meses depois, o amigo do pai de Francisca enviou a jovem ao Brasil por temer represálias. Ela chegou ao país em janeiro de 2013. Sem falar português, passou dois dias dormindo no aeroporto de Guarulhos. Lá encontrou um grupo de moças que falava francês. Todas eram prostitutas.

“Quando eu cheguei à casa delas, falaram que eu poderia ficar, mas deveria trabalhar para me manter. Uma noite, elas me levaram até o ponto onde trabalhavam. Eu não queria fazer aquilo. Naquela noite, eu falei que não estava me sentindo bem, e elas entenderam”, conta.

No dia seguinte, ao não aceitar novamente, Francisca foi ameaçada. “Aquelas que falavam francês disseram: ‘Tem que chamar uns cinco homens para violar essa menina’. Eu me assustei. E, quando elas estavam distraídas, eu saí da casa e fugi.”

Francisca andou sem rumo pelas ruas de São Paulo. Ainda naquele dia, escutou um rapaz falando lingala, o idioma de Kinshasa. Ela pediu ajuda e foi levada até a Cáritas.

Hoje a congolesa vive num abrigo para menores de idade. Ela faz um curso de português e conseguiu emprego numa empresa de telemarketing. “Não tem como voltar porque há muito tempo as coisas não mudam. Quando eu nasci, já era assim. Eu cresci, e é a mesma coisa. Tenho estresse, dor no coração porque não sei onde está minha família, não sei o que aconteceu com eles.”

A jovem também relembra casos de violência em seu país. “Quando o governo manda, o rebelde – não sei como posso chamar aquelas pessoas – quando eles encontram um menino e uma menina da minha idade, o pai e a mãe em uma casa, eles mandam o rapaz se deitar com a mãe e o pai, com a garota. Obrigam! Se você não faz, eles te matam”, conta Francisca.

Ela se recorda de um vizinho que foi obrigado a fazer sexo com a própria mãe, uma senhora de idade. “Com aquela vergonha, ele não conseguiu mais viver em paz e se matou.”

Apesar dos traumas, Francisca pretende estudar para poder ajudar os congoleses. Ela quer ser médica, mas sem a documentação necessária não consegue se matricular na universidade. “Já faz tempo que estou pedindo os documentos para o governo aqui no Brasil, mas não consigo. Quando eu era criança, eu falava que, quando eu tivesse 25 anos, seria uma grande médica. Essa incerteza me incomoda muito”, diz.

À procura de uma nova vida

Na Zona Leste de São Paulo, muitos homens africanos e moradores de rua brasileiros aguardam uma vaga no abrigo Arsenal da Esperança. No ano passado, a presença de estrangeiros aumentou.

Pedro Baptista, da Guiné-Bissau, chegou em março. Havia seis meses que estava sem receber o salário como professor dos ensinos fundamental e médio na capital guineense. O golpe de Estado em abril de 2012 motivou o sindicalista a sair do país. “Deixei a minha esposa grávida, ela já deu à luz e nem tenho dinheiro para mandar para ela. O país está em constante instabilidade. Então isso obrigou-me a procurar refúgio no Brasil. Vim cá procurar melhor condição de vida”, conta.

Formado em química e biologia, Pedro Baptista se tornou orientador comunitário do Arsenal da Esperança. Ele aguarda ser reconhecido como refugiado no Brasil, apesar de não ter sofrido uma ameaça direta. Em 2013, o governo brasileiro concedeu refúgio para apenas um africano da Guiné-Bissau.

“Os governantes do Brasil bem sabem que a Guiné-Bissau tem problemas. A CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] não reconheceu o governo que está no poder neste momento. Imagine um país com 40 anos de independência não ter nenhum governo que tenha terminado seu mandato e ser palco de sucessíveis golpes. É lamentável, mesmo.”

Segundo o italiano Simone Bernardi, coordenador do Arsenal da Esperança, a maioria dos estrangeiros da casa que querem ser reconhecidos como refugiados no Brasil não foi vítima de perseguição. “São jovens que, muitas vezes, aparentam ser um pouco a elite do país de onde vieram. Têm o perfil de quem completou os estudos e quer procurar um futuro melhor”, explica.

Pedro Baptista pretende fazer uma especialização no Brasil e mandar ajuda para seu país. “A minha vida está em causa, porque eu sou o filho mais velho. Meus irmãos estão esperando alguma coisa de mim. E não só eles, também o povo da Guiné-Bissau.”

“Aqui não é minha terra”

Os mais de 4.500 refugiados reconhecidos pelo governo brasileiro enfrentaram uma longa jornada para escapar das mais variadas perseguições políticas, religiosas e étnicas. Omar está no Brasil há sete anos e já tem residência permanente. Ele é agente de saúde pública em São Paulo. Por motivos de segurança, não relata por que teve de deixar a República Democrática do Congo.

“Eu sempre falo isso. Aqui não é a minha terra. A minha terra é a minha terra. A minha terra é incomparável e vai permanecer comigo. Mas estou aqui. Estou batalhando para ter a minha vida. Se hoje não, amanhã, se não amanhã, depois de amanhã, eu voltarei”, diz Omar.

Para isso, ele defende que os governantes africanos precisam se preocupar mais com as necessidades da população do que com o poder. “Os políticos devem purificar a consciência e aprender o que é o amor. Sabe amor? Eles não têm.”

Mãe dos africanos

A jornalista Diop desembarcou no Porto de Santos, no litoral de São Paulo, há 11 anos. Alvo de ameaças por seu trabalho numa rádio popular na região conflituosa de Casamança, no sul do Senegal, foi obrigada a fugir.

“Há muitos problemas no Senegal. É a guerra fria que as pessoas não reconhecem. Estou contente com o povo brasileiro, que é muito gentil. Sinto-me como se estivesse em casa. Eu sei que tive mais oportunidades do que muitos africanos que foram para a Europa”, diz.

Diop vende roupas, tecidos de capulana, colares e estatuetas do Senegal na Praça da República, no centro de São Paulo. Duas brasileiras a ajudam no pequeno comércio. Para ela, todo africano ou brasileiro que precisa de ajuda é como um novo filho.

“Hoje eu trato dos africanos que chegam. Sou como uma mãe. Eu sou uma escrava de Deus e de todos que precisam de ajuda. Tenho dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro. Tenho colchões para as pessoas dormirem. Se há alguém com problemas, eu dou-lhe comida e mantimentos. A pessoa não paga eletricidade, água nem o quarto. Não paga nada. É tudo feito por mim e pelo meu marido”, conta.

Diop diz que, apesar da perseguição que sofreu, ama o Senegal. E é grata à acolhida que recebeu no Brasil. “Cada país representa uma mãe. Nunca uma pessoa pode falar que não gosta da própria mãe. Eu gosto muito do meu país, mas aqui no Brasil tenho coisas que não tenho lá. Eu tenho liberdade. Eu amo muito o Brasil.”

(*) Nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.

