O relatório ‘Violência contra os Povos IndÃgenas do Brasil’, referente a 2014, aponta um aumento dos casos de violência e violações contra integrantes das comunidades indÃgenas. No perÃodo, 138 Ãndios foram assassinados, contra 97 casos no ano anterior. Um dos dados mais alarmantes é o número de suicÃdios, que chegou a 135, ante 73 ocorrências em 2013.
[Publicado originalmente na Agência Senado, 7 ago 2015] Produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o relatório foi debatido em audiência pública nesta quarta-feira (5), na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). A antropóloga Lúcia Helena Rangel salientou que o relatório ainda é uma expressão parcial da realidade, pois o Cimi não consegue captar todas as ocorrências em todo o PaÃs.
“Mesmo assim, os registros são assustadores”, comentou a antropóloga, coordenadora da pesquisa.
O debate foi proposto pelo senador Telmário Mota (PDT-RR), que se revezou na direção dos trabalhos da audiência com o presidente da comissão, Paulo Paim (PT-RS). Na avaliação dos convidados, os fatores de estÃmulo à violência são antigos e decorrem fundamentalmente da negação do direito à terra, da disputa em torno de áreas indÃgenas e conflitos possessórios.
“O que vemos é o não reconhecimento, por parte do Estado, à s comunidades indÃgenas, que permanecem tendo seus direitos negados”, observou Lúcia Rangel.
Mesmo no caso dos suicÃdios, o entendimento é de que em grande medida as ocorrências estão relacionadas à falta de perspectivas para indivÃduos que precisam da terra para viver e trabalhar, em harmonia com suas culturas. Os 135 casos de 2014 configuram o maior número em 29 anos, com predomÃnio de ocorrências no Mato Grosso do Sul (48), notadamente entre Ãndios Guarani-kaiowá.
A mortalidade na infância foi ainda apontada como indicador de situação de violação de direitos: o relatório registra 785 mortes de crianças indÃgenas, na faixa de 0 a 5 anos, contra 693 no ano anterior. A situação mais grave se situa entre os Ãndios Xavantes, no Mato Grosso, com a taxa de mortalidade chegando a impressionantes 141,64 mortes por mil crianças. Já média nacional registrada pelo IBGE, em 2013, foi de 17 por mil.
Segundo o relatório, em 2014 mais do que dobraram os registros de invasões possessórias, exploração ilegal de terras indÃgenas e outros danos ao patrimônio. Enquanto em 2013 foram 36 ocorrências, em 2014 aconteceram 84 casos.
Funai
O ex-senador João Pedro Gonçalves da Costa (PT), que assumiu em junho passado o comando da Fundação Nacional do Ãndio (Funai), destacou a importância da audiência diante da “dÃvida histórica†que o PaÃs tem com os povos indÃgenas. Reconheceu que é essencial avançar na questão das terras indÃgenas. “Não pode haver Ãndio sem terra; os povos indÃgenas não podem viver sem história do lugar ponde pisaram seus ancestrais”, defendeu.
João Pedro anunciou a intenção de percorrer de imediato as aldeias de todo o PaÃs, começando pelo Mato Grosso, lugar de conflitos possessórios mais graves. Também salientou o papel do Congresso e do Judiciário, além de Estados e prefeituras, na solução dos problemas. Depois, apelou aos senadores por apoio para reforçar o orçamento da Funai, por meio de emendas parlamentares.
Entre os senadores, as manifestações foram de solidariedade à s demandas dos povos indÃgenas. Para a senadora Simone Tebet (PMDB-MT), existe a perspectiva de solução para os conflitos sobre terras. Mostrou otimismo com a aprovação de proposta de emenda constitucional (PEC 71/2011) que prevê pagamento de indenizações a produtores que estejam em posse “mansa e pacÃfica†das terras, o que agilizará a devolução das áreas aos Ãndios.
“Estratégia de ataque”
O secretário-executivo do Cimi, Kleber Cesar Buzato, denunciou o que definiu como a “estratégia anti-indÃgena†no PaÃs. Um dos objetivos seria impedir o reconhecimento e a demarcação das terras tradicionais que continuam invadidas, na posse de não-Ãndios. Outro seria reabrir e rever procedimentos de demarcação já finalizados. Por fim, disse que há ainda o interesse em invadir, explorar e mercantilizar as terras já demarcadas e sob a posse de Ãndios.
