Perguntas e Respostas sobre a Síria ~ por Luís Leiria

Afinal, quem são os alauítas, a seita religiosa predominante no regime sírio? E o que é o Baath? É normal que numa república haja sucessão dinástica? O regime sírio é “progressista? Eis algumas das perguntas a que procuramos responder.

[Luis Leiria, Esquerda.net, 29 fev 12]

Quando foram definidas as atuais fronteiras da Síria?

Depois da Primeira Guerra Mundial, que marcou o fim do Império Otomano, França e Grã-Bretanha partilharam entre si a região, dividida a régua e esquadro em negociações secretas que decorreram em 1916, e que tiveram como representantes de cada lado os diplomatas François Georges-Picot e Sir Mark Sykes. O acordo Sykes-Picot, como ficou conhecido, criou as fronteiras da atual Síria, que são apenas uma parte da Síria histórica. Esta compreendia, além da Síria atual, o Líbano, a Jordânia e a Palestina. Depois da entrada das tropas francesas em Damasco em 1920, começou o mandato francês sobre o território, que só terminou no final da II Guerra Mundial.

Quando ocorreu a independência da Síria?

Em 1946, depois de longas negociações com os franceses. Hachem al-Atassi foi o primeiro presidente sírio, país que, desde o início, se conformou como uma república.

Qual é a composição confessional e étnica da Síria?

Os muçulmanos são a esmagadora maioria, cerca de 90% da população, e cerca de 9% são cristãos (a Síria é o único país do mundo onde ainda se encontra quem fale aramaico, e o único país onde se pode ouvir o Padre-Nosso ser recitado naquela que era a língua de Jesus Cristo).

Especificando mais, 74% da população é sunita, 12% alauíta, 9% cristã e 3% druza.

Etnicamente, cerca de 90% da população é árabe, e 9% são curdos, havendo também arménios, turcomenos, assírios e circassianos.

Quem são os alauítas?

São uma corrente muçulmana que durante muito tempo foi considerada por sunitas e também por xiitas como estando fora dos princípios do Islão, até que algumas entidades voltaram a considerá-los muçulmanos. O seu nome significa “que prestam culto a Ali”. A sua posição mais heterodoxa, sob o ponto de vista do Islão, é acreditar numa tríade divinizada, formada por Ali, Maomé e Salman, “o Persa”, um dos Companheiros do Profeta. (Fonte: Dictionnaire de Civilisation Musulmane, de Yves Thoraval).

Por que a minoria alauíta se tornou dominante na Síria?

Esse é um motivo de controvérsia e de debate académico, não havendo unanimidade. Há quem diga que foi a própria França que quis formar um estado alauíta para dividir os nacionalistas sírios. Outra explicação seria que o recrutamento para o exército seria feito predominantemente nas camadas mais pobres, que eram as minorias confessionais. Como os alauítas eram a minoria mais numerosa, teriam ficado com um peso desproporcional no exército e, depois da independência, teriam purgado sucessivamente as outras minorias. O que é certo é que o domínio alauíta sobre as principais instituições do exército e do Estado se consolidou depois do golpe de Estado de Hafez Assad, em 1970.

O que é o Baath?

O partido Baath (ou Baas) foi fundado em Damasco, em 1947, a sua doutrina combinava o nacionalismo árabe e o pan-arabismo, com o objetivo de reunir os diferentes estados árabes numa só nação. O seu fundador, Michel Aflak, considerava o papel preponderante do Islão na nação árabe, mas defendia um estado laico. O lema do Baath era Unidade (de todos os árabes), Liberdade (dos árabes em relação aos interesses ocidentais imperialistas), e Socialismo (o socialismo árabe, que se opunha ao marxismo porque dava predominância à pessoa e não à classe social).

O Baath chegou ao poder na Síria e no Iraque, mas foi-se transformando numa caricatura dos seus ideais iniciais.

Quando começou o predomínio da família Assad?

A dinastia Assad: ao centro, o pai, Hafez Assad; Ã esquerda, Bassel Assad, o filho que seria o sucessor e morreu de acidente ao volante do seu Mercedes; Ã direita, Bashar Assad.