Com guerra civil síria, triplica número de concessões de refúgio no Brasil

crianca siriaA escalada de violência na Síria fez com que 283 cidadãos do país pedissem e conseguissem refúgio no Brasil em 2013. O número representa 44% do total de concessões feitas pelo governo federal (649), segundo dados do Ministério da Justiça. O total de pedidos de refúgio aceitos no país é mais que o triplo do registrado em 2012 (199).

[Thiago Reis, G1, 8 jan 2013] O país do Oriente Médio vive há quase três anos uma guerra civil que já provocou mais de 130 mil mortes. Mais de 2 milhões deixaram o país em busca de refúgio em nações vizinhas. Agora, alguns têm ido ainda mais longe atrás de ajuda.

Após identificar um aumento no fluxo de sírios para o Brasil e receber algumas reclamações, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) diz ter decidido, com base em diretriz da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), implementar um “procedimento acelerado” no momento de analisar as solicitações de refúgio.

Já a crise humanitária enfrentada pela República Democrática do Congo fez o país figurar na segunda posição da lista: 106 cidadãos conseguiram refúgio após o pedido.

Conflitos entre governo e opositores do regime do presidente Joseph Kabila têm causado mortes e gerado pânico na população. No fim do ano, homens armados invadiram o aeroporto, uma emissora e uma base militar da capital do país; 70 mortes foram confirmadas.

Na terceira posição da lista de refugiados estão os colombianos (87). Paquistão, com 32 refúgios concedidos, Mali, com 19, Nigéria, com 18, Angola, com 17, e Bolívia, com 16, aparecem logo atrás.

O que é o refúgio
O refúgio é um direito de estrangeiros garantido por uma convenção da ONU de 1951 e ratificada por lei no Brasil em 1997. Segundo o ministério, o refúgio pode ser solicitado por “qualquer estrangeiro que possua fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião pública, nacionalidade ou por pertencer a grupo social específico e também por aqueles que tenham sido obrigados a deixar seu país de origem devido a uma grave e generalizada violação de direitos humanos”.

O Brasil tem cerca de 4,5 mil refugiados reconhecidos.

Veja a lista completa dos países dos cidadãos com refúgios concedidos em 2013:

Síria – 283
República Democrática do Congo – 106
Colômbia – 87
Paquistão – 32
Mali – 19
Nigéria – 18
Angola – 17
Bolívia – 16
Butão – 9
Venezuela – 6
Irã – 5
Sudão – 4
Líbano – 4
Costa do Marfim – 4
Eritréia – 4
Senegal – 4
Afeganistão – 3
Gana – 3
Guiné – 3
Iraque – 2
Somália – 2
Camarões – 2
Gâmbia – 2
Nepal – 2
Serra Leoa – 1
Cuba – 1
Sérvia e Montenegro – 1
Guiné-Bissau – 1
Sri Lanka – 1
Egito – 1
El Salvador – 1
Marrocos – 1
Bangladesh – 1
Líbia – 1
Burkina Faso – 1
Índia – 1
TOTAL – 649

Como seria o Oriente Médio sem cristãos

Blood-spattered-mural-of-Jesus-in-EgyptGrupo religioso perseguido do Iraque à Síria se sustenta pela fé, mas seu declínio pode alterar toda a região.

Os bancos da Primeira Igreja Batista de Belém enchem-se rapidamente de fiéis numa noite de domingo, alguns com bolsas enfeitadas, outros com sapatos gastos e sacolas de papel da KFC. No transcorrer da cerimônia, mãos balançam no ar enquanto os fiéis cantam e dão graças a Deus por um renascimento recente que atraiu mais de 1.300 pessoas para ouvir a mensagem da Bíblia.

[Christa Case, Bryant, The Christian Science Monitor, Estadão, 25 dez 2013] Numa cidade alardeada como o lugar onde Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria, a igreja é uma espécie de milagre moderno. Fundada há três décadas num apartamento de dois quartos pelo reverendo Naim Khoury, a Primeira Batista foi bombardeada 14 vezes durante a primeira intifada, enfrentou dificuldades financeiras, e agora trava uma batalha legal com a Autoridade Palestina, que não a reconhece.

Milhares de cristãos em Belém tiveram problemas políticos e religiosos similares nas últimas décadas, o que levou muitos deles a fugir da cidade onde nasceu a figura central da cristandade numa manjedoura.

Os cristãos, que já constituíram 80% da população, hoje representam 20% a 25%. Dois mil anos após o nascimento de Jesus, a cristandade está sob um ataque maior do que em qualquer outro período do último século, levando alguns a especular que uma das três maiores religiões do mundo pode desaparecer completamente da região em uma ou duas gerações.

Do Iraque, que perdeu pelo menos metade de seus cristãos na última década, ao Egito, que assistiu à pior violência anticristã em 700 anos neste verão, à Síria, onde jihadistas estão matando cristãos e os enterrando em valas comuns, os seguidores de Jesus enfrentam violência e perseguição além de um declínio das igrejas. Os cristãos constituem hoje somente 5% da população do Oriente Médio, ante 20% um século atrás. Muitos cristãos árabes estão contrariados porque o Ocidente não fez mais para ajudá-los.

Embora muitos muçulmanos tenham crescido com amigos e colegas cristãos, política e forças sociais tornaram a coexistência mais difícil. À medida que o islamismo político cresce, cristãos já não conseguem encontrar refúgio numa identidade árabe compartilhada com seus irmãos muçulmanos.

Os apelos à cidadania com direitos iguais são pontuados por histórias de extremistas islâmicos exigindo a conversão de cristãos ao islamismo ou que eles paguem um imposto exorbitante. E muitos muçulmanos enfrentam perseguições eles próprios na medida em que os levantes árabes de 2011 continuam a repercutir por toda a região e nações tentam encontrar um equilíbrio entre liberdade e estabilidade.

Os cristãos já enfrentaram tempos difíceis antes, da matança dos seguidores imediatos de Jesus à opressão dos cristãos pelos mamelucos no início do século 13 à ascensão da atividade militante islâmica no Egito nos anos 1970. Os guerreiros que vieram em nome de Cristo também foram responsáveis por violências inter-religiosas, como n a Primeira Cruzada em 1099, quando cristãos tomaram Jerusalém e massacraram os moradores.

Permanece incerto se os tempos atuais se mostrarão mais um refluxo da história cristã ou algo mais fundamental. Mas o que está evidente é que tanto muçulmanos como cristãos, além das outras minorias da região, provavelmente serão afetados de maneira significativa por uma deterioração contínua.

Uma exceção ao declínio é Israel, onde a população cristã quase quintuplicou, para 158 mil, desde a fundação do país em 1948. Mesmo assim, sua parcela na população caiu cerca de 3% a 2%, e críticos observaram que as famílias cristãs palestinas que fugiram ou foram obrigadas a sair pouco antes da fundação de Israel deram ao país uma base artificialmente baixa.