“Se não tomarmos iniciativas muito firmes, coordenadas e articuladas, a tendência é de se aprofundar ainda mais esse quadro de violências contra os povos indÃgenas”, alertou.
Em seguida, Buzato listou iniciativas e decisões adotadas, em separado, pelo Executivo, Legislativo e o Judiciário que, a seu ver, traduzem interesses de ruralistas, mineradoras e empreiteiras, entre outros segmentos do mercado. Uma delas seria o Decreto 7.957/2013), que regulamenta a atuação das Forças Armadas no “combate a povos e comunidades locais†que resistirem a empreendimentos em seus territórios. Outra veio por meio da Portaria Interministerial 60/2015, que define procedimentos a serem seguidos pela Funai para licenciamento ambiental de empreendimentos que impactam essas terras.
No âmbito do Legislativo, um dos projetos é o PL 161/1996, da Câmara dos Deputados, que regulamenta a mineração em terras indÃgenas, com abertura à exploração pelo setor privado, que hoje é vedada. Foi citada ainda uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215/2000), que transfere ao Congresso o poder de demarcar e rever a processos de terras indÃgenas já demarcadas.
“Na prática, significa atribuir à bancada ruralista o poder de decidir ou não sobre a demarcação das terras. Se aprovada, a tendência é não passa mais nada”, comentou.
Quanto ao Judiciário, Buzato mencionou julgamento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que atribuiu interpretação mais restritiva a dispositivo constitucional que define o conceito de “terra tradicionalmente ocupada pelos povosâ€. Com base nessa decisão, segundo ele, foi possÃvel anular atos administrativos de demarcação de terras de povos Guarani-Kaiowá e Terena, no Mato Grosso do Sul, e do povo Canela-Apãniekra, no Maranhão.
Desamparo
Alberto Terena, representante do Povo Terena e da Articulação dos Povos IndÃgenas do Brasil (Apib), afirmou que os povos indÃgenas e seus lÃderes vivem uma situação de desespero diante do permanente desrespeito a seus direitos. Segundo ele, a luta não começou com a atual geração nem as anteriores, mas desde que os colonizadores europeus ocuparam o PaÃs. Lembrou que os Terena, hoje com mais de seis mil indivÃduos, dispõem de reserva com pouco mais de 2 mil hectares e esperam longamente pela devolução de terras esbulhadas.
“Achavam que éramos poucos e que serÃamos exterminados ou integrados à sociedade. Mas isso não aconteceu, e a nova geração se multiplica; por isso, precisamos das nossas terras”, comentou.
Outro lÃder, Kâhu Pataxó, da Federação IndÃgena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia, relatou a ocorrência de regulares conflitos na região e o assassinato de Ãndios que lutam pela recuperação de suas terras. Também denunciou o uso excessivo de força, seja por efetivos da PolÃcia Federal ou da PolÃcia Militar do estado, na tentativa de retiradas dos Ãndios das terras. A seu ver, esses conflitos vão de fato se agravar se vier a ser aprovada a PEC 215.
“O que vamos ver é o extermÃnio final dos Ãndios”, comentou, antecipando que as comunidades estão dispostas a dar a vida para garantir suas terras.
Antonio Carlos Moura, que falou pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz, também vinculada à CNBB, também apontou ações de “conluio†entre o Estado brasileiro e segmento econômicos na continuidade do esbulho de terras e direitos dos Ãndios. Destacou a recente encÃclica do papa Francisco como fonte de inspiração para luta pelo reconhecimento desses direitos.
Participou ainda da audiência a antropóloga PatrÃcia de Mendonça Rodrigues, que comoveu colegas e plateia com o relato da história dos Avá-Canoeiro do Araguaia, também mencionada no relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014. Caçadores, eles chegaram à região fugindo das frentes de colonização. Por seguidas gerações, foram atingidos por incêndios de aldeias, ações de caçadores de Ãndios e ataques de tribos inimigas, com sucessivos massacres.
Já reduzidos a menos de dez indivÃduos, foram então pegos, com a ajuda de agentes do aparelho de repressão. Passaram a viver em área de uma fazenda do Bradesco, submetidos a violências e privações. Só não desapareceram completamente porque se reproduziram, por meio de uniões com indivÃduos de outras etnias (Javaé, Tuxá e Karajá). Hoje somam pouco mais de 20 pessoas.