Ore comigo por estas famÃlias. A maneira mais fácil de lidar com esta realidade é dizer que são responsabilidade do governo; quem sabe caiba uma denúncia. Esta, porém, não é a única resposta. Existe um outro caminho, árduo, sacrificial, cristão, subversivamente evangélico que poucos estão dispostos a seguir. Estou orando por parceiros que estejam dispostos a agir e seguir comigo. Se você for um deles, ore novamente e entre em contato.Â
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Eles fugiram de 28 cidades na SÃria, todas destruÃdas pela guerra que afeta o paÃs há mais de quatro anos. Há dois meses, vivem juntos nos andares mais altos de um antigo prédio comercial, recém-ocupado por famÃlias sem-teto.
[Ricardo Senra; BBC Brasil em São Paulo; 16 set 2015] Longe de milÃcias, rebeldes armados e exércitos, esses 51 árabes – incluindo sÃrios, palestinos, egÃpcios e uma marroquina – tentam recomeçar suas vidas em um bairro de nome sugestivo no centro de São Paulo.
Estão na Liberdade – depois de cruzarem a fronteira sÃria, passarem pela Embaixada brasileira no LÃbano, fazerem escala nos Emirados Ãrabes, aterrissarem em Guarulhos e tentarem, em vão, vagas em abrigos públicos e hotéis baratos na região do Brás.
LÃder no ranking de paÃses que mais recebem refugiados de guerra na América do Sul, o Brasil promete ampliar a emissão de vistos para refugiados de paÃses em guerra. Mas estes estrangeiros reclamam de dificuldades – especialmente em São Paulo, onde o valor dos aluguéis dobrou nos últimos sete anos (a inflação no perÃodo foi de 54%).
À BBC Brasil, eles narram a tristeza da perda de pessoas queridas para a guerra, as dificuldades para recomeçar a vida do outro lado do mundo e revelam esperança – tanto no futuro no Brasil, quanto em reerguerem um dia suas velhas casas.
Duplo exÃlio
Nos salões de piso gasto de madeira, onde já funcionaram firmas de advocacia e contabilidade, os estrangeiros dormem em colchões distribuÃdos pelo chão, próximos a malas que cruzaram oceanos com roupas, café, cigarros e o Corão, livro sagrado do islã.
A precariedade do prédio ocupado por mulheres de véu e homens com marcas do front de guerra é compensada com organização pelos novos moradores. Costume árabe, ninguém anda de sapatos dentro do salão. Os colchões têm roupa de cama esticada, a louça está lavada e camisas são enfileiradas em um cabide velho de loja.
Somos recebidos com “Salaam Aleikum” (saudação árabe) e chá preto servido em copos de requeijão.
A pequena Falasten, de 10 anos, arrisca o português: “Bom dia”, “Sejam bem-vindos”. Mas o idioma predominante ali é o árabe – interrompido por frases vagas em inglês, aprendidas na escola, quando não havia guerra.
A maior parte destes refugiados tem origem palestina e vivia no perigoso campo de Yarmouk, nos arredores de Damasco, capital sÃria.
Segundo a ONU, 18 mil pessoas resistem hoje no local “sob constante ameaça de violência armada, sem condições de acesso a água, comida e serviços básicos de saúde”.
Para alguns dos mais velhos, o pouso em São Paulo representa um segundo exÃlio. Antes de se mudarem com as famÃlias para a SÃria, eles viveram encurralados sob o fogo cruzado entre israelenses e palestinos.
‘Sinto falta da minha respiração’
Amina não vai à escola há três anos por conta da guerra. No perÃodo, ela viu amigos e dois primos morrerem e precisou dormir com a famÃlia em tendas improvisadas após bombardeios destruÃrem sua casa. “Todos os lugares na SÃria estão em guerra”, sussurra a jovem, coberta por uma túnica de flores brancas que só deixa ver seu rosto, suas mãos e seus pés. Ainda assim, com sorriso triste, diz querer voltar. Junto ao pai (que trabalhava como comerciante na terra natal), à mãe e a seis irmãos, ela está no Brasil há duas semanas – e, como as irmãs, nunca saiu sozinha do salão onde dorme sem qualquer privacidade.
“Sinto falta da vida”, diz Amina, agora com voz forte, em uma escalada que só é interrompida pelo choro. “De meus amigos na SÃria. Meus parentes na SÃria. Todo mundo na SÃria. A vida na SÃria. Minha respiração na SÃria. Meu coração na SÃria.” Sua mãe, Hiba, primeiro sorri. Depois chora também.
Entrar no Brasil
Só o Brasil me deu visto. Só”, conta o cozinheiro Mohammed, em frente a dois maços de Marlboro Light com dizeres em árabe. “Não o LÃbano, não a Turquia, não a Europa, não a Arábia Saudita. Só o Brasil.” Como a maioria dos colegas – entre eles economistas, comerciantes, chefs de cozinha e até um mergulhador -, ele não consegue emprego com carteira assinada e admite que preferiria a Europa ao Brasil. “É melhor, tem mais dinheiro. Mas é mais perigoso.”