Mas ainda há comunidades cristãs fortes de cristãos árabes israelenses – embora elas também tenham problemas. Em Nazaré, por exemplo, islamistas tentaram erguer uma mesquita bloqueando a Igreja da Anunciação. Quando impedidos por Israel, eles aceitaram colocar uma bandeira proclamando o verso corânico: “E todo aquele que busca uma religião que não seja o Islã, jamais será aceito por ele, e no futuro será um dos perdedores”.

Tradução de Celso Paciornik

Douglas Alexander: Christians left by the world to suffer

coffin egiptAcross the world this week, hundreds of millions of us will be singing of that “silent night, holy night” in the town of Bethlehem. But as Christmas approaches, with its beguiling promise of “peace on earth and mercy mild”, how many of us will reflect on the words of our great Christmas carols and be reminded that Christianity was a faith born in the East? How many of us are aware that, while the first Christmas took place in the Middle East, there today that same faith is under threat?

[The Telegraph, 21 dez 2013] Last week, the leader of the Catholic Church, His Holiness Pope Francis, chose to cast light on this dark story of persecution by taking to Twitter to warn that we “cannot resign ourselves to think of a Middle East without Christians”.

Later in the week, Prince Charles warned that “Christians in the Middle East are, increasingly, being deliberately attacked by fundamentalist Islamist militants. Christianity was, literally, born in the Middle East and we must not forget our Middle Eastern brothers and sisters in Christ”.

These were expressions of a growing concern that Christians are being deliberately targeted and attacked because of their faith. But why, when popes and princes are speaking up, have so many politicians here in the UK forsaken speaking out?

Across the Middle East, Christians have lived for almost two millennia in the place their faith was born, and since thrived within communities in Iraq, Syria, Egypt and elsewhere.

Indeed, the Ottoman Empire, which spanned much of today’s modern Middle East, was a multicultural state, with Christians cohabiting alongside Shia, Sunni, Jews, Alawites and Druze.

Yet today, the conflicts raging across the region – in Syria most acutely – are taking on an increasingly sectarian character. Since the start of the conflict in March 2011, more than 450,000 Christians have fled the country.

In Egypt, the plight of the Coptic Christians is of growing concern, with Amnesty International reporting that, this year, 207 churches were attacked and 43 Orthodox churches completely destroyed.

Christian persecution is growing across the Middle East, but tragically, the plight of Christians is global and not regional.

Research by the Pew Centre suggests that Christians are reportedly the most widely persecuted religious group in the world. Their evidence shows that, in 2011, religious groups faced harassment in 160 countries, and that Christians were harassed in the largest number of countries.

In Nigeria, Boko Haram, the militant Islamist group, are waging their bloody conflict and targeting church leaders. This month, there were reports of hundreds of houses being burnt down when members of the Boko Haram attacked Arboko village in Borno State, said to be inhabited by a small Christian community.

And in one brutal attack in Pakistan, in September this year, 81 Christians were killed when their church in Peshawar was targeted by suicide bombers, causing the Archbishop of Canterbury, Justin Welby, to describe the victims as Christian “martyrs”.

Members of my own denomination, the Church of Scotland, felt that same tragedy very personally when one of our number, Rev Aftab Gohar, minister in Abbotsgrange Church in Grangemouth, discovered that his 79-year-old mother, nephew, niece, two uncles and other friends and relatives were among 122 killed in the attack.

Rev Gohar is blessed with a strength of faith that enables him to offer forgiveness to those who have killed his family members – a powerful statement, bearing testimony to the enduring capacity of faith to nurture reconciliation.

But for such reconciliation to fully take root in our communities, we must first recognise and acknowledge the depth and extent of the divisions that need to be healed.

Thankfully, some politicians have begun to speak up. Last month, Baroness Warsi gave an important and under-reported speech in the United States warning that a “mass exodus is taking place, on a biblical scale. In some places, there is a real danger that Christianity will become extinct”. And, earlier this month, the DUP MP Jim Shannon secured a debate in the House of Commons on the persecution of Christians.

But why, given the scale of the suffering, are these still such lone voices?

Across the world, there will be Christians this week for whom attending a church service this Christmas is not an act of faithful witness, but an act of life-risking bravery.

That cannot be right, and we need the courage to say so.

In the UK today, perhaps through a misplaced sense of political correctness, or some sense of embarrassment at “doing God” in an age when secularism is more common, too many politicians seem to fear discussing any matters related to faith.

So the growing persecution of Christians around the world remains a story that goes largely untold, as does proper discussion of its complex roots and causes.

In some countries, this persecution is perpetrated in the name of a secular ideology, while in others it has its roots in religious intolerance.

So the perpetrators’ motivation is not the primary issue of concern, nor can it be a reason for ignoring the consequences; our neighbours are being attacked for their faith, and that can never be acceptable or justified, whatever the reason given.

People of all faiths and none should be horrified by this persecution. We cannot, and we must not, stand by on the other side in silence for fear of offence.

Of course, Christianity’s long history has had its bloodstained chapters, and of course other religious groups are today subject to persecution.

It is simply wrong for any faith to be persecuted. And yet, across the world, religious groups, of any faith, are being attacked for their beliefs. So, just like anti-Semitism or Islamophobia, anti-Christian persecution must be named for the evil that it is, and challenged systematically by people of faith and of no faith. To do so is not to support one faith over another – it is to say that persecution and oppression of our fellow human beings in the name of any god or ideology is never acceptable and is morally repugnant.

In this 21st century, we should be supporting the building of societies that respect human rights and the rule of law, and make clear that freedom of religion or belief is a universal concern. It is time to acknowledge this issue and speak up and stand with those who are suffering because of their beliefs.

Sixty-five years ago this month, the UN adopted the Universal Declaration of Human Rights.

Article 18 of that declaration states: “Everyone has the right to freedom of thought, conscience and religion; this right includes freedom … to manifest his religion or belief in teaching, practice, worship and observance.”

This coming year, in March, the UK will assume its place on the UN Human Rights Council.

As part of that body, the UK Government will have a unique and timely opportunity to use this platform to speak up for religious freedom as a fundamental human right and speak out against the persecution of Christians.

Acknowledging this wrong is the surest basis on which to begin the journey to reconciliation shown to be possible by Rev Gohar’s faithfulness and hope.

And if the UK government does so, we, as the Opposition, will support them.

Douglas Alexander MP is shadow foreign secretary

Não pode haver democracia sem laicismo ~ George Corm

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Georges Corm, historiador e jurista libanês, analisa a situação atual do mundo árabe.

Depois das esperanças levantadas pela Primavera Árabe em 2011 e a chegada ao poder no Egito e na Tunísia de movimentos que se declaram islâmicos, você é otimista quanto ao futuro dos países árabes?

O movimento de 2011 foi extraordinário: de Omã à Mauritânia, a consciência coletiva árabe despertou, mas as esperanças são de longo prazo. Os ciclos revolucionários do mundo árabe são longos, principalmente por conta de interferências externas. Para romper com esse movimento, se criaram pontos de fixação na Líbia e na Síria. Ambas as intervenções foram conduzidas para a catástrofe e provocaram a guerra civil quando armaram os manifestantes pacíficos. A indignação quanto a um ditador é seletiva e segue os interesses geopolíticos ocidentais junto de seus aliados locais. Acabar com um sistema ditatorial e predador para substituí-lo pelo que? Todo o Oriente Médio está sendo consumido por suas classes dirigentes e seus aliados dentro do mundo corporativo. São economias rentistas, totalmente improdutivas que geram desemprego e uma grande concentração de riqueza. Apenas a própria população pode resolver seus problemas com seus regimes políticos e econômicos e, assim, reconstruí-los.

Qual é a sua visão sobre a situação da Síria?

É uma batalha muito perigosa que ultrapassa, e muito, os desafios internos dos sírios, que pode desencadear uma guerra mundial. Enquanto existirem quase 100 mil combatentes não sírios e o financiamento estrangeiro da oposição continuar atrelado aos interesses de Turquia, França, Arábia Saudita e Qatar, não iremos a lugar algum. Estão destruindo o país de forma sistemática. Amanhã chegarão novos predadores para saquear a Síria com o pretexto de reconstrução, como ocorreu no Líbano, Iraque e Bósnia.

Em sua opinião, quais são os interesses estratégicos que atuam na região?

Agora se trata do reequilíbrio do sistema internacional e do final do unilateralismo estadunidense. A região é um caos total. Na costa sudeste do Mediterrâneo, EUA e Israel colocaram a região de joelhos com a invasão do Iraque em 2003 e depois com o ataque israelense ao Líbano em 2006. A Síria suportou cerca de um milhão e meio de refugiados iraquianos sem pedir ajuda, os tunisianos viram-se obrigados a acolher milhares de refugiados da Líbia. No Líbano, existem entre 800 mil a um milhão de refugiados sírios, ou seja, 25% da população. Nessa situação explosiva, a Europa – assim como os EUA – não desempenha nenhum papel de apaziguamento, mas exatamente o contrário.

Qual é o papel do Golfo Pérsico na região?

O aumento dos preços do petróleo desde 1973 constituiu um terremoto social no Oriente Médio de uma amplitude sem precedentes na época moderna. As elites urbanas árabes que desencadearam um “renascimento” no século 19 e adaptaram os princípios da lei islâmica às necessidades do mundo moderno, progressivamente cederam o poder cultural, religioso e midiático às famílias reinantes do Golfo, as quais dispõem de meios econômicos e financeiros desproporcionais frente aos demais regimes políticos do mundo árabe, fragilizados por suas derrotas para Israel e por fracassos no desenvolvimento. O “despertar islâmico” veio substituir o “renascimento árabe” – com seu séquito de pregadores influenciados pelo rigor teológico extremista do wahabismo. A religião muçulmana se converteu em uma arma política temível com sua aliança aos EUA na luta contra o comunismo. Abandonou-se a questão da Palestina em benefício de lutas que não são as nossas, no Afeganistão, na Bósnia, na Chechênia e no Cáucaso. Esses movimentos trazem em si, a legitimação de um autoritarismo terrível, que pretende controlar a vida dos crentes até em seus mínimos detalhes e combater os “infiéis”, muçulmanos ou não.

Contra essas “ideologias autoritárias”, você prega o retorno à liberdade de pensamento…

O grande erro de muitos intelectuais árabes tem sido deixar a questão religiosa à Irmandade Muçulmana e ao wahabismo, os quais, com seus meios, se apoderaram das mentes das pessoas. As conquistas da civilização islâmica, que instituiu uma liberdade de pensamento notável para a época, são esquecidas completamente. Falam-se apenas de Sayyid Qotb, Maududi e Ibn Taymiyyah! Agora vemos o resultado de 40 anos de uma política muito ativa, que remete à Guerra Fria, onde ocorreu uma “reislamização” das sociedades para lutar contra o comunismo. Atualmente você não é um muçulmano “representativo” se for um muçulmano moderado. No mundo árabe, sempre existiu um vivo debate sobre a maneira de interpretar o texto corânico, mas que não interessa aos setores acadêmicos e midiáticos.

Você advoga pelo laicismo, não é utópico defender um modelo impopular no mundo árabe?

Com o que ocorre no Egito, na Tunísia e na Síria, a opinião pública árabe, incluindo a parte crente, começa a compreender qual é a utilidade do laicismo. Na região do Mashreq, onde reina uma forte diversidade religiosa dentro do próprio islã, o laicismo é a única solução. Outra coisa é que não pode haver democracia sem o laicismo. Se tudo está polarizado no que concerne a referência religiosa nas instituições ou a identidade social e cultural, é porque não temos um pensamento econômico alternativo que havia deixado essa questão em segundo plano. Temos que rechaçar a análise que exclui as identidades: o problema é a desestruturação de nossas sociedades e a negação do pluralismo em uma região do mundo que é plural desde a mais longínqua antiguidade.

Qual papel desempenharia o Magreb, e Marrocos em particular, nesse contexto?

No Magreb, a Argélia tem sofrido enormemente com a onda islâmica. A Líbia está atualmente presa em uma anarquia que beneficia os elementos que se declaram militantes islamitas e a Tunísia se torna, a cada dia, mais perigosa. O Marrocos com sua monarquia de legitimidade religiosa, ao se declarar partidário de um islamismo moderado – que é o autêntico islã – poderia desempenhar um papel catalisador de um liberalismo árabe e islâmico moderno, como o que existiu nos anos 1950. É também o que tenciona fazer a Universidade de Al Azhar, no Egito. É o momento de trabalhar para restabelecer no mundo árabe a saúde mental que perdemos um pouco a cada dia e voltar a ter uma concepção de mundo aberta, tolerante e pluralista, onde, em outra época, construiu a grandeza da civilização árabe-islâmica e mais recentemente, o magnífico renascimento árabe.

[Kenza Sefrioui, do Telquel | Tradução: Vinicius Gomes, publicado na Revista Fórum, 16 dez 2013]

 ** Georges Corm, nascido em 1940 em Alexandria, assistiu em sua juventude a chegada ao poder de Nasser e a nacionalização do Canal de Suez. Possui um doutorado em Direito Público sobre as sociedades multiétnicas. Foi professor de Ciências Políticas pela Universidade Saint-Joseph de Beirute e ministro das finanças do Líbano de 1998 a 2000. Em suas numerosas obras, tanto em árabe quanto em francês, como “Le prche-Orient éclaté” e “Pour une lectura profane des conflicts”, advoga por um mundo árabe mais unido e mais independente, criticando duramente o apoio dos EUA e Europa aos Estados teocráticos como Arábia Saudita e Israel.

Cidades do interior gaúcho recebem onda de migração senegalesa

africa na mãoAtraídos pela oferta de trabalho em Caxias do Sul, polo econômico da serra gaúcha, senegaleses formaram uma onda de migração que desafia autoridades do Sul e gera preocupações humanitárias. Moradores da região conhecida pela produção de uva e pela forte influência italiana convivem com centenas de imigrantes africanos que tentam a vida no Brasil. O frio da região é um agravante. No inverno, os senegaleses chegaram sem roupas próprias e lotaram um albergue para moradores de rua. A mesma situação ocorreu com os senegaleses em Passo Fundo, no norte gaúcho.

[Felipe Bachtold, Folha SP, 14 dez 2013] Os imigrantes são quase todos homens, jovens, muçulmanos e sem autorização para permanecer no Brasil.

Em Caxias, um centro de apoio ligado à Igreja Católica se tornou ponto de peregrinação. No início do mês, cerca de 15 senegaleses disputavam a atenção da freira Maria Gonçalves, 38, principal ponte da comunidade africana com o restante da cidade.

A maioria deles só fala o dialeto wolof e procura ajuda para obter emprego e documentos. “A cidade foi pega de surpresa”, diz a freira. Ao menos 620 senegaleses estão cadastrados no local. Em Passo Fundo, há cerca de 400.

Sem visto, os imigrantes pedem à Polícia Federal concessão de refúgio. Enquanto o pedido tramita, podem obter carteira de trabalho brasileira e um emprego formal.

Com o movimento de imigrantes, o centro da igreja passou a receber empregadores de indústrias, frigoríficos e da construção civil em busca da mão de obra. Organizados e unidos, os senegaleses alugam e dividem casas e ajudam a bancar gastos de conterrâneos ainda sem trabalho.

A relativa boa adaptação ao interior do RS estimula parentes e amigos na África a tomar o mesmo rumo. Como a comunidade é numerosa, os novos imigrantes optam pelo Estado pela proteção garantida pelos “veteranos”.

Líder dos senegaleses em Caxias, Billy Ndiaye, 26, diz que o desemprego é a causa do êxodo. “Quase todo mundo saiu por causa de trabalho. Nossas famílias são grandes e não se sustentam”, diz.

Há dois meses no RS, Mbaye Thiam, 36, afirma que o Brasil ganhou “boa imagem” como país de rápido desenvolvimento e de eliminação da pobreza. “É o país da Copa e da Olimpíada”, disse.

O custo de vida, porém, assusta os imigrantes, que ganham cerca de R$ 1.000 mensais por aqui. Além dos gastos cotidianos, eles têm de recuperar as despesas com a viagem ao Brasil. A entrada no país é pelo Acre, em rota aberta por imigrantes do Haiti.

CONVIVÊNCIA

O fluxo de senegaleses para o Rio Grande do Sul começou há cerca de cinco anos.

João Tedesco, da Universidade de Passo Fundo, diz que um grupo de imigrantes que estava em SP foi para a cidade pela rapidez no atendimento da delegacia local da PF.

Também foi atraído pela possibilidade de trabalho em frigoríficos que exportam carne para o Oriente Médio e que precisam fazer rituais islâmicos no processo de corte.

Pelas ruas, os imigrantes despertam curiosidade. Senegaleses ouvidos pela Folha disseram não ter sentido discriminação e afirmam que a população é solidária.

Mas o gerente do Ministério do Trabalho em Caxias, Vanius Corte, aponta certa “tensão” na convivência. “Há quem se pergunte: ‘Como entram aqui sem documento’? ou ‘E se for um bandido?’.”

Em Caxias e Passo Fundo, a PF recebeu 340 pedidos de refúgio neste ano –status comumente concedido a quem foge de guerra ou ditadura, o que não ocorre no Senegal.

Em relatório, a Câmara da cidade expressa preocupação com o risco de os pedidos serem negados, gerando “problemas sociais graves”.

Para analista, não dá para esperar saída perfeita para a Síria

syria_jihadists_al_nusraEm três anos da brutal guerra civil na Síria, a única coisa com que as potências estrangeiras concordam é que não há solução puramente militar para a tragédia que já matou cerca de 120 mil pessoas, gerou três milhões de refugiados e deixou o país quebrado, se é que tenha conserto, pelos próximos 25 ou 50 anos.

[Phillip J. Crowley, BBC Brasil, 11 dez 2013] Sem ninguém no horizonte para impor uma solução para a Síria, qual seria a melhor opção diplomática possível? Como implementá-la? Em quanto tempo?

Conflito geracional

O jogo de guerra da Síria tem mais de 20 atores, de potências estrangeiras como os Estados Unidos, a Europa, a Rússia, a ONU e alguns vizinhos chaves, até grupos nacionais sírios. Entre esses, o próprio regime de Bashar al-Assad, o Exército Livre da Síria, o grupo xiita libanês Hezbollah, além de vários grupos de extremistas islâmicos e da sociedade civil síria.

O equilíbrio de forças funciona assim: grupos pró-regime prevalecem sobre os que querem uma Síria totalmente distinta. E não há solução à vista.

A revolta na Síria representa um conflito geracional. A guerra pode durar mais uma década, com partes da Síria estabilizando, cedo ou tarde, dependendo dos cálculos políticos e militares de vários grupos.

Embora os grupos que atuam no conflito sírio acreditem que o país sobreviva com o território intacto, enclaves para grupos étnicos como os alauitas, os curdos e a oposição sunita devem ser necessários.

Assad

Havia pouca confiança que a segunda rodada de negociações em Genebra, em janeiro, iria levar a uma resolução. A Síria parece estar menos madura para uma solução do que há um ano. Assad acredita estar ganhando, principalmente após o acordo para destruição de armas químicas, que evitou uma intervenção americana.

A diplomacia deveria se empenhar em encontrar um denominador comum entre os atores estrangeiros que atuam na crise síria – os Estados Unidos, a Turquia, a Rússia, a Arábia Saudita e o Irã. Cada um tem visões diferentes sobre um cenário ideal para a Síria. Ninguém quer a vizinhança desestabilizada ou grupos extremistas ganhando força e ditando as regras em parte do território sírio.

As perspectivas de uma maior cooperação foram fortalecidas pelo acordo nuclear temporário com o Irã. As atuais negociações entre o Irã e os poderes globais criaram um ambiente propício para discutir a Síria. Mais progresso no front nuclear poderia abrir portas na Síria também. O oposto também é verdadeiro.

Um grande obstáculo, no entanto, é o futuro de Assad.

Criatividade diplomática

Os Estados Unidos, a Arábia Saudita e a Turquia insistem em tirar Assad do poder como parte de qualquer solução. Por outro lado, a Rússia acredita que Assad pode manter a Síria intacta e derrotar os extremistas. O Irã vê Assad como um ativo regional importante e protetor das minorias xiita e alauíta da Síria, que poderiam ser perseguidas sob um eventual governo sunita.

É possível harmonizar tantas diferenças? Sim, mas isso requer ajustes na política síria, criatividade diplomática, vontade política e um maior compromisso da administração Obama para com a questão síria.

Primeiro, os Estados Unidos precisam ver a Síria sob a perspectiva da segurança internacional e do contraterrorismo. A governança representativa e inclusiva da Síria é objetivo de longo prazo, para a próxima década. O foco inicial deve ser conter o conflito, entregar ajuda humanitária e prevenir extremistas islâmicos de ganhar mais território.

Segundo, cooperar com Assad não é um começo. É preciso convencer seus aliados (alauitas e cristãos) e o Irã de que presidente sírio deve sair de cena, com garantias para o período de transição. É nesse ponto que pode ser necessário estabelecer enclaves étnicos na Síria, como um solução temporária. Se extremistas islâmicos tentarem tomar um assentamento, os Estados Unidos poderiam considerar uma operação área, munidos de uma resolução do Conselho de Segurança a fim de reduzir às ameaças à sociedade síria.

Oriente Médio e EUA

Finalmente, um grupo de contato político pode ser estabelecido para dar seguimento às negociações de paz de Genebra. Os países que desempenharão algum papel no futuro da Síria poderiam participar, incluindo o Irã. Essa proposta seria para assegurar que todas as fronteiras da Síria estaria seguras. Também iria interromper o apoio estrangeiro a extremistas. Estabeleceria ainda corredores humanitários para assegurar ajuda. Daria ainda apoio para o retorno de refugiados, assim como ajudaria o estabelecimento de governos locais.

O Oriente Médio tem responsabilidade primária na resolução da crise síria, mas nada de mais substantivo vai ocorrer sem o compromisso americano.

Assim, rivais históricos podem ajudar encontrar a “melhor saída possível” para a Síria. O primeiro passo é reconhecer que a situação na Síria pode ficar ainda mais horrenda do que é hoje. Não é possível esperar uma solução perfeita.

*Phillip J. Crowley foi secretário de Estado assistente no governo Obama e é atualmente professor do George Washington University Institute of Public Diplomacy and Global Communication.

Com reforço de fronteiras na Europa, imigrantes optam por ‘rotas da morte’

mediterranean_migration_routesCom o reforço da segurança nas fronteiras em toda a Europa e nos Estados Unidos, imigrantes ilegais são cada vez mais obrigados a optar por rotas perigosas para chegar aos seus destinos, aumentando o número de vítimas fatais nessas jornadas.

[Daniela Fernandes, BBC Brasil, 25 nov 2013] Segundo dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM), já chega a 900 o número de mortos só na travessia do mar Mediterrâneo, rota usada por imigrantes ilegais africanos que tentam chegar às ilhas de Lampedusa, Sicília e Malta, no sul da Europa.

O número é quase o dobro do registrado em 2012 e o triplo de dez anos atrás.

“O número de mortes vem crescendo porque as fronteiras europeias são cada vez mais vigiadas”, disse à BBC Brasil Jumbe Omari Jumbe, porta-voz da OIM.

“Há cada vez menos opções para entrar na Europa. Isso leva as pessoas a utilizar alternativas cada vez mais desesperadas e perigosas”.

Outra rota amplamente utilizada por imigrantes clandestinos é a da fronteira entre México e Estados Unidos, onde morreram 463 pessoas no ano passado, o maior número desde 2005. Neste ano, apenas em um ponto da fronteira, na região do rio Grande, 70 pessoas perderam a vida.

A travessia via Golfo de Áden, entre a África e o Iêmen e a Arábia Saudita, também é apontada pela OIM como uma rota migratória bastante perigosa. Não há números oficiais, mas as estimativas apontam para entre 100 e 200 mortes anuais nesta rota.

Sírios

O número de imigrantes africanos que tentam entrar na Europa tem se mantido estável de 2007 a 2012, em torno de 20 mil a 30 mil por ano – exceto 2011, quando o conflito da Líbia elevou o número para 63 mil.

A maioria desses imigrantes vem da África subsaariana, de países como Eritreia, Somália, Etiópia, mas também do Sudão, Mali e Gana, além de refugiados de países árabes em conflito.

Neste ano de 2013, o número dos que tentaram a travessia já tinha chegado a 30 mil no início de novembro, graças, em parte, ao número de sírios fugindo do conflito em seu país e que se juntaram aos imigrantes africanos. Estima-se em 8 mil o número de imigrantes sírios que tentaram a travessia do Mediterrâneo neste ano.

Os perigos dessas jornadas vieram à tona mais uma vez com duas tragédias em outubro. Na primeira, um barco com 500 imigrantes africanos naufragou próximo à Lampedusa, causando 360 mortes.

Na segunda, poucos dias depois, outra embarcação também a caminho de Lampedusa, com cerca de 230 passageiros, afundou ao sul de Malta, provocando 87 mortes.

Os dados causam preocupação, pois, apesar de o número de imigrantes em trânsito ser relativamente estável, o total de mortes está aumentando.

“O número de mortes vem crescendo porque as fronteiras europeias são cada vez mais vigiadas”, disse Jumbe Omari Jumbe, porta-voz da OIM. “Há cada vez menos opções para entrar na Europa. Isso leva as pessoas a utilizar alternativas cada vez mais desesperadas e perigosas”.

“As fronteiras terrestres foram reforçadas e o Mediterrâneo se tornou praticamente a única alternativa para entrar na Europa”, diz Jumbe, porta-voz da OIM. “No passado, havia várias outras opções, incluindo a Grécia, a Bulgaria e também por avião”.

O exemplo mais recente do reforço das fronteiras terrestres na Europa para impedir a entrada de imigrantes é a decisão da Bulgária de iniciar a construção de um muro de 30 quilômetros (e 3 metros de altura) em sua fronteira com a Turquia.

Esse será o terceiro muro na Europa a obstruir o acesso de imigrantes, após o dos enclaves espanhóis de Celta e Melila, no Marrocos, em 1998, e o construído pela Grécia, de 12,5 quilômetros, também na fronteira com a Turquia, finalizado no ano passado.

O porta-voz da OIM afirma ainda que o número de mortes de imigrantes que atravessam o Mediterrâneo para entrar na Europa vem crescendo desde a criação da Agência Europeia para a Gestão da Cooperação Operacional às Fronteiras Externas (Frontex), que acabou reforçando o controle nas fronteiras europeias.

Segundo dados do OIM, no ano da criação do Frontex, em 2004, foram registradas 296 mortes na rota do Mediterrâneo entre a África e as ilhas de Lampedusa, Sicília e Malta.

Em 2008, esse número havia saltado para 682, mas caiu para 431 em 2009, mesmo assim isso representa um aumento de 45% em relação a 2004.

Números globais

A OIM calcula que 20 mil pessoas morreram desde 1988 na travessia do Mediterrâneo entre a África e o sul da Europa em geral, o que representa uma média de 800 pessoas por ano.

A OIM ressalta que as estatísticas de mortes na rota entre a África e Lampedusa, Sícilia ou Malta, via mar Mediterrâneo, são consideradas, desde 2005, as mais realistas na comparação com rotas migratórias de outras regiões do mundo, onde os dados podem ser subestimados.

Por esse motivo, não há números globais de mortes em rotas migratórias.

A Austrália, que recebeu nos últimos anos milhares de refugiados do Afeganistão e Iraque, também possui números considerados mais precisos: 1.484 imigrantes morreram afogados tentando entrar no país nos últimos 13 anos (incluindo os corpos não encontrados), o que dá uma média de 114 pessoas por ano.

O total de mortes na rota México-Estados Unidos vêm crescendo pela mesma razão observada na Europa: reforço cada vez maior da segurança nas fronteiras, o que leva as pessoas a utilizarem caminhos cada vez mais “isolados, traiçoeiros e perigosos”, diz a ONG de direitos humanos Wola.

Para especialistas e ONGS, o controle maior das fronteiras dos países ricos também têm feito com que imigrantes caiam nas mãos de redes de tráfico humano.

Mortes de imigrantes na rota do Mediterrâneo entre a Africa e Lampedusa, Sicilia e Malta

2004 – 296 mortes
2008 – 682 mortes
2009 – 431 mortes
2012 – 500 mortes
2013 – 900 mortes

Fonte: OIM

Congo: A maior guerra do mundo

congo_warChacinas, estupros de mulheres e sequestros de crianças são armas de guerra no país. É o mais sangrento conflito desde a 2ª Guerra.

Dessa vez, nem esperaram o disfarce da noite. Atacaram às claras, surpreendendo os aldeões na lavoura. Eram 11 horas, calcula Geni Mungo olhando para o céu – o relógio natural de Lwibo, vilarejo na Província de Kivu do Norte, na fronteira oriental da República Democrática do Congo. Ela os viu chegar de longe, pelo mato. Correu para casa para avisar os três filhos sobre o ataque, mas, ao saírem, os rebeldes estavam muito perto.

[Adriana Carranca, enviada especial do Estadão, Lwibo, Rep. Democrática do Congo, 20 out 2013] Alcançaram primeiro seu marido, abatido como um bicho. Ela titubeou, mas sabia que não poderia salvá-lo. Seguiu em direção ao rio. Moradores tentavam escapar, imaginando poder atravessar para o outro lado e sumir na mata. Alcançaram a ponte frágil de madeira. Armados com facões, os rebeldes cortaram as cordas.

Geni viu os corpos das duas filhas serem arrastados pela correnteza de outubro, mês das chuvas. Forjou com o caçula um esconderijo sob folhas de bananeira e ali ficaram até cessarem os gritos. Voltou à vila e encontrou a cabeça do marido, como as de outros homens da aldeia, secando ao sol em estacas – a marca do grupo liderado por um homem chamado Sheka.

O bando saqueou e botou fogo nas palhoças. Fugiu levando 45 crianças que estavam na pequena escola da vila no momento do ataque. Os meninos são feitos soldados. As meninas, escravas sexuais.

Dois dias após o ataque, quando o Estado visitou o local, os gritos de um professor de 25 anos, chamando cada aluno pelo nome, ainda ecoavam na mata – em vão. Ele tinha esperança de que as crianças, de 6 a 12 anos, assustadas, estivessem escondidas. O professor e todos à sua volta sabiam que isso era improvável. Geni buscava o corpo do marido – queria enterrá-lo inteiro – e os das filhas.

congo mapAssim se vive no Congo (antigo Zaire), buscando os desaparecidos e recolhendo corpos no rastro de ataques que ocorrem com frequência assustadora.

Em quase duas décadas, os confrontos no leste do país deixaram cerca de 6 milhões de mortos. É o maior e mais sangrento conflito desde a 2.ª Guerra, produziu mais vítimas do que todos os combates recentes somados. É o holocausto africano. Mas pouco se ouve falar sobre ele porque ocorre na floresta densa de um continente esquecido, a África, não mata brancos, não ameaça o Ocidente. Pelo menos, até agora.

O Congo é a maior e mais cara missão da ONU. E o retrato mais visível de seu fracasso.

“Muzungu! Muzungu!”, gritam as crianças ao ver uma equipe da organização Médicos sem Fronteira (MSF), que chega para atender feridos. Não há. Nesse tipo de ataque, os rebeldes não deixam vivos para trás – matam os que podem alcançar. A ajuda humanitária trata outros fantasmas que assombram o Congo: malária, sarampo, cólera, desnutrição, infecções, traumas. Muzungu quer dizer branco – a MSF é uma dos raras entidades que chegam à região remota, com acesso dificultado por estradas esburacadas, enlameadas e dominadas por grupos armados.

Lwibo fica em uma área limítrofe entre territórios controlados pela Aliança de Patriotas por um Congo Livre e Soberano (APCLS), formado por homens da etnia hunde, e as Forças Democráticas para a Liberação de Ruanda (FDLR), de hutus (veja mapa na página A15). Numa espécie de vácuo, o vilarejo fica exposto a ataques de forasteiros como Sheka, de outra região – o que faz com que a população prefira estar sob a mão pesada de um grupo rebelde de sua etnia, que lhes cobra impostos em troca de proteção.

As chacinas de homens, os estupros de mulheres e os sequestros de crianças tornaram-se armas de guerra no Congo. Servem para humilhar o oponente e mandar-lhe um recado: não mexa com a minha área ou vou invadir seu território e massacrar seu povo.

Cobiça. É uma guerra travestida de conflito étnico, mas que esconde interesses mundanos: os trilhões de dólares enterrados no solo vermelho do leste do Congo. O maior país da África subsaariana é também o mais rico em recursos naturais, confiscados desde a colonização belga. Hoje, essa riqueza financia as milícias sem que o povo veja um tostão. Ao contrário disso, são explorados no trabalho pesado das minas.

Ouro, diamantes, coltan – minério que contém tântalo, usado em aparelhos de celular e tablets – são contrabandeados para países vizinhos como Ruanda, Uganda e Burundi. Calcula-se que apenas 10% das minas do Congo sejam exploradas legalmente.

O comandante Sheka era responsável por um dos centros de negociações de minérios da estrada entre Lobuto e Walikali, onde estão pequenas aldeias satélites das minas escondidas na floresta. Um dia, ele matou o patrão, roubou seu dinheiro e iniciou seu próprio grupo Mai-Mai – nome dado às gangues locais, com interesse puramente econômico.

Em uma pista improvisada de pouso na altura de Kilambo, pequenos aviões aterrissam e decolam com frequência. “Trazem equipamentos para mineração e voltam levando sacos de minerais”, disse ao Estado o especialista de uma organização internacional, há sete anos no Congo. “O destino oficial é Goma, mas extraoficialmente… Como explicar que Ruanda e Uganda se tornaram exportadores de minérios? Onde estão suas minas? Vendem para mercados como a China e, de lá, para EUA e Europa, que lavam as mãos sobre a procedência.”

O governo congolês é visto como fraco e corrupto. Enquanto a reportagem conversava com moradores de Lwibo, jovens do FDLR passavam caminhando tranquilamente com velhas Kalashnikov; um deles trazia um porco no laço e uma AK-47 personalizada – o cabo de madeira pintado de branco e o metal de um dourado reluzente, possivelmente ouro.

À luz do dia, controlam vilarejos e estradas. Vigiam seus impérios miseráveis do alto de pequenos montes – milicianos desleixados e maltrapilhos, armados com fuzis de assalto, o cinturão de balas à tiracolo, óculos escuros com o aro irremediavelmente dourado e um cigarro de bangi (a maconha congolesa). Pela estatura, alguns aparentam ter 11 ou 12 anos, mas num país como o Congo não é possível saber a idade – a desnutrição impede o crescimento, enquanto a guerra endurece o semblante e envelhece seus rostos, enrugados e com marcas de navalha. São crianças velhas.

Entre Lwibo e Masisi, havia pelo menos três postos de checagem: cabanas de madeira e cancelas de bambu, onde os rebeldes cobram pedágio de camponeses que passam com banana, mandioca, amendoim para vender no vilarejo mais próximo – tomam-lhes algo como 10% da colheita. “Todos os grupos armados sobrevivem da exploração das minas. É uma questão-chave desse conflito. Os impostos são um complemento”, disse o especialista.

O Estado viu minas de coltan – pequenas Serras Peladas negras – e, à noite, caminhões sendo abastecidos com o material sob a vigilância dos rebeldes. Um bando armado estava a 500 metros da base da Missão da ONU em Nyabuondo. Dois jovens se aproximam do carro da MSF, que transportava uma grávida em trabalho de parto. Só se vê o brilho do cano de seus fuzis e o branco dos olhos. Querem revistar o carro. “MSF!”, avisa o motorista. A organização, neutra, não permite que homens armados entrem no carro e trafega sem seguranças. “Sigara! Um cigarro!”, eles pedem. E somem na escuridão.

Lampedusa, Eritreia e o silêncio do Ocidente

Would-be immigrants stand on the deck of a Coast Guard rescue vessel as they arrive in the harbour of the southern Italian island of Lampedusa

O mecanismo é, infelizmente, muito conhecido: os refletores acendem intermitentemente quando se trata dos diretos humanos em determinados países. Todavia, é melhor que se mantenham apagados e não chamem atenção quando os líderes são sócios comerciais ou aliados estratégicos.  Às vezes, é impossível não chamar atenção e, então, surge a indignação frente ao “Satanás” de plantão, que deve ser derrotado com uma guerra. A história contemporânea está repleta de exemplos: os aliados de ontem se convertem, não se sabe como, em adversários irredutíveis, como aconteceu com Saddam, Gaddafi e, agora, com Assad. Entre os que gozam de “um pouco da sombra” e do silêncio dos governos democráticos ocidentais está, por exemplo, o ditador eritreu Isaías Afewerki. Além disto, por detrás da fuga de migrantes da Europa, incluídos os que perderam a vida em Lampedusa, na semana passada, estão as terríveis condições de vida do povo eritreu. A maioria dos migrantes que perdeu a vida tentando chegar à costa siciliana provinha, justamente, da Eritreia.

[Andrea Tornielli, Vatican Insider, 8 out 2013; tradução do Cepat, publicado no IHU, 12 out 2013] O sítio web “Il Sismografo”, do qual se ocupam alguns jornalistas da Rádio Vaticana, como Luis Badilla, lembra – com um pouco de saudável realismo – o que está ocorrendo, isto é, a justa indignação frente ao enésimo massacre mediterrâneo, mas, ao mesmo tempo, diante de um silêncio ensurdecedor sobre as responsabilidades daqueles que matam de fome os povos de onde provêm estes migrantes.

“Nestes dias, em muitos lugares institucionais da Europa – escreveu Badilla – recorda-se das vítimas com ‘um minuto de silêncio’ (… talvez fosse apropriado somá-lo a muitos anos de silêncio). Seguirão falando sobre eles e isto é algo positivo, justo e necessário. Mas pouquíssimos até agora, ou melhor, quase ninguém, lembrou com a força e valentia que por detrás da palavra “Lampedusa” se esconde outra: “Eritreia”, um campo de concentração ao ar livre que existe há décadas… O ditador desta pequena nação do nordeste africano, Isaías Afewerki, encontra-se há 40 anos no poder (no qual se mantém através de todos os meios possíveis, principalmente através daqueles condenados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem): primeiro como líder absoluto e implacável da Frente de Libertação da Eritreia e depois, desde 1993, como chefe de Estado e de governo”.

“Mais de 5 milhões de eritreus são seus reféns – continua Badilla – e, muitas vezes, são também aqueles que conseguiram fugir e viver em outros países, mas para proteger seus familiares que ficaram em Eritreia devem pagar uma quantia aos agentes consulares de Afewerki. No entanto, este senhor (e seus colaboradores) é amigo de todos os governos democráticos mais importantes: Estado Unidos, Europa Ocidental e Centro Oriental, da África e Ásia. De acordo com as mesquinhas conveniências geopolíticas que encontram nele um aliado momentâneo. Todos calam. Nenhum dos governos do mundo condenaram o governo de Afewerki, após os trágicos acontecimentos de Lampedusa, como, ao contrário, fizeram com os governos de outros ditadores do passado, como Mubarak, Gaddafi ou Bel Alí, em circunstâncias semelhantes. Da capital eritreia, Asmara, não pronunciou nem sequer uma palavra de dor ou de pêsames pela morte de mais de 300 filhos desta terra, que buscavam um pouco de pão, teto e alfabetização, que, junto com a liberdade, Afewerki, nega sistematicamente desde 1993. Enquanto isso, representantes de Asmara, nestes dias após a tragédia de Lampedusa, são recebidos pelos municípios e distritos, italianos e europeus, como “hóspedes de honra”.

A Anistia Internacional descrevia, cinco anos atrás, a situação do país: “O governo proibiu os jornais independentes, os partidos de oposição, as organizações religiosas não registradas e, na verdade, qualquer atividade da sociedade civil. Cerca de 1.200 pessoas, que haviam feito pedidos de asilo para o Egito e para outros países, foram presos ao chegar a Eritreia. Da mesma forma, milhares, entre prisioneiros de consciência e presos políticos, têm permanecido durante anos encarcerados. As condições das prisões são péssimas. Os considerados dissidentes, desertores ou os que se negam a prestar o serviço militar obrigatório (ou outros que se atreveram a criticar o governo) têm sido submetidos, juntamente com suas famílias, a castigos e humilhações. O governo reagiu peremptoriamente contra qualquer crítica em matéria de direitos humanos”.

Uma “vergonha da vergonha” é a situação dos cristãos, que sofrem primeiro por serem eritreus e depois pela sua fé. A Santa Sé, para tentar proteger as populações, privilegia o caminho da prudência nas declarações públicas (com o mesmo realismo que se usava nos tempos do nazismo e dos regimes comunistas; atitude que, por vezes, tem sido considerada controversa). A tragédia de Lampedusa poderia converter-se em uma oportunidade para começar a abrir os olhos frente a esta realidade esquecida.