[Susana de Deus, UOL, 27 jul 2015] O aumento do número de pessoas que arriscam suas vidas, fugindo de conflitos sangrentos que assolam diversos paÃses da Ãfrica subsaariana ou buscando condições dignas de sobrevivência para si e suas famÃlias, colocou a Europa estado de alerta.
Táticas militares foram traçadas para coibir a imigração, fronteiras foram fechadas e inúmeras reuniões feitas para se discutir a desestabilização que a chegada dessas pessoas pode causar à economia europeia. Em meio a todas essas discussões, uma informação passa despercebida: não são os paÃses europeus os mais impactados pela imigração e o influxo de refugiados no mundo.
A maioria daqueles que se veem levados a deixar seus paÃses de origem acaba permanecendo nos arredores, muitos com a esperança de retornar tão logo o conflito retroceda. A atuação de Médicos Sem Fronteiras na maioria desses contextos de violência nos faz menos otimistas do que essas pessoas que levam consigo quase nada além de esperança.
A continuidade dos conflitos e das situações de insegurança fazem crer que o número de refugiados não deve retroceder. E o debate acerca da garantia de seus direitos, sua dignidade e acesso à ajuda humanitária precisa ser priorizado.
Entre os dez paÃses que abrigam o maior número de refugiados no mundo, não há um paÃs europeu sequer. A relação divulgada pela agência da ONU para Refugiados é liderada pela Turquia, seguida de Paquistão e LÃbano. Na lista constam ainda Irã, Etiópia, Jordânia, Quênia, Uganda e Chade.
Na Nigéria, a violência perpetrada pelo Boko Haram provocou a fuga de mais de 18 mil pessoas que foram buscar proteção na região do Lago Chade, desde o inÃcio do ano. Do outro lado da fronteira, essas pessoas encontram uma situação de pobreza extrema e um nÃvel de insegurança ainda significativo, que já motiva o deslocamento interno da própria população do Chade.
Esse não é único destino dos nigerianos nos arredores. Desde janeiro de 2015, os vizinhos NÃger e Camarões também recebem milhares de refugiados – já se somam quase 140 mil. A crise nigeriana está acentuando uma situação já precária, afetando populações que já eram extremamente vulneráveis.
Sair do paÃs em que nasceu, deixando para trás casa, amigos e familiares para se tornar um refugiado, definitivamente, é das mais difÃceis decisões. É uma opção amparada em desespero. Nos três barcos usados por MSF no resgate de refugiados em meio à perigosa travessia pelo Mar Mediterrâneo, histórias como a da nigeriana Sandra se repetem. Grávida de oito meses, ela era a única mulher no meio dos 92 homens resgatados de um barco inflável à deriva em 13 de maio.
Sandra havia imigrado da Nigéria para a LÃbia e não considera mais voltar para seu paÃs de origem. Para não viver em meio à violência de incessantes confrontos, ela e o marido decidiram que a melhor saÃda seria arriscar a vida da mãe e do bebê na travessia que, só este ano, já matou 1.800 pessoas rumo à Europa. O marido ficou na LÃbia trabalhando. Sandra seguiu com o cunhado, que havia deixado a Nigéria para acompanhá-la. Foram duas das 5.555 pessoas resgatadas pelos barcos de MSF até agora.
As pessoas que arriscam suas vidas nessas viagens, frequentemente, são as mesmas que assistimos em seus paÃses de origem, como Nigéria, LÃbia, SÃria e Sudão. E, em contato com essas pessoas, nossas equipes constataram o óbvio: não se pode dissociar a narrativa da travessia das histórias épicas das quais elas fazem parte.
Estamos num momento da história muito triste e peculiar. Desde a segunda guerra o mundo não via um deslocamento tão grande de pessoas. E talvez nunca se tenha visto tantas portas fechadas a quem, desesperadamente, clama por proteção. A humanidade não pode falhar com essas pessoas.
É fundamental que cobremos da Europa, e de outros continentes que estão recebendo os refugiados, a dignidade humana a que elas têm direito. As ações precisam ser concretas e pautadas na compaixão pelas pessoas, em substituição ao discurso hostil da rejeição institucional.
Susana é diretora-geral da Médicos Sem Fronteiras Brasil