No Brasil, diferente de paÃses europeus como Alemanha, o governo federal não oferece ajuda financeira a refugiados de guerra. A lei de refúgio brasileira, de 1997, considera a “violação generalizada de direitos humanos” para o reconhecimento de refugiados, seguindo a Declaração de Cartagena sobre a Proteção Internacional de Refugiados, de 1984.
No caso especÃfico da SÃria, o Conare (Comitê Nacional para Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça) facilita oficialmente a entrada no paÃs de fugitivos da guerra. O procedimento se repete diariamente: a Embaixada brasileira em Beirute, no LÃbano, emite vistos de turista válidos por 90 dias para pessoas de diferentes nacionalidades que vivem na SÃria.
Assim que chegam ao Brasil, eles são orientados a procurar a PolÃcia Federal para darem entrada em seu pedido de refúgio (que demora até dois anos para ficar pronto). O pedido, entretanto, gera imediatamente um protocolo, que já permite aos refugiados tirar documentos como CPF e carteira de trabalho antes mesmo do visto definitivo.
Até o inÃcio da guerra, em 2011, só 16 sÃrios viviam refugiados no Brasil, segundo a Acnur (agência das Nações Unidas para refugiados). Hoje são mais de 2 mil.
Viver no Brasil
Os entrevistados dizem conseguir ganhar, no máximo, R$ 1 mil por mês, em jornadas de trabalho que começam à s 7h e terminam depois das 22h. Com famÃlias de até 8 pessoas, eles dizem que precisam de tempo até garantir os recursos necessários para pagar aluguel na cidade, onde é difÃcil, mesmo na periferia, encontrar um único quarto por menos de R$ 500.
A profissão mais comum é a de cozinheiro – o perfume de esfirras e doces assados sobe pela escadaria escura do prédio -, além do ofÃcio de camelô.
Do salão onde dorme Abdel, além do cheiro de comida emanam acordes acelerados de alaúde, instrumento de corda popular no Oriente Médio. “Neste momento, não penso em voltar para SÃria”, diz o músico profissional, que no Brasil trabalha fabricando doces como barazeq (de gergelim e mel), basboosa (bolo de trigo) e halwa (biscoito de gergelim e açúcar derretido). Ele vivia com parentes em um prédio de seis andares que foi bombardeado três vezes, até se reduzir a escombros.
“Ninguém sabe para onde caminha a guerra na SÃria”, diz.
‘Navio negreiro’
Já a caminhada até o prédio ocupado ocorreu pelas mãos de Hasan Zarif, brasileiro de origem palestina, membro do Terra Livre, movimento que defende o direito a moradias populares no paÃs.
“Encontramos essas pessoas dividindo o segundo andar de sobrados mÃnimos com mais de 50 refugiados”, conta. “Então os convidamos a vir para a ocupação. Depois que veio a primeira famÃlia, encheu em dois, três dias, e agora temos mais 50 pessoas na lista de espera.” A fila, explica Zarif, seria fruto da falta de vagas disponÃveis em abrigos públicos – onde a demanda de moradores de rua já supera a disponibilidade de leitos.
“Quem está do outro lado sempre acha que está fazendo um favor, um ato de bondade”, diz a professora Rita de Cássia do Val, consultora do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. “Mas não estamos falando de caridade, estamos falando de cidadania.”
Para ela, há uma “fantasia” entre muitos empregadores de que imigrantes aceitam qualquer tipo de trabalho, sob quaisquer condições. “Muito pelo contrário. Muitos têm nÃvel de politização e formação maior que o do brasileiro médio. E esses sujeitos não podem admitir serem tratados de maneira indigna.”
Ela lembra que os refugiados “são mais gente consumindo, pagando impostos e trazendo novas experiências culturais e profissionais ao mercado”. O mesmo vale para os que ainda não encontraram emprego formal. “A carga tributária no Brasil é altÃssima. Um vendedor de guarda-chuvas na porta do metrô também paga imposto quando compra uma coxinha.”
Sobre uma suposta “competição” com nativos por empregos, Val diz que a crise dos refugiados abre espaço para que o mundo “repense conceitos antigos” de limites territoriais. “Não dá para construir muros, tudo o que acontece no vizinho ou num pais distante vai me impactar”, diz. “Os setores produtivos dependem dos imigrantes. Se todos forem embora, os paÃses param.”
As dificuldades para a validação de diplomas profissionais e o preconceito entre empregadores é a mesma, no Brasil e no exterior, diz a professora. “É preciso que se saiba que os refugiados não são escravos nem representam novos navios negreiros. São apenas trabalhadores que querem trabalhar, dignamente, como eu e você.”
Imagens: Chuck Tayman e Gabriel A. Fotos e Edição: Gabriel A.