No golpe de estado desferido por Hafez Assad em 13 de novembro de 1970, que desencadeou a chamada “revolução corretiva” dentro do regime que já era do Baath. Assad era ministro da Defesa e depôs o primeiro-ministro Salah Jedid.

Quando chegou ao poder Bashar al-Assad?

No ano 2000, depois da morte do pai. Bashar al-Assad tinha pouco interesse pela política, formou-se em medicina, praticou como oftalmologista e estava a morar em Londres, e a fazer uma especialização, quando o irmão Bassel, que fora preparado pelo pai para sucedê-lo, morreu num acidente de carro. Bashar recebeu então ordens do pai para voltar e entrar na Academia militar, onde chegou a coronel. Quando o pai morreu, o jovem Bashar sucedeu-lhe, submetendo-se a referendo (candidato único), mas foi preciso alterar a Constituição para reduzir a idade do presidente de 40 anos para 34.

Que tipo de regime é o atual regime sírio?

Teoricamente, é uma república multipartidária. Na prática, é uma ditadura dinástica. A Constituição assegura a predominância do Partido Baath, e a sucessão é no interior da dinastia Assad. Por todo o lado na Síria se veem retratos e posters da tríade: Hafez Assad, o pai, Bassel, o filho morto, e Bashar, o filho presidente. Até os uniformes escolares têm a efígie dos três Assad bordados na lapela. O exército e as forças de segurança asseguram o poder com mão de ferro. Não há liberdade de expressão nem de organização.

Mas não há vários partidos?

Há onze partidos que fazem parte da Frente Nacional Progressista, dominada pelo Baath. Na prática, não têm qualquer autonomia. Há outros cinco partidos legalizados, fora da Frente, sem qualquer expressão, e uma míriade de partidos forçados à clandestinidade.

O regime sírio atual não é “progressista”?

Não. É uma ditadura. Para além do predomínio do Baath assegurado na Constituição, da sucessão dinástica, típica das monarquias, vale a pena lembrar que a Síria participou da Primeira Guerra do Golfo ao lado dos Estados Unidos, e que colaborou diretamente com a CIA recebendo presos ilegalmente sequestrados pela CIA que eram torturados antes de irem para Guantánamo, como foi o caso de Maher Arar, cidadão canadiano-sírio. Segundo um ex-agente da CIA citado pela Counterpunch, “se quiser um interrogatório sério, mande o preso para a Jordânia. Se quer que ele seja torturado, mande-o para a Síria”.

A revolta contra o regime sírio nada tem a ver com a Primavera Árabe?

Pelo contrário, é parte integrante do levante que abalou os países árabes desde o início do ano passado. A própria forma como começou é prova disso. Na cidade de Deraa, no dia 16 de março de 2011, o povo saiu à rua indignado pela prisão e tortura de crianças que tinham sido apanhadas a fazer pinturas de rua que diziam: “O povo quer que o regime caia.” Vale recordar que 16 de março foi cerca de dois meses depois da queda do presidente tunisino Ben Ali (14 de janeiro), cerca de um mês após a queda de Mubarak no Egito (11 de fevereiro) e dois dias depois de a Arábia Saudita ter mandado tropas para esmagar a revolta do Bahrein.

As forças de segurança do regime sírio estavam tão aterrorizadas diante da possibilidade de a revolta eclodir no seu país, que torturaram barbaramente as crianças (arrancaram-lhes unhas) e mataram três. Quando os pais vieram exigir a sua libertação, o governador disse: “Basta fazerem outras [crianças]. E se não forem capazes, tragam-nos as vossas mulheres, que nós mesmos fazemos”. (Ver o relatório «Syrie, une libanisation fabriquée» que até é bastante benévolo em relação ao regime sírio).

Diante dos crimes, do insulto e da humilhação, não restava outra atitude senão a revolta, que explodiu e cresceu a partir daqui.

A curiosa teoria de que a revolta síria foi fabricada artificialmente por forças estrangeiras, e que a Síria seria uma espécie de “buraco negro” imune à revolta árabe, não tem qualquer base real.

Quem é a oposição síria?

Comité nacional de Coordenação para a Mudança Democrática: agrupa 11 partidos árabes, curdos, siríacos e personalidades independentes. Em 20 dirigentes, cinco são alauítas. É o sector da oposição com mais enraizamento interno, e todos os seus dirigentes são oposicionistas reconhecidos que já passaram pelas cadeias do regime. Defende o derrube do regime e opõe-se à intervenção estrangeira, mas pede o envio de observadores de ONGs e de países, que poderiam ajudar à proteção da população. Tem pouco reconhecimento externo.

Conselho Nacional da Síria (CNS): a sua formação foi anunciada a 23 de agosto em Istambul, com o objetivo de “representar as preocupações e reivindicações do povo sírio”. O seu modelo é obviamente o Conselho Nacional de Transição da Líbia, e o seu presidente é Burhan Ghalioun, um académico que vive em Paris. A maioria dos seus membros, aliás, vive no exílio.

O CNS tem o apoio da Irmandade Muçulmana e de entidades como a Organização Democrática Assíria e alguns dissidentes curdos. O CNS afirma representar 60% da oposição, dado que é muito difícil de avaliar, e é reconhecido ou apoiado pela França, EUA, Reino Unido, Espanha, Bulgária, Tunísia, Líbia. Turquia, Itália, Bélgica, Alemanha, Canadá, Holanda consideram-no um parceiro de diálogo. No Médio Oriente, o maior apoio vem da Arábia Saudita e do Qatar. Apesar de no início se ter oposto a uma intervenção externa, mudou de posição e recentemente apelou abertamente à intervenção estrangeira no país.

Grupo Patriótico Sírio: grupo que nasceu de uma cisão do CNS e foi anunciado a 27 de fevereiro de 2012, é dirigido pelo ex-juiz e advogado Haytham Al-Maleh, conhecido por fazer oposição à dinastia Assad desde 1970. Fazem parte também alguns importantes ex-membros do CNS, entre os quais Walid Al-Bunni, ex-responsável dos negócios estrangeiros do CNS. O grupo criticou o CNS por não ter “tido resultados satisfatórios, não ter conseguido pôr a funcionar o seu escritório executivo nem adotado as reivindicações revolucionárias no interior da Síria”. O novo grupo anunciou também o apoio ao Exército Sírio Livre.

Exército Sírio Livre: principal grupo armado da oposição, é formado por desertores das forças armadas sírias. Declarou que não tem objetivos políticos, apenas o derrube do governo de Bashar al-Assad. Também declarou que o conflito não é sectário, que tem nas suas fileiras alauítas, e que não haverá represálias quando o regime for derrubado. No entanto, uma reportagem do diário libanês Daily Star (23 de fevereiro), citada por Alan Gresh, confirma que este exército tem bases no Líbano (e para além disso também na Turquia); e que tem levado a cabo represálias confessionais, matando alauítas por vingança. Da mesma forma, combatentes iraquianos juntaram-se aos insurretos sírios, incluindo membros da Al-Qaida, o que foi confirmado pelo departamento de Estado dos Estados Unidos.

Recentemente anunciou a constituição de um Alto Conselho da Revolução, liderado pelo general Mustafa Ahmed al-Sheikh, o desertor de mais alta patente militar, que se exilou na Turquia.

Os aliados do regime sírio têm mantido o apoio?

Pelo menos um tradicional aliado de Bashar Al-Assad, a organização palestiniana Hamas, que tinha a sua sede em Damasco, retirou o seu apoio. O seu principal dirigente, Khaled Meshaal, que vivia em Damasco, abandonou discretamente o país depois de se ter recusado a fazer comícios de apoio ao governo sírio nos acampamentos de refugiados palestinianos depois do início da revolta.

No dia 24 de fevereiro de 2012, Ismail Haniyeh, chefe do governo de Gaza, declarou: “Saúdo todas as Nações da Primavera Árabe e saúdo o heroico povo da Síria que está a lutar pela liberdade, a democracia e as reformas”.

Em Gaza, Salah al-Bardaweel, dirigente do Hamas, disse a milhares de pessoas no campo de refugiados de Khan Younis que “os corações do povo palestiniano sangram com cada gota da sangria na Síria”, enviando uma mensagem “aos povos que ainda não se libertaram, aqueles povos que ainda sangram diariamente.” A multidão respondeu: “Deus é Grande! Vitória para o povo sírio!”

Post publicado originalmente aqui.